29.8.22

Desafios do TikTok são "barril de pólvora": especialistas defendem "maior controlo" da idade de acesso e proteção dos "mais vulneráveis"

Helena Bento, in Expresso

São muitos os desafios perigosos que circulam no Tik Tok. Especialistas explicam por que razão são tão "aliciantes" e alertam para a necessidade de serem implementadas medidas para garantir que a rede social é "segura". "O modelo de funcionamento do TikTok é ótimo para o negócio, mas pode não ser o melhor para os utilizadores", diz João Nuno Faria, psicólogo especialista em comportamentos online. Pais devem "supervisionar" a utilização das redes sociais

Em 2021, começaram a circular rumores no TikTok sobre um grupo de homens que estaria a preparar-se para instituir o "Dia Internacional da Violação" a 21 de abril daquele ano. O assunto mereceu tanta atenção que rapidamente se tornou viral, multiplicando-se os vídeos, sobretudo no próprio TikTok, a apelar às mulheres para saírem de casa com armas de fogo e tacos de basebol com pregos e arames caso tivessem planos para essa noite. Se algum homem olhasse para elas de forma considerada suspeita, deveria ser atacado, aconselhava-se nesses vídeos.

"O discurso andou muito inflamado nessa altura. Havia mulheres a dar táticas a outras mulheres para bater em homens e eram lançados desafios nesse sentido", conta Ricardo Estrela, gestor da Linha Internet Segura, da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). Dos EUA, onde surgiram os primeiros rumores sobre as alegadas intenções do grupo de homens, o movimento "alarmista" chegou ao Reino Unido e a outros países, incluindo Portugal. "Também tivemos ecos cá", diz o gestor. Mais tarde, viria a perceber-se que tinham sido utilizadores de "fóruns obscuros" a lançar o "boato" e que não havia realmente a intenção de instaurar um "rape day".

Este foi um dos poucos desafios considerados perigosos em que terão participado utilizadores em Portugal, mas o assunto preocupa quem trabalha nesta área. "Se forem gravados por pessoas com uma grande base de seguidores, os vídeos em que são apresentados desafios tornam-se virais e mobilizam muitos utilizadores", explica Ricardo Estrela, referindo que "o próprio algoritmo do TikTok promove esse tipo de conteúdos", recomendando-os aos utilizadores.

João Nuno Faria, psicólogo especialista em comportamentos online, fala numa "matriz de circularidade" em torno dos utilizadores desta rede social. "Na página inicial, são apresentados vídeos de acordo com os gostos e preferências dos indivíduos, mesmo que essas preferências estejam relacionadas com questões do desenvolvimento".


"As redes sociais tomam as pessoas por iguais. Não interessa se são vítimas de bullying, abusos sexuais, se têm fobias ou outras vulnerabilidades", diz João Faria, psicólogo

Se os interesses da criança passam por "expor-se a riscos" e "testar limites", é isso que "o algoritmo lhe vai dar", fazendo com que "entre num círculo fechado de informação", aponta. "As redes sociais tomam as pessoas por iguais. Não interessa se são vítimas de bullying, abusos sexuais, se têm fobias ou outras vulnerabilidades."
DO "BLACKOUT CHALLENGE" AO "DESAFIO DA SILHUETA"

São muitos os desafios perigosos que circulam atualmente no Tik Tok, desde o conhecido "Blackout Challenge" — de que foram vítimas duas crianças nos EUA, em 2021, e mais recentemente Archie Battersbee, um jovem britânico de 12 anos — ao desafio que consiste em ingerir elevadas quantidades de Benadryl, um anti-histamínico, para induzir alucinações.

Há outros conhecidos, como o "desafio da silhueta" — em que são publicadas fotografias de corpos nus com um filtro que cria uma sombra e pode, na verdade, ser retirado por outros utilizadores para obter imagens com nudez — e o desafio de deixar cair ao chão uma bola de basquetebol com uma garrafa de vidro em cima, tentando agarrar a garrafa antes que caia. O risco de haver acidentes é naturalmente elevado.

Menos populares, mas também com riscos associados, são os desafios relacionados com a alimentação, como ingerir quantidades muito elevadas de água, fazer jejum, evitar a proteína animal, "não comer doces ou estar um mês sem consumir açúcar", elenca Patrícia Nunes, diretora do Serviço de Dietética e Nutrição do Hospital de Santa Maria.

São sobretudo jovens com idades entre os "18 e os 20 anos" que aderem a estes desafios, explica João Nuno Faria, também coordenador do Núcleo de Intervenção no Comportamento Online no PIN – Partners in Neuroscience, centro clínico e de investigação na área da saúde mental e comportamento.

Como estão na adolescência, uma etapa da vida que se caracteriza pelo "desenvolvimento da identidade", participar nestes desafios é "muito aliciante". "Testar os limites faz parte deste processo dos adolescentes de descobrirem quem são", explica o psicólogo. Também a "comparação social" entra neste processo. "Os adolescentes precisam de se comparar com outros para perceberem como se posicionam em termos de estatuto social."

Estas necessidades, continua, "encontraram nas redes sociais um campo maravilhoso de atuação". "Podem testar os seus limites ao mesmo tempo que se comparam socialmente, afirmam os seus interesses e são vistos por uma audiência enorme". Com todas estas possibilidades, está criado um "barril de pólvora" para a participação em desafios perigosos.

Do lado de quem inventa e lança estes desafios, há, por sua vez, uma necessidade de exercer "poder e controlo sobre os outros", também por questões de afirmação. "Todas as pessoas têm necessidade de controlo, mas nem todas procuram manipular os outros no sentido de provocar danos ou lesões."
ESPECIALISTAS DEFENDEM FERRAMENTAS "MAIS EFICAZES" PARA CONTROLO DA IDADE

Ricardo Estrela reconhece que tem sido feito "algum trabalho" pelo TikTok e outras redes sociais, sobretudo em relação às contas de utilizadores que se identificam como menores, para prevenir situações de risco. "Conteúdos mais gráficos ou violentos, que coloquem em causa a vida e integridade física, não lhes são sugeridos", aponta o gestor, acrescentando que o "Blackout Challenge", por exemplo, nem sequer é permitido, "de acordo com as regras mais recentes que foram implementadas".

"As redes sociais estão a apostar em políticas de proteção das crianças e jovens", garante. Dos cerca de três mil milhões de utilizadores do TikTok em todo o mundo, cerca de 35% são jovens entre os 13 e os 19 anos.

"As redes sociais devem criar uma espécie de cartão de cidadão digital para evitar estas situações de risco", defende Ricardo Estrela, gestor da Linha Internet Segura, da APAV

No entanto, há medidas que devem ser tomadas, como a criação de ferramentas "eficazes" de autenticação, defende o gestor da linha. A idade mínima para criar uma conta no TikTok é precisamente de 13 anos (ou 14, no caso da Coreia do Sul e da Indonésia), mas há quem "minta sobre a idade" para poder criar uma conta na plataforma.

Segundo Ricardo Estrela, há já uma startup no Reino Unido que se dedica a pensar em soluções de autenticação de utilizadores com base em documentos oficiais. "As redes sociais devem criar uma espécie de cartão de cidadão digital para evitar estas situações de risco."

João Nuno Faria defende, por outro lado, que seja feita uma "filtragem mais cuidadosa dos conteúdos", retirando "conteúdos de risco" do alcance de "utilizadores mais vulneráveis". É também a favor de "mais controlo" na rede social, uma vez que "os filtros que existem para garantir que a plataforma é segura não são claramente suficientes". "O modelo de funcionamento do TikTok é ótimo para o negócio, mas pode não ser o melhor para os utilizadores."
PAIS DEVEM FAZER "SUPERVISÃO"

Cabe também aos pais assumir determinadas responsabilidades. A privacidade dos jovens, sobretudo a partir dos 14 anos, é um "direito absoluto", mas "isso não significa que os pais devam ficar totalmente fora da navegação que os filhos fazem nas redes sociais", sublinha João Nuno Faria.

"Devem supervisionar as suas contas, de modo a saber a que tipo de conteúdos estão expostos no TikTok", aponta o psicólogo. "Da mesma maneira que perguntam aos filhos a que centro comercial vão e com quem, também têm legitimidade para perguntar o que veem nas redes sociais, pedindo-lhes inclusivamente para ter acesso às suas contas nestas plataformas e consultando-as na presença dos filhos."

Para Ricardo Estrela, outra estratégia é "promover a partilha e consumo de determinados conteúdos em detrimento de outros". Conteúdos que coloquem em risco a integridade física de alguém devem ser denunciados nas plataformas, que dispõem de canais próprios para se reportar casos de violação das regras de utilização das mesmas, aconselha também. “Esse é logo o primeiro passo.”