in Expresso
Carla Félix vive desde fevereiro de 2015 na cidade de Abidjan, na Costa do Marfim, e trabalha no Banco Africano de Desenvolvimento
Neste país, a água e a luz não são direitos: “Às vezes há, outra vez não há, e na sua ausência a vida continua e sem dramas”. O trânsito é uma tormenta: no seu pior, quatro horas dão para percorrer 30 quilómetros. Neste país, fala-se muito e diferenciado: existem 60 dialetos nativos. E o povo está atento aos seus: “O problema de um é um problema de todos, assim sendo para o bem ou para o mal”. A vida de Carla na Costa do Marfim - e a sexta história da série “Em pequeno número”, que o Expresso publicou na semana de Natal e agora na de ano novo sobre portugueses que vivem em regiões em que quase não os há
Raquel Albuquerque
Raquel Albuquerque
A energia das pessoas, a música, os sons das ruas, o trânsito e a vontade de viver - é aquilo que mais vê, ouve e sente no país onde vive desde fevereiro de 2015. “Trata-se de um país muito rico, histórica, étnica e culturalmente, e isso reflete-se na sua diversidade, energia e orgulho”, conta Carla Félix.
“Contudo, também a guerra faz parte da sua história e infelizmente isso também se reflete em algumas das suas vulnerabilidades, como a segurança por exemplo.”
Aos 32 anos, Carla vive em Abidjan, capital administrativa da Costa do Marfim. Chegou ali depois de ter vivido quase quatro anos na Tunísia, onde, depois de estagiar, trabalhou como consultora no Banco Africano para o Desenvolvimento.
“Em 2015, a sede do Banco Africano para o Desenvolvimento foi transferida para a Costa de Marfim, em Abidjan, e consequentemente mudei-me também para este país.” Hoje é consultora em economia social no banco.
Carla acorda cedo e sai para trabalhar por volta das 7h30 ou 8h, “o que já é considerado tarde, devido às dificuldades do trânsito”. O trânsito, aliás, faz parte da rotina da cidade.
“É caótico. Quando começou a época das chuvas, e a fragilidade infraestrutural da cidade veio à tona, por vezes demorei quatro horas a chegar a casa para percorrer menos de 30 quilómetros.”
Mas é logo cedo que o dia dos marfinenses começa. “A luz e o calor invadem as nossas casas muito cedo, logo as ruas agitadas de Abidjan já se encontram em plena ação pelas seis da manhã.”
Há sempre uma solução para tudo
A vida na Costa do Marfim tem outras características. “A música é uma constante nas nossas vidas. As pessoas são muito criativas – há sempre uma solução para tudo. E a paciência é uma atitude construtiva e produtiva em todas as situações.”
Homem de bicicleta numa estrada em Assouindé, na costa do país
Homem de bicicleta numa estrada em Assouindé, na costa do país
Carla Félix
Carla conta ainda que a negociação é uma constante dos dias. “Não se adquire um bem ou um serviço sem que antes se discuta arduamente o seu valor. Ganha o mais perseverante.”
Entre os contrastes que identificou quando chegou à Costa do Marfim está o facto de a luz e a água não serem direitos adquiridos. “Às vezes há, outra vez não há, e na sua ausência a vida continua e sem dramas.”
Normalmente, o seu dia de trabalho prolonga-se até às 18h. Depois, tenta aproveitar o resto do dia, seja a fazer desporto ou a sair com os amigos. “A cidade tem uma oferta razoável de restaurantes e atividades, a todos os preços e para todos os gostos. Ao fim de semana, aproveito para fazer compras nos mercados locais, sobretudo fruta, e vou nadar.”
Sendo Abidjan a capital administrativa da Costa do Marfim, Carla conta que “naturalmente é uma cidade mais agressiva que as outras, na poluição, na confusão visual, no trânsito”. Também por isso, aproveita para conhecer outras zonas mais calmas do país. “Sempre que possível, saio de Abidjan e vou às praias mais próximas, dado que a Costa do Marfim tem uma costa extensa.”
Praia em San Pédro, a cidade que tem o segundo maior porto da Costa do Marfim
Praia em San Pédro, a cidade que tem o segundo maior porto da Costa do Marfim
Carla Félix
Menos de 50 portugueses
As estatísticas disponíveis, recolhidas pelo Observatório da Emigração, apontavam para que em 2008 vivessem menos de 50 portugueses na Costa do Marfim.
Como não existe uma embaixada portuguesa no país, Carla não sabe de números concretos quanto à presença de portugueses, mas crê que atualmente vivam na Costa do Marfim cerca de uma centena – “e trabalham nos mais diversos ramos de negócio e indústrias, como consultoria, farmacêutica, construção, organizações não-governamentais (ONG).”
A população total do país ronda os 20,8 milhões segundo as estatísticas das Nações Unidas, estando 53,5% do total a viver em zonas urbanas. A taxa de desemprego ronda os 4% em 2013 e a esperança média de vida é de 51,4 anos para as mulheres e 49,7 anos para os homens. Outras estatísticas do World Factbook mostram que em 2008 38,6% da população era muçulmana e 32,8% era cristã. O francês é a língua oficial, mas existem 60 dialetos nativos, sendo o dioula o mais falado.
Carla conta que as diferentes igrejas e mesquitas “convivem pacificamente” e que as superstições são muitas e regulam muitos dos hábitos locais. Também a forma como as pessoas se relacionam é diferente.
“O problema de um é um problema de todos. Assim sendo para o bem ou para o mal, existe um grande senso de participação na vida do outro. Assim sendo, somos parte da vida uns dos outros, sobretudo na busca de soluções.”
Crianças numa praia em Assouindé
Crianças numa praia em Assouindé
Carla Félix
As cores e a comida
Além da energia das pessoas, a moda faz parte da vida diária. “A cidade gosta de moda, por isso as cores e os padrões são vivos e animados, sejam para homens ou mulheres, alegrando a paisagem humana do país. As nossas conversas passam frequentemente pelos panos africanos, os novos modelos de vestidos, ou a próxima ida ao costureiro”, conta Carla.
A portuguesa defende que, para abraçar novos países, “temos de abraçar o seu quotidiano”. E para lá da rotina, já fazem parte dos seus hábitos alimentares o “attieke” (mandioca) e o “aloko” (plátano frito).
Carla ainda era pequena quando teve os primeiros contactos com outros países. Aos sete anos saiu de Portugal com os pais rumo a Macau, onde viveu dez anos com a família. Depois regressou ao país onde nasceu, onde estudou relações internacionais.
Estagiou durante um ano numa Organização Não Governamental para o Desenvolvimento (ONGD). “Entretanto fui sendo contratada por ONGD diferentes, onde tive a oportunidade de assistir a gestão de projetos relacionados com o ambiente, comércio justo, consumo responsável e media para o desenvolvimento. Este projetos eram implementados em Portugal, Europa, Timor Leste e Cabo Verde.”
Agora, os seus planos incluem ficar mais um ano na Costa do Marfim. Porém, um dia, quando sair, o que levará consigo? “Acho que levarei a perseverança e vontade de viver dos marfinenses, que nos inspira e incute resiliência“, conta.
“O calor que nos acorda muito cedo de manhã é o mesmo que nos entusiasma a enfrentar os dias com outra energia e as noites com mais animação. Por isso terei certamente saudades do calor, da alegria das pessoas, da música africana, das frutas tropicais todos os dias, da água de coco.”