Ana Cristina Câmara, in Sol
Sobrevivem em acampamentos com tendas, plásticos esticados sobre paus, escasso acesso a água e comida, às portas de Calais. É ali, no miserável aglomerado, baptizado de ‘Selva’, que cerca de três mil estrangeiros fazem a última paragem em solo francês. Objectivo: entrar no Reino Unido, ligado ao continente por breves 50 quilómetros ferroviários do túnel sob o Canal da Mancha. Entre segunda e terça-feira, as autoridades e a Eurotunnel, empresa que gere o túnel, foram surpreendidas com um assalto: 3.500 tentativas de travessia interceptadas, a maior incursão do último mês e meio. Sem sinal de abrandamento.
Franceses e britânicos reuniram. O ministro da Administração Interna gaulês, Bernard Cazeneuve, enviou na quarta-feira mais 120 polícias para impedir a aproximação destes migrantes clandestinos - na sua maioria fugidos da guerra e da violência em países como Eritreia, Afeganistão, Somália, Sudão e Síria - à infra-estrutura ferroviária. A homóloga Theresa May anunciou que o Reino Unido vai desembolsar mais 10 milhões de euros para reforçar as vedações do complexo do túnel. Um valor que várias ONG lamentam não ser investido nos lentos e burocráticos processamentos de pedidos de asilo.
“Quando vi este sítio quis chorar”, diz ao Guardian uma eritreia cristã de 30 anos, recentemente chegada à ‘Selva’. Diz-se perseguida no seu país: “Se me mandarem de volta para casa, estão a matar-me. É melhor morrer aqui”. Por isso o caminho faz-se para a frente, com repetidas tentativas durante a noite.
Os migrantes aproximam-se do terminal, rompem as vedações, fintam o arame farpado, a Polícia, os cães policiais, tentam esconder-se nas plataformas, nos veículos pesados que vão atravessar o túnel, nos comboios. Apanhados, são transportados em carrinhas e “soltos junto ao KFC [cadeia de fast-food] e dali tentam novamente”. A explicação lê-se no site dos activistas da Calais Migrant Solidarity, no terreno desde 2009. O KFC fica a apenas três quilómetros do complexo ferroviário, o que justifica as reiteradas tentativas numa mesma noite.
A Eurotunnel indica que desde o início do ano houve 37 mil incursões de migrantes interceptadas. E a britânica Theresa May, embora não detalhe quantos, admite que já entraram clandestinos no Reino Unido.
A ONG Médicos do Mundo, também presente na ‘Selva’, afirma que está a receber mais feridos nos últimos dias. Ao mesmo jornal britânico, uma representante da organização resume: “Quanto mais difícil se torna, mais riscos as pessoas têm de correr”. Em números, segundo Chloé Lorieux, são 90 as pessoas que diariamente precisam de atendimento.
Brutalidade policial
A Calais Migrant Solidarity denuncia ainda outra realidade. Ainda que a percepção seja de que a Polícia gaulesa pouco faz para impedir a passagem dos migrantes, os activistas têm conseguido filmar actos de brutalidade dos agentes na perseguição aos clandestinos.
As tácticas de dissuasão incluem “espancamentos, reiterados despejos e destruição de abrigos, uso de gás lacrimogéneo, confiscação de bens essenciais como sacos-cama e utensílios de cozinha, despejar produtos químicos na escassa água potável e profanação da Bíblia e do Alcorão”.
A organização enumera ainda 11 pessoas que perderam a vida a tentar chegar ao Reino Unido, desde o início de Junho. Adolescentes, mulheres, homens, alguns com nome, outros apenas identificados pela nacionalidade conhecida dos seus vizinhos da ‘Selva’. Entre eles, um bebé que nasceu prematuro às 22 semanas depois de a mãe ter caído de uma carrinha. Samir teve uma hora de vida.