18.12.15

Retornados: A mãe ficou rouca para sempre

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

O êxodo das ex-colónias começou ainda em 1974. A mãe revive-o ao confrontar-se com as imagens dos que agora fogem da guerra.

[Um homem, uma mulher e um bebé, aos ais, caídos numa linha de comboio. Uma mulher de pé, curvada, a abraçar dois meninos que choram.] A mãe evita olhar para o televisor. [Um menino a entrar pela janela de um comboio, o corpo em suspenso, os olhos rasos de água. E outro a subir uma ribanceira com um bebé ao colo, num pranto.] A mãe prefere olhar para o que está a fazer – descascar legumes, cortar carne, pôr a mesa, comer, lavar louça, o que for. Revê-se no desespero de sírios, afegãos, iraquianos e outros empurrados pela violência. “Eu sei o que é fugir. Eu sei o que é fugir com um filho em cada mão e outro na barriga...”

Ao tempo que isso foi. A mãe tinha quase 30 anos, André quase nove, Duarte sete, eu nem fazia volume na barriga dela. Engravidara dois meses antes em Porto Amélia, hoje Pemba, a capital da província de Cabo Delgado, no Norte de Moçambique. Mudara-se havia pouco para a Matola, contígua a Lourenço Marques, hoje Maputo.

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A mãe está prestes a completar 71 anos. Os caracóis esbateram-se. O cabelo ficou ralo. O rosto ganhou uma teia de rugas. As datas já se perdem na sua cabeça. Na de Ribeiro Cardoso não. Ribeiro Cardoso é jornalista, fez parte da Comissão Administrativa Militar que dirigia a Rádio Clube de Moçambique (RCM), escreveu o livro O Fim do Império: Memória de um soldado português/O 7 de Setembro de 1974 em Lourenço Marques.

Uma delegação do Estado português e outra da Frente de Libertação de Moçambique, a Frelimo, reuniram-se a 5 de Setembro em Lusaca, na Zâmbia, para negociar a transferência de poderes. Ao aceitar quem fez a luta como único representante do povo, Portugal dispensava cerca de duas dezenas de movimentos e partidos de formação recente. No dia da assinatura do acordo, a Praça de Mouzinho de Albuquerque, hoje Praça da Independência, encheu-se de gente inflamada, que desaguou na rua da RCM. Conta Ribeiro Cardoso que três elementos pediram para serem recebidos por ele e pelos outros militares que dirigiam a estação. Queriam acesso directo aos microfones para afirmar que alguém conduzira um carro com uma bandeira da Frelimo ao alto e uma bandeira de Portugal no chão e expressar desacordo com o acordo de Lusaca. O pedido foi-lhes negado. Volvido um quarto de hora, a turba invadiu o edifício.

Identificaram-se como Movimento Moçambique Livre e sonhavam com uma independência “branca”. Pela rádio, pediam a intervenção da África do Sul, da Rodésia, hoje Zimbabwe, dos comandos de Montepuez. Faziam-no entre batuques, hino nacional, Grândola Vila Morena e outras canções a despropósito. Libertaram os membros da PIDE/DGS, tomaram a sede dos correios, o aeroporto civil, a posto emissor da RCM, perante militares e polícias divididos. “Em três meses, não mudou a mentalidade das pessoas”, comenta Maria Paula Meneses, investigadora-coordenadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. “Militares e polícias não estavam politizados no sentido de reconhecer os movimentos nacionalistas negros como forças legítimas e qualificadas para tomar o poder.”

Primeiro, alguns radicais conservadores “brancos” distribuíram tiros nos subúrbios habitados por negros. Depois, "negros" começaram a avançar, como um tufão, em direcção a cidade. Com catanas, paus, machetes, pedras.

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A mãe resume tudo na palavra “barulhos”. A mãe diz: “Nisso dos barulhos, eu estava na Matola”. Estava com uma antiga vizinha, a Maria Moderno. O marido desta, o Quirino, trabalhava na esquadra da Matola e apareceu sem aviso para a levar e às filhas de ambos. A mãe, André e Duarte foram com eles. O pai não lhes poderia valer. Estava longe. Trabalhava na esquadra da Polana, em Lourenço Marques.

Quirino andava de um lado para o outro. E, por toda a parte, via velozes movimentos de pavor. Carros incendiados, lojas saqueadas, edifícios destruídos. Uns gritavam de raiva. Outros uivavam de dor. “Tanta porcaria!” Quis pôr a família a salvo. “Ao lado da esquadra havia uma dependência de um médico e ele emprestou essa dependência para a gente guardar a família”, conta ele. Naquela época, não abundava gente com carta de condução. “Precisavam de mim. Tive de sair, de fazer qualquer coisa. Quando voltei, elas não estavam. Um subchefe tinha-as levado para o quartel dos fuzileiros. Eles estavam a receber famílias inteiras.”

A mãe aguentou três dias sem comer, sem tomar banho, sem mudar de roupa. Lembra-se de que “um tipo dava pão aos pequenos”. Lembra-se de que “eles comiam esse pão seco e bebiam água da torneira”. Lembra-se de que “a água saía quente”. Quando lhe perguntei onde esteve, usou a expressão “campo de concentração”. “Não pode ser”, retorqui. “Havia aí um quartel. Era afastado [de casa], mas não era muito. Tinha muita gente e tinha tropa. Era como esses tristes que vêm agora de fora. Sabem tanto para onde vão como eu sabia nessa hora.”

Não encontrei referências nos livros. Era como se todos tivessem sido revolucionários ou reaccionários, heróis ou vilões. Só quando Quirino referiu o quartel dos fuzileiros, percebi. Junto ao quartel, havia uma dupla prisão. Num lado, os presos de delito comum. No outro, os presos controlados pela PIDE/DGS. E não faltava quem chamasse campo de concentração àqueles oito pavilhões compridos, rasos, separados por pátios de terra solta.

“Tanta gente havia aí…”, afiança a mãe. “Muitos choravam. Uns porque a casa tinha ardido, outros porque tinham perdido o negócio.” O tempo passava e a destruição prosseguia lá fora. “Eu já andava caída. Ao terceiro dia, tomei um copo de cacau que um soldado me deu e vomitei-o todo.” Não era só a fome, o cansaço. Era o medo, o desnorte. “Nem a gente sabia onde estava teu pai, nem teu pai sabia onde a gente estava.”

Ateado o ódio racial, o confronto ameaçava atingir proporções inimagináveis. Uma elite africana, militante da Frelimo, tinha-se reunido no bairro suburbano de Mafalala para organizar a defesa e evitar reacções violentas. Foi depois de ouvir essa base que o chefe do Estado Maior do Comando Territorial Sul e do Comando Operacional de Lourenço Marques decidiu lançar o assalto à RCM, a 10 de Setembro. Acompanhado por uma brigada de pára-quedistas, Aurélio Le Bon, militante da Frelimo, antigo comando do Exército, disfarçado de alferes, deu a senha ao microfone: “Galo, galo amanheceu.”

Só quando a violência parou, a mãe, André e Duarte regressaram a casa. Tornaram a aproveitar a boleia de Quirino. “Ainda havia carros queimados na estrada”, recorda ela. A cidade procurava a normalidade possível. Em casa, tudo no sítio. “Os bichinhos todos tratados. Ninguém roubou nada ali. Se a gente tinha ficado, talvez nada tivesse acontecido à gente. Ela [a Maria Moderno] sempre foi boa mulher.” Nem todos podem dizer o mesmo. Havia largas centenas de mortos para enterrar. Muita gente fugiu para a África do Sul.

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A tia Rosa fugiu para a África do Sul. Estava em Cahora Bassa, na província de Tete, com o marido e os filhos, de sete e cinco anos. O tio Agostinho trabalhava na barragem. Chefiava 18 elementos da Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil, a milícia colonial, treinada para manejar armas e fazer operações de caça ao homem.

Ela ouviu as notícias pela rádio. E se “aquilo” chegasse ali? E se toda a população “negra” se virasse contra toda a população “branca”? Que seria da família? “Parece que há males que vêm por bem”, diz, agora. Paulo foi mordido por um cão e a sabedoria de então abria duas hipóteses: “Se o cãozinho morresse, tinha raiva. Se não, o pequeno é que tinha raiva e tinha de ser tratado.” Como não morreu, só havia um caminho: o da África do Sul.

Viajaram até Lourenço Marques. Havia uma corrida aos bancos, aos consulados, às companhias de aviação. “Foram dois ou três dias [no consulado] para ter a ‘visa’. O tio tremia. Eu tremia. Chegámos a ouvir na camioneta o bilheteiro a dizer: ‘Até aqui vocês mandaram, agora vão ser mandados pela gente.’ Fomos para embarcar, não havia viagens. Fomos duas ou três vezes ao aeroporto.” Cruzaram-se com Quirino. Ele intercedeu por eles: “Era um colega que ia com o filho ao médico”.

Desembarcaram em Joanesburgo. “Levávamos uns saquinhos com umas pecinhas de roupa. Também não havia muita roupa, como hoje. Estávamos no aeroporto. Não sabíamos para onde ir. O tio chorava, eu chorava.” Ao vê-los naquele desamparo, um motorista de táxi aproximou-se. Eles não falavam inglês. Ele falava um pouco de português. O tio disse-lhe que tinha alguém no Bez Valley. E ele prontificou-se a levá-los, apesar de não saberem o nome da rua, nem o número da porta. Iam à procura. Entraram no subúrbio e a tia viu um cunhado dela a caminhar com um amigo. Nem queria acreditar. Ficaram uns dias. O suficiente para se restabelecerem e reorganizarem. Acolheu-os o tio João, que fora a salto para a África do Sul em 1960, morava em Hennenman, uma pequena cidade do Free State.

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O tio João estava à espera da mãe quando ela aterrou no aeroporto da Madeira, em Novembro de 1974. Ela ainda agora lhe agradece a presença inesperada, o abraço apertado, as fortes palmadas nas costas. A Maria Moderno chegara na véspera a São Vicente e avisara a avó Ana. “Eu sempre senti que tenho Deus em mim. Cheguei ali e encontrei o meu irmão!”

Uma chuvada ensopara-lhe roupas e cabelos. Seguira-se um calor intenso. O nervosismo não abrandara no voo. Foram horas de choro intermitente, silenciado. A voz dela mudou. Ficou com um tom áspero. A rouquidão nunca mais passou. “Tinha ido para lá ter uma vida diferente. Voltava sem pouco nem muito, um filho em cada mão, outro na barriga.” Pensava em como seria a vida, de volta àquele vale profundo. “Para sobreviver, não era como hoje, que há Segurança Social e peditórios nos supermercados.”

Era o princípio. Naquela altura, ainda ninguém falava em refugiados, nem sequer em retornados – essa palavra só haveria de entrar no discurso dos portugueses no ano seguinte, quando o Governo criou o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais (IARN) e se tornou abismal o número de portugueses vindos da Guiné, de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe e, sobretudo, de Moçambique e de Angola.

Uma catana ao pescoço. Uma lâmina enorme, curvada, com um cabo em madeira. Tantas vezes ouvi a mãe dizer que não maltratou, que tratou com delicadeza “brancos” e “negros”, que ajudou quem pôde, que até ia levar latas de leite condensado a mães que embalavam filhos famintos, e que, nos dias do fim, lhe puseram uma catana no pescoço. Havia na mãe um grande sentimento de injustiça. Não conseguia perceber que não era o que ela fazia, era o que ela simbolizava, a simples presença dela ali, naquela terra tomada. O sentimento de injustiça desapareceu com a memória da lâmina. Talvez se tenha libertado à custa de tanto ser dita. “Uma catana? Já não sei. Apanhei tanto pedaço de mau caminho que nem é bom lembrar!”

Qualquer coisa dava faísca. Houve um novo surto de violência a 21 de Outubro, um mês e um dia após o alto-comissário português, Victor Crespo, ter dado posse ao Governo de transição chefiado por Joaquim Chissano, desta vez um confronto entre comandos portugueses e soldados da Frelimo. Muitos decidiram partir, inclusive alguns dos que antes tinham decidido ficar. “Percebi que os ‘brancos’ que ficassem iam ser maltratados”, diz o pai. Decidiu enviar a mulher e os filhos e ficar até ao fim. Ficar até às vésperas da independência, agendada para 25 de Junho de 1975, era garantir o direito a ser integrado na PSP em Portugal, o que, de certo modo, dava algum sentido àqueles anos.

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Findo o serviço militar, em Julho de 1969, o pai decidira fazer vida ali. “Eu disse cá para mim: ‘Eu sou filho de gente pobre. Se voltar para a Madeira, é para tratar de terras alheias. Metade para mim, metade para o dono das terras. Vou ficar aqui. Vou tentar ter uma vida melhor e dar uma vida melhor à minha mulher e aos meus filhos.’”

Concorreu para a Defesa Civil e para a Polícia de Segurança Pública. Ainda experimentou os caminhos-de-ferro. “Ia ser mandado para o Norte”, onde a tropa se batia contra a guerrilha. “Ia ser quase soldado e ganhar pouco mais.” Optou pela polícia. “O meu pensamento era ganhar algum dinheiro e comprar um restaurante, um café, um bar ou assim.” Não pensava num desfecho daqueles. “Havia uma guerra, mas era uma guerra de governos. Eu pensava: ‘Quando isto acabar, as pessoas ficam amigas umas das outras.’”

O Estado Novo facilitava a ida. Desde o início da guerra, fizera uma mudança estratégica. Procurava maior controlo e integração de africanos, eliminando o estatuto de indigenato, expandindo a educação, promovendo desenvolvimento económico, resume o sociólogo Rui Pena Pires no livro Migrações e Integração. E para Moçambique iam, sobretudo, funcionários públicos, professores, técnicos e pessoal de enquadramento e gestão de empresas. “Poucos se questionavam”, deduz Maria Paula Meneses. “O que estamos nós aqui a fazer? Que violência é esta? Hoje é senso comum que aquilo não fazia sentido, mas naquela altura fazia. Para aquelas pessoas, tudo aquilo fazia sentido.”

Portugal era um país rural, pobretão, semianalfabeto, velho nas ideias, atrasado nos costumes. A Madeira mais ainda. “O mundo rural era mesmo o fim o mundo. Ir de São Vicente ao Funchal era uma aventura que demorava três ou quatro horas. De vez em quando, o motorista tinha de parar para pôr água, senão [o motor] explodia. Havia um total alheamento do que era a política”, salienta o historiador Alberto Vieira.

A mãe diz: “Eu sempre disse: ‘Isto não é justo. Ir um ‘cachorro’ de um 'branco' para lá maltratar...’” Dizia depois de partir. Cresceu sem luz eléctrica, sem água canalizada, sem jornais, sem rádio, sem televisão, sem convívio com gente politizada. Quando o pai falou em ir, nem pestanejou. “Eu estava ardendo para ir. Eu não sabia o que aquilo era. Sabia lá! Queria ir para ao pé do marido!” Sentiu a imediata subida do nível de vida. “Hoje em dia, tenho fartura. Nessa altura, não. Não havia fome em casa, mas também não havia gulosices. Quando cheguei lá, a meu ver, era uma princesa. Tinha um fogão, um frigorífico, uma boa cama, um rapaz para me ir buscar a água e me ajudar em casa.” E sobrava-lhe tempo para a costura, para croché.

Adorava Porto Amélia, cidade de clima equatorial húmido. “Íamos quase todos os dias à praia. A água estava sempre quente”, recorda. Para um lado, mangal. Para outro, coral. Foi lá que descobriu a pílula, vestiu calças pela primeira vez. Só sentiu guerra naqueles dias do fim. E nos quatro meses que viveu no Quitrajo. Calor, mosquitos, doenças. E espingardas, metralhadoras, morteiros armazenados em casa. E malária a apanhar as crianças e a apanhá-la. Foi nesse desespero que me quis ter. “Pedi a nossa Senhora da Saúde que me desse uma filha para me fazer um chá.” Naqueles dias do fim, em Lourenço Marques, teve tanto medo de abortar. E medo de ter uma criança atrofiada pelo medo. “Já viste o que faz a guerra? Nasceste, graças a Deus… Chorei de alegria. Uma menina! Perfeitinha!”

*

A estrada acabava antes da casa dos avós. Os tios, Ernesto e Gabriel, alcançaram a mãe com duas crianças e três malas. Tinha “umas roupinhas, uns sapatinhos” e 7500 escudos – não era permitido trazer mais de 2500 por pessoa. A avó Ana usava roupas pretas, longos cabelos presos num ó. O avô Manuel morrera um ano antes com um cancro intestinal, deixando três dos oito filhos para terminar de criar.

Quando o pai voltou de Moçambique, pegaram no dinheiro que tinham, pediram algum emprestado, compraram um terreno rente à estrada e começaram a construir uma casa. Fizeram-na por fases. São Vicente não tinha esquadra. O pai foi colocado em Lisboa. Ainda lá trabalhou um ano e meio. “Havia colegas que iam visitar a família nas folgas. Eu não podia fazer isso. Fazia ‘gratificados’. Às vezes, fazia três. Também… vim de África sem nada… Queria era ganhar algum para ir mandando.”

Há ainda quem se pergunte como foi possível 505.078 portugueses integrarem-se tão depressa. E há cada vez mais quem conte como foi. A mãe não tem memória de se ter sentido olhada como intrusa. O pai, sim: “Alguns pensavam que os retornados não tinham direito a voltar – vinham tirar o trabalho deles, a comida deles.”

A imprensa, tomada pelo calor da época, não tratou de esclarecer a opinião pública – era como se fossem todos reaccionários, exploradores de “negros”, a fugir a uma mudança aplaudida pelo mundo, como se atrás deles não houvesse violência. E a economia estava em baixo. Com a criação do IARN, em Março de 75, o país começou a organizar uma resposta. E essa resposta gerou ainda mais reacção.

A mãe nunca ouviu falar em incentivos para fazer casa ou montar negócio. A prima Conceição, residente no Funchal, falou-lhe numa pequena ajuda e ela foi averiguar. “Trouxe quatro cobertorzinhos fraquinhos. Dei um a minha mãe, outro a minha sogra, fiquei com dois. Não dormi com eles. Usei-os para passar a ferro. Trouxe umas roupas, mas não me serviam, dei-as a uma cunhada. E trouxe manteiga. Fizemos um bolo e não se podia comer. Nesse dia, fiz cruz: havia Nossa Senhora de me dar força a mim e ao meu marido para a gente não andar à esmola de ninguém. Muito obrigada! Não me falta nada. Foi preciso muito esforço, mas nunca mais pedi nada a ninguém.”

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Muitos dos sete mil que a descolonização atirou para o arquipélago não tardaram a partir – para a África do Sul, para o Brasil, para a Venezuela, para o Reino Unido… “Ficaram os que arranjaram trabalho. A ilha esperava por tudo e não tinha nada”, resume Alberto Vieira. “Nem a ilha tinha condições para os receber, nem eles estavam dispostos a voltar ao passado. Depositaram a esperança na emigração.”

Em todo o país houve quem tivesse tornado a partir. Aquando dos censos de 1981, 60 mil dos que tinham vindo das antigas colónias já cá não estavam. E no início dos anos 80, refere ainda Rui Pena Pires, outros 12 mil. A família reflectia o movimento de saídas do território nacional. Era uma família cheia de ausências.

O tio João continuava na África do Sul. A tia Rosa e o tio Agostinho também. O tio Arlindo foi para a Venezuela. O tio Martinho e o tio Gabriel também. Dos homens do lado da mãe, já só faltava o tio Ernesto. “Eu achava-me envergonhado. Ia à missa e já não via rapazes”, conta ele. “Todos caminhavam e eu ali, armado em tonto. Um homem… Sozinho... Eu pensei: ‘Bem, vou caminhar também!’” E lá foi ele.

Tios partiam, primos partiam, vizinhos partiam. Um dia, os irmãos partiram. A emigração é um contínuo desde a II Guerra Mundial. Nunca parou, embora tenha abrandado nos anos de euforia. Portugal é dez milhões de pessoas aqui dentro e dois milhões de pessoas lá fora. “Não penses que foram todos por querer!...”, adverte a mãe. “Quantos foram mesmo sem querer? Como esses que agora vêm para aqui…”