Jorge Moreira da Silva, in Público on-line
Os programas para os refugiados - incluindo as respostas dentro das nossas próprias fronteiras - devem ter os direitos humanos no seu núcleo.
A crise dos refugiados da Síria tem motivado, nos últimos anos, uma crescente atenção política e mediática. Várias perspectivas desta crise têm vindo a ser debatidas mas, no essencial, o foco do debate tem sido colocado no impacto desta crise nos países europeus de destino. Ora, convém, nesta análise, evitarmos erros de paralaxe, infelizmente tão comuns no contexto internacional, e abordarmos as implicações globais desta crise.
Uma questão é particularmente preocupante: os países mais pobres estão a pagar duplamente o preço desta crise dos refugiados. Seja porque acolhem a larga maioria dos refugiados, seja porque, em simultâneo, vêem reduzidas as verbas de ajuda ao desenvolvimento.
Os dados mostram que uma parte substancial dos custos, em alguns países europeus, associados ao afluxo de refugiados e requerentes de asilo está a ser registada como ajuda pública ao desenvolvimento (APD) - a medida que o Comité de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD) da OCDE utiliza para medir as despesas dos países doadores na ajuda ao desenvolvimento. Na prática, durante a crise dos refugiados, muitos desses países doadores reduziram o volume de APD disponível para lançar, sustentar ou expandir projetos de cooperação para o desenvolvimento em países pobres.
Em 2015, os países europeus que integram o CAD registaram, como ajuda pública ao desenvolvimento, um volume de despesa de 9700 milhões de dólares relativo ao acolhimento de 1,2 milhão de requerentes de asilo nos seus próprios países. No mesmo período, estes países europeus gastaram apenas 3200 milhões de dólares em projectos de cooperação para o desenvolvimento na Síria, no Afeganistão, na Somália, no Sudão do Sul e no Sudão - os cinco principais países de onde partiram aqueles requerentes de asilo.
Em 1998 foi aprovada uma directiva, na OCDE, que prevê a possibilidade dos países doadores registarem alguns custos com o acolhimento de refugiados nos seus territórios. Inicialmente, poucos países doadores registaram estes custos como ajuda ao desenvolvimento. No entanto, entre 2010 e 2015, o volume de despesa relativa ao acolhimento de refugiados em países doadores, registada como APD, mais do que triplicou, passando de 2,7%, em 2010, para 9,1%, em 2015, sendo que existem discrepâncias na forma com os países estão a interpretar a elegibilidade desses custos na APD.
É, pois necessário, revisitar essas regras. A OCDE está a trabalhar para estabelecer regras mais claras para o registo estatístico, na APD, dos custos com os refugiados em países doadores. O Comité de Ajuda ao Desenvolvimento criou um Grupo de Trabalho Temporário sobre Refugiados e Migrações para, até Julho, aprovar recomendações sobre as melhores práticas na gestão da crise dos refugiados e sobre a transparência e harmonização do registo estatístico desses custos na APD.
Analisemos agora a segunda dimensão do problema: É, sem dúvida, positiva a atenção que a comunidade internacional tem, recentemente, dedicado à crise dos refugiados da Síria. Mas, convém, também nesta matéria, ter uma perspectiva mais abrangente quanto à dimensão do problema. Apesar da gravidade desta crise mais recente, os sírios constituem uma pequena parte dos mais de 21 milhões de pessoas em todo o mundo registadas como refugiados pela Agência das Nações Unidas para os Refugiados, sendo que o ACNUR categoriza mais de 65 milhões de pessoas como "deslocados forçados".
Por outro lado, ainda que a atenção política e mediática se concentre nos requerentes de asilo na Europa, a larga maioria dos refugiados - mais de 86% - procura acolhimento em países em vias de desenvolvimento, perto dos países de onde que fugiram. O Uganda, por exemplo, acolheu mais refugiados do Sul do Sudão, em 2016, do que o número total de refugiados que atravessaram o Mediterrâneo, em direção à Europa durante o mesmo período.
Todos os dias, 40 mil pessoas são forçadas a fugir de zonas conflito. Muitos mais saem de suas casas em busca de um futuro seguro e digno. E muitos ficam para trás, deslocados dentro de seus próprios países, vivendo em situações de extrema insegurança e pobreza.
Permanecer de braços cruzados enquanto outros vivem com medo não é aceitável. No entanto, países como o Uganda, que há décadas acolhe generosamente centenas de milhares de refugiados, vêem cada vez mais os seus princípios de tolerância minados pela redução da ajuda ao desenvolvimento.
As situações de refugiados não são novas. Juntos, os cinco principais países de origem geraram aproximadamente 10,2 milhões de refugiados nos últimos 25 anos. Os números são impressionantes, mas o desafio que representam não é de modo algum intransponível. As políticas nacionais e internacionais de ajuda ao desenvolvimento devem ter uma perspetiva ambiciosa e de longo-prazo face aos desafios socio-económicos colocados pelas crises de refugiados, em primeiro lugar, assegurando o apoio a estes cidadãos forçados a fugir de zonas de conflito e, em segundo lugar, enfrentando as causas profundas do deslocamento forçado, concentrando os nossos esforços na redução da pobreza e das desigualdades, fortalecendo a construção da paz e melhorando o acesso à justiça.
Todos, assumimos, em inúmeros acordos internacionais, como a Agenda 2030 e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, o objectivo de "não deixar ninguém para trás". É verdade que têm sido inúmeros os sinais de solidariedade de alguns governos e de centenas de organizações da sociedade civil na gestão desta crise dos refugiados. Mas não é menos verdade que temos de ir mais longe. Desde logo, pondo de parte qualquer ambiguidade quanto ao direito de requerer asilo e quanto à responsabilidade de proteger aqueles que o fazem. Por outro lado, precisamos de garantir que o novo financiamento para o acolhimento dos refugiados significa, mesmo, dinheiro extra e não redirecionamento de fundos ou redução de ajuda ao desenvolvimento. E acima de tudo, os programas para os refugiados - incluindo as respostas dentro das nossas próprias fronteiras - devem ter os direitos humanos no seu núcleo.