26.8.22

Governo adia por mais um ano medidas contra casamento infantil

 Ana Henriques, in Público on-line

Casos somam e seguem. Um dos últimos deu direito a tiros e já houve homicídios e raptos. Livro branco sobre matrimónios forçados e precoces devia ter ficado pronto em Dezembro. Membros de grupo de trabalho dizem que propostas que já apresentaram continuam na gaveta.

As intenções eram boas, mas não passaram disso mesmo. O grupo de trabalho nomeado pelo Governo há ano e meio para produzir um livro branco sobre os casamentos infantis, precoces e forçados devia ter terminado a sua missão em Dezembro passado. Mas há vários meses que os seus membros não reúnem, tendo a secretaria de Estado da Igualdade e Migrações fixado um novo prazo para o livro branco ver a luz do dia: Agosto de 2023.

Enquanto isso não acontece – o documento deveria apresentar recomendações em matéria de prevenção e combate aos casamentos infantis, precoces e forçados – os casos continuam a acontecer. Um dos mais recentes deu-se no final do mês passado em Vila Real e envolveu uma troca de tiros que chegou a atingir uma mulher grávida, quando um grupo tentou raptar uma rapariga que estava prometida em casamento a um homem com quem não queria contrair matrimónio.


Não sendo exclusivo da comunidade cigana e atingindo também algumas comunidades asiáticas como a do Bangladesh, o fenómeno tem uma dimensão quantitativa desconhecida: apenas pode apresentar-se no Registo Civil para contrair matrimónio quem tiver pelo menos 16 anos, e só se contar com a autorização dos pais. Uma possibilidade legal que contraria as recomendações da ONU, segundo as quais a idade mínima para o matrimónio deve ser os 18 anos. Todas as uniões de facto abaixo dos 16 escapam assim à estatística.

Mas nem sequer o aumento da idade mínima para casar, que consta das propostas apresentadas até agora pelo grupo de trabalho, conseguiu ir por diante. No que respeita ao livro branco, o Governo justifica esta inacção com a pandemia: segundo o gabinete de imprensa da secretaria de Estado, a situação sanitária impediu o lançamento dos inquéritos necessários ao estudo.

Porém, na altura em que o grupo de trabalho foi constituído com representantes de mais de dezena e meia de instituições – tanto da sociedade civil como da administração pública, da academia e das comunidades –, em Fevereiro de 2021, já o mundo convivia com a covid-19 há um ano. O que não impediu o Governo de determinar que este estudo destinado a apoiar a definição de políticas públicas devia ficar pronto até ao final do ano, muito embora já aí fosse admitida uma prorrogação do prazo.

Contactada pelo PÚBLICO, a ex-secretária de Estado que nomeou o grupo de trabalho, Rosa Monteiro, diz que os seus membros lhe pediram para entregar o livro branco apenas no primeiro semestre deste ano. “Havia já bastante trabalho feito, conceitos, inquérito a serviços públicos sobre o tema, campanha. Ficou na pasta de transição”, recorda.

Isso mesmo confirmam também vários outros membros do grupo, que trabalharam pro bono. “Fizemos muitíssima coisa, mas oficialmente não foi publicado nada”, explica a presidente da Associação Mulheres Sem Fronteiras, Alexandra Alves Luís. “Já transmitimos à secretaria de Estado a importância de retomarmos os trabalhos do grupo. Não reunimos desde o final do ano passado.” Para esta dirigente associativa, o facto de a ministra Ana Catarina Mendes e a sua actual secretária de Estado, Isabel Almeida Rodrigues, não terem conhecimentos especializados nesta área, ao contrário do que sucedia com Rosa Monteiro, podem ajudar a explicar o atraso: tiveram de se pôr a par da matéria.

Para o inspector que coordena a Polícia Judiciária de Aveiro, Rui Nunes, não há necessidade de mudar a legislação que pune este tipo de delitos, uma vez que quem tiver relações sexuais com menores de 14 anos já se sujeita a ser encarcerado durante até dez anos, mesmo que sejam consentidas pelo menor. Na esmagadora maioria dos matrimónios celebrados à luz da chamada lei cigana o noivo já é maior. Se a vítima tiver mais de 14 anos o procedimento criminal por acto sexual com adolescente já depende de queixa. “É quase impossível a lei ir mais longe. É uma questão de formação” das pessoas, observa o inspector, recordando como muitos julgamentos destes casos começam com os arguidos a dizerem ao juiz: “Sou casado pela lei cigana”.

Rui Nunes ressalva porém que se registou uma diminuição do fenómeno nas últimas duas décadas. É o que constata também Bruno Gonçalves, da associação cigana Letras Nómadas. “Felizmente, e graças ao aumento da escolarização obrigatória, isso sucedeu, embora a prática ainda exista nalgumas comunidades rurais e do interior do país. Mas a lei tem de imperar”, defende. Até porque casar significa quase sempre deixar de estudar. “Cada vez há mais ciganos a casarem na idade legal”, prossegue, garantindo que a violação de que são alvo as raparigas durante a cerimónia de casamento é uma prática cada vez mais residual, quase um “mito urbano”.

Uma tese de doutoramento apresentada no ano passado no Instituto de Ciências Sociais sobre as normas pelas quais se rege esta comunidade explica como tudo sucede no chamado arrontamento: “No dia do casamento, na presença de pessoas mais velhas, cabe a uma das mulheres de respeito a responsabilidade de fazer a prova da virgindade da noiva e, no final, exibir à restante família e convidados o lenço ensanguentado que comprova a virgindade e pureza da noiva e, consequentemente, a honra da família.”

Com ou sem convidados, foi isso que uma rapariga de 12 anos disse à Polícia Judiciária ter-lhe acontecido em Maio passado, quando se juntou ao noivo de 18 anos depois de ter fugido do lar onde estava institucionalizada, na zona de Seia. Moraram juntos três meses como marido e mulher, após os quais o rapaz foi detido e colocado em prisão preventiva, por ter abusado da menor. Depois de ter regressado ao lar a rapariga fugiu de lá outra vez.

Em 2020 dois homens foram condenados a 20 anos de cadeia por terem matado o pai de uma jovem de 13 anos que ajudou a filha a fugir a um casamento forçado. O crime deu-se em Foz Côa, tendo um dos arguidos argumentado ser de etnia cigana e estar em causa a honra do jovem abandonado e portanto da respectiva família. O argumento não vingou, mas existe nos tribunais quem entenda que a falta de consciência da gravidade destes comportamentos, que radicam em tradições ancestrais, pode servir de atenuante das penas aplicadas aos autores destes crimes.

No mês que vem, um clã de uma dezena de pessoas senta-se no banco dos réus do Tribunal de Leiria. Raptaram uma rapariga de 13 anos para poderem casá-la com o filho, da mesma idade. Mas apesar de ser da mesma etnia, o pai da vítima fez queixa à GNR. Está vivo por sorte: o homem que queria ser seu compadre à força apontou-lhe uma arma à barriga quando foi buscar a jovem a casa e disparou. Só que a pistola encravou.

O casamento forçado é crime desde 2015, independentemente da idade da vítima, tendo uma pena de prisão até cinco anos.