Vasco Pulido Valente, in Público on-line
Do genuíno sofrimento pela pobreza não derivam conclusões seguras sobre a natureza da história ou sobre o regime em que a humanidade deve viver.
A pobreza foi descoberta pelos filhos da burguesia no século XIX. Até ali não era visível, como hoje ainda em grande parte não é, ou era considerada uma característica geral da criminalidade.
Foi já em 1958 que o historiador Louis Chevalier escreveu um livro em que distinguia as “classes laboriosas” das “classes criminosas” e explicou ao mundo essa particular cegueira da civilização ocidental. Houve, evidentemente, desde o princípio da Restauração dos Bourbons (1815-1830) uma espécie de literatura que explorava o equívoco entre o “povo” bom e o “povo” mau, que a gente “com qualquer coisinha de seu” lia com delícia, cujo exemplo mais conhecido é “Os Mistérios de Paris” de Eugène Sue, mil vezes copiado e recopiado, mesmo por Vítor Hugo na obra épica “Os Miseráveis”, que continua a ser na forma de opereta ou na forma de filme um sucesso contemporâneo.
No século XIX descobrir a pobreza (como descobrir o sexo) mudou a vida a muita gente. Não só essa estranha revelação abria o caminho para a idade adulta e para a cidadania, mas porque o adolescente “rico” se sentia por uma vez parte da humanidade e frequentemente com a missão de a reformar. Claro que primeiro vinham os sentimentos: a indignação, a fúria, a tristeza, o ódio por uma sociedade que permitia aquela atroz miséria. Mas, com o tempo, esses sentimentos cristalizavam numa vontade de acção: ou se trepava para uma barricada ou se escreviam utopias “socialistas”, para inquietar os poderes do dia e aliviar os remorsos. E aqui nesta luta pela transformação do mundo, que se achava radical e definitiva, nasceu um equívoco perene.
Do genuíno sofrimento pela pobreza não derivam conclusões seguras sobre a natureza da história ou sobre o regime em que a humanidade deve viver. Pelo contrário, o sofrimento leva quase sempre a ideias que não têm um uso prático ou a planos que escondem ou ignoram a realidade. Basta ver a nossa extrema-esquerda. Não nego que andem por lá pessoas bem-intencionadas. Sucede que a noção de que os sentimentos chegam para reformar a sociedade e o fanatismo em que a acção de costume se perde e se transforma podem quanto muito produzir alguma destruição sem nexo, não podem mudar nada duradouramente. Não por acaso a extrema-esquerda (de qualquer pinta ou nascimento) se parece toda com uma igreja, com o seu zelo e o seu ódio teológico. São pássaros da mesma pena.