24.8.22

Trinta e três milhões de brasileiros passam fome num país que “alimenta o mundo”

Alexandra Prado Coelho, in Público on-line

A enorme área agrícola do Brasil serve cada vez menos para produzir feijão, arroz e mandioca. Tal como no passado a cana-de-açúcar se impôs como monocultura, hoje são a soja e o milho que dominam a paisagem, que esconde uma fome feita também de obesidade.

“Metade da humanidade não come, e a outra metade não dorme com medo da que não come”, escreveu o médico e geógrafo brasileiro Josué de Castro, autor de Geografia da Fome. O livro, que traça o retrato da fome no Brasil, foi publicado em 1946, mas a frase ressoa nos mais recentes números sobre a insegurança alimentar naquele país, divulgados no início de Junho e que mostram que, em 2022, são 33 milhões os brasileiros que sofrem de fome.

Só quatro em cada dez famílias conseguem ter acesso pleno à alimentação, indica o segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan).

Os números são muito preocupantes, não só pelo valor absoluto mas pela velocidade a que cresceram: em pouco mais de um ano foram mais 14 milhões os brasileiros que passaram a sofrer de fome, ou seja, de insegurança alimentar grave. Mas, se incluirmos as situações de insegurança alimentar leve e moderada, temos 58,7% da população afectada de alguma forma.

A pandemia veio apenas agravar um quadro que se vinha desenhando anteriormente. Em 2020, o primeiro inquérito do tipo revelava já que, depois de em 2014 ter conseguido sair do Mapa da Fome das Nações Unidas, o Brasil vivia um retrocesso, tendo regressado à situação de 2004.

Desta vez, o pontapé que projectou o país para trás atirou-o para valores equivalentes aos da década de 1990. Com a agravante de a fome, que no passado era associada sobretudo à região do Nordeste (que continua a ser das mais atingidas), ser hoje um fenómeno que se “democratizou”. O que também fica claro nos números é que, se nas cidades o quadro é já bastante dramático, no campo, onde se produzem alimentos, é ainda mais, com 21,8% dos lares de famílias que se dedicam à agricultura a passarem fome.

Além disso, e confirmando tendências anteriores, a população negra é a mais atingida (65% dos lares de negros têm algum nível de restrição alimentar contra 46,8% dos de brancos), assim como os núcleos familiares chefiados por mulheres (onde passou de 11,2% para 19,3%) comparados com os dos homens (de 7% para 11,9%). Particularmente preocupante é o facto de a fome ter duplicado nas famílias com crianças menores de 10 anos (de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022).

E isto acontece numa altura em que o Brasil se posiciona como um dos maiores produtores mundiais de grãos (sobretudo soja e milho) e um dos maiores exportadores de commodities agrícolas, tendo o agro-negócio como uma das principais bases da economia. Como se explica esta contradição? Como pode um país que alimenta o mundo deixar que a sua população passe fome?
Agro-negócio

A explosão do agro-negócio começou na década de 70 do século XX, num país que desde os primeiros tempos do domínio colonial português revelou um enorme potencial para a produção agrícola e animal — um potencial que começou com a exploração da cana-de-açúcar e que se desdobrou noutros ciclos emblemáticos, como os do café, algodão e borracha.

Foi a Revolução Verde na agricultura mundial que projectou o Brasil para o lugar de potência do agro-negócio que tem hoje. Dados da Empresa Brasileira de Pesquisa Agro-Pecuária (Embrapa) mostram que, dos 46 milhões de toneladas de grãos produzidos em 1977, o país passou para uma projecção de 285 milhões de toneladas nas colheitas de 2021/22 (o Brasil tem a capacidade, pouco comum noutras partes do mundo, de obter duas colheitas por ano).

Parte do fenómeno deve-se a um aumento da eficiência, garantido pelo uso intenso de fertilizantes e pesticidas. A outra parte deve-se a um crescimento da área agrícola plantada, que passou de 37 milhões de hectares para 73 milhões, muito à custa da destruição de zonas que são reservas de biodiversidade do planeta, como a Amazónia, que só em Junho deste ano bateu mais um trágico recorde, sofrendo desmatamento numa área de 1120 mil quilómetros quadrados — o equivalente a 74% do município de São Paulo.

A par da Amazónia, existe o caso menos falado (e menos protegido em termos legais), mas igualmente grave, do Cerrado, que é hoje a área mais importante do agro-negócio, com enormes extensões de campos de soja, e que tem vindo a sofrer uma destruição sistemática.

Conhecido como “o berço das águas”, o Cerrado alimenta oito das 12 maiores bacias de rios do Brasil”, lembra a The Economist. “Mas depende da humidade no ar, proveniente da floresta, para o abastecimento de água”, pelo que “a desflorestação não agrava apenas as alterações climáticas”, mas “destrói as condições necessárias para produzir alimentos”.
Nos últimos vinte anos, o crescimento chinês moldou as actividades agro-pecuárias brasileiras, com destaque para o apetite de proteínas vegetais e animais, como soja, carnes de boi, frango e suínosCanal 
O poderoso sector agro-pecuário representa 40% das exportações brasileiras, um terço das quais destina-se ao mercado chinês, contextualiza o site Canal Agro (no jornal Estadão): “Nos últimos vinte anos, o crescimento chinês moldou as actividades agro-pecuárias brasileiras, com destaque para o apetite de proteínas vegetais e animais, como soja, carnes de boi, frango e suínos.” Ou seja, não é para os pratos dos brasileiros que o agro-negócio produz alimentos.

E enquanto nas áreas rurais os campos de soja crescem até perder de vista, nas cidades brasileiras a miséria é um fenómeno cada vez mais visível. Em São Paulo, o número de pessoas, por vezes famílias completas, com crianças, a morar nas ruas é crescente e assustador. As tendas espalham-se por zonas cada vez maiores da cidade, enchendo praças e túneis, multiplicando-se como cogumelos por baixo de pontes e viadutos.

Mas há outras confirmações da pobreza, por vezes menos evidentes mas que deixam marcas profundas. O site O Trigo e o Joio, que se dedica a investigações jornalísticas sobre questões ligadas à alimentação, fez uma série de reportagens e de podcasts centrados no tema da fome no Brasil, nas quais, entre muitas outras informações úteis, faz a ligação entre fome e agro-negócio, concluindo que a produção de grãos na colheita actual é de mais de uma tonelada por pessoa, o que “daria mais de três quilos de comida por dia só em grãos, se isto fosse comida para humanos e não ração” para animais.

Um dos aspectos referidos é o aumento do número de brasileiros que, devido ao preço incomportável dos combustíveis, substituíram o gás nas suas cozinhas pela lenha e o carvão e recorrem a líquidos inflamáveis como o etanol. O resultado é muitas vezes trágico.

Na reportagem “A pobreza pode queimar”, no site Bocado, rede de jornalismo latino-americana que trabalha sobre territórios e alimentação, os repórteres Fabiana Moraes e Mateus Moraes Cavalcante lembram que o preço do “botijão” de gás subiu “inacreditáveis 16 vezes” entre Abril de 2020 e o mesmo mês de 2021.

Segundo os dados mais recentes disponíveis, escrevem os autores, “em Junho de 2018, 90% das pessoas que foram internadas na ala dos queimados do Hospital da Restauração em Pernambuco, uma das maiores do Nordeste, tinham usado líquidos inflamáveis para cozinhar”. Com a agravante de as famílias que usam o etanol viverem muitas vezes em barracas de madeira, também elas altamente inflamáveis.
Uso de pesticidas

Mas como é que o Brasil conseguiu sair do Mapa da Fome da FAO em 2014 e como é que recuou agora de forma tão drástica? Vale a pena olhar para o próprio relatório da agência das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação desse ano, e notar o tom particularmente optimista sobre a possibilidade de o mundo vir a erradicar a fome até 2025. Nele destaca-se o caso brasileiro como exemplo a seguir.

Não se tratou de um milagre, mas sim, dizia a FAO, do resultado de políticas públicas levadas a cabo pelos governos de Luiz Inácio Lula da Silva, que logo em 2003, no seu discurso de tomada de posse, anunciou como objectivo que cada brasileiro conseguisse ter três refeições por dia.

Para isso implementou o programa Fome Zero e medidas como a Bolsa Família (substituída agora pelo Auxílio Brasil), que permitiram retirar muitas famílias da miséria (no início de Agosto, no estado do Piauí, onde foi lançado o Fome Zero, o agora candidato Lula comprometeu-se a voltar a acabar com a fome no Brasil, se for eleito nas presidenciais de Outubro). O principal factor de sucesso, segundo a FAO, teve que ver com a estratégia de coordenação entre 19 ministérios, “ligando protecção social a políticas para a promoção da igualdade de rendimentos, emprego, produção agrícola familiar e nutrição”.

Muitas destas medidas têm vindo a ser desmanteladas pelo actual Governo do Presidente Jair Bolsonaro, entre as quais, destaca O Trigo e o Joio, o fim, em Janeiro de 2019, do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que teve um papel fundamental durante os anos de Lula, coordenando os programas federais ligados a estes temas, e combatendo o uso de agro-tóxicos na agricultura.

Olhemos então para estes. A utilização de pesticidas no Brasil é extremamente elevada. O Atlas da Carne 2021, elaborado pela fundação Heinrich Böll, dá alguns números, sublinhando que, juntamente com os Estados Unidos e a Argentina, o Brasil está entre os principais consumidores de pesticidas do mundo, sendo 52% deles aplicados nos campos de soja.

Acompanhando o crescimento da área de soja, seis vezes maior se comparada com 1990, os pesticidas aumentaram nove vezes, em grande parte depois da introdução, no final da década de 90, da soja geneticamente modificada, mais resistente ao glifosato, um herbicida de largo espectro e classificado como “potencialmente cancerígeno”. “Só para o cultivo de soja no Brasil, são autorizados 246 pesticidas contendo glifosato”, sublinha o relatório da Heinrich Böll.

A fome persistente convive com a crescente epidemia de obesidade, e os dois fenómenos atingem a população mais vulnerável.

Vale a pena explorar um pouco mais este relatório, nomeadamente o capítulo sobre destruição de áreas de floresta para a criação de pastagens — no caso do Brasil, e embora “haja controvérsia sobre os números reais”, estima-se que 150 a 200 milhões hectares de terra sejam usados para a criação de gado, o que corresponde aproximadamente ao total da área agrícola da União Europeia. O Brasil é o maior exportador mundial de carne de frango, porco e vaca.
Agro não é tech nem pop

Os preços das commodities alimentares no mercado global, e as políticas de incentivo às exportações, “não só faz com que o agro sonhe em vender tudo para fora, mas também em se especializar na produção de quatro ou cinco produtos, o que levou a uma corrida de substituição de culturas alimentares para a produção de commodities de exportação”, alerta o trabalho de análise “O agro não é tech, o agro não é pop, e muito menos tudo”, de 2021, assinado pelos investigadores Marco António Mitidiero Junior e Yamila Goldbarb, com o apoio da Associação Brasileira de Reforma Agrária e da Fundação Friedrich Ebert.

Os chamados “produtos da cesta básica” da alimentação brasileira, como o feijão, o arroz e a mandioca, foram sendo substituídos por soja e milho, passando de uma área agrícola de 24,7% em 1988 para 7,7% em 2018. Mas isto não significa que os brasileiros começaram a encher os seus pratos de grãos de soja e de milho. “O óleo de soja no país, que é o maior produtor do grão, subiu 104%. Somos o maior produtor de carnes no mundo, sendo que as carnes subiram 17,9%. Outros alimentos padeceram do mesmo aumento: arroz e feijão-fradinho, bases na alimentação dos brasileiros, subiram 76% e 68%, respectivamente; leite longa vida, 26,9%; batata inglesa, 67,2%; frutas, 25,4%; laranja-lima, 53,1%; e tomate, 52,7%”, resumem os dois investigadores.

A revista Piauí refere outro dado relevante para se perceber os desequilíbrios do país: “A fome persistente convive com a crescente epidemia de obesidade, e os dois fenómenos atingem a população mais vulnerável. Dados compilados pela Piauí e pela agência de dados públicos Fiquem Sabendo, com base no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), do Ministério da Saúde, mostram que a proporção de crianças de cinco a dez anos acima do peso explodiu nos últimos treze anos. A taxa de crianças com obesidade subiu 70% de 2008 a 2021. Praticamente uma em cada cinco crianças atendidas pelo sistema público de saúde está obesa.” E este é um fenómeno que afecta todos os estados brasileiros, sem excepção.

O mesmo problema é identificado por O Trigo e o Joio, que nota que actualmente os alimentos ultraprocessados são mais baratos do que legumes ou fruta frescos. O exemplo surge claro na Piauí: “Um salgadinho de milho com sabor calabresa acebolada — que de calabresa só tem o aroma artificial — [é] vendido a 50 centavos. Uma banana custa 75 centavos (…).”

Os peritos ouvidos pela revista não têm dúvidas sobre a ligação entre o empobrecimento e a insegurança alimentar, por um lado, e o aumento da obesidade infantil, pelo outro. Os ultraprocessados, produzidos em larguíssima escala, “são basicamente uma mistura de sal, açúcar, gordura e conservantes”, e têm um custo baixo. “O preço de uma salsicha pouco aumentou, enquanto o da cenoura disparou”, explica o economista Arnoldo de Campos, ex-secretário nacional de Segurança Alimentar, citado no artigo.

Além de obesas, as crianças mais vulneráveis do Brasil estão baixas. A má alimentação afecta o crescimento de forma que não é reversível. A baixa estatura revela fome crónica, dizem os especialistas, sendo que o programa Fome Zero tinha conseguido fazer cair em mais de 70% a desnutrição infantil.

Enumerando os programas e organismos que, entretanto, foram extintos, a Piauí conclui com uma constatação: “O Brasil passou pela maior crise sanitária do século [a pandemia de covid-19] — justamente os anos em que aumentaram a fome e a obesidade infantil — sem um Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Até hoje, o Governo Bolsonaro não apresentou o documento que deveria orientar as políticas nutricionais entre os anos de 2020 e 2023.”

É neste quadro, entre um sector agro-alimentar que não pára de enriquecer e supermercados com prateleiras cheias de calorias baratas e vazias de nutrientes, que 33 milhões de brasileiros vão diariamente para a cama com fome, a “fome oculta” sobre a qual escreveu Josué de Castro — aquela em que “grupos inteiros de populações se deixam morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias”.