Renato Miguel do Carmo, in Público on-line
É fundamental conceber a política de igualdade como a verdadeira reforma estrutural.
Como tem sido claramente demonstrado por vários estudos nacionais e internacionais, Portugal é um dos países mais desiguais da Europa e da OCDE. Este dado não tem nada de novo e é sobejamente conhecido. Todavia, apesar desta evidência, o elevado nível das desigualdades nunca foi encarado em Portugal como o alvo primordial das políticas públicas. Em certos períodos elegeu-se a atenuação e a redução pobreza num dos objetivos fundamentais de atuação. Políticas como o Rendimento Social de Inserção e, particularmente, o Complemento Solidário para Idosos alcançaram resultados relevantes. Contudo, o efeito que estas políticas tiveram na redução da desigualdade, apesar de importante, foi relativamente circunscrito. E isso é perfeitamente natural, já que estas não foram concebidas para diminuir a desigualdade. É claro que pobreza e desigualdade são fenómenos parcialmente relacionados que se alimentam mutuamente. Mas uma coisa é certa: a desigualdade não se resolve somente com políticas de combate à pobreza. Um dos problemas fundamentais que decorre do nível de desigualdade atingido em Portugal tem a ver com a sua persistência, como se tratasse de um ciclo inquebrável que não cessa de reproduzir fortes assimetrias e divisões entre a população.
Nas investigações desenvolvidas e publicadas no âmbito do Observatório das Desigualdades, temos alertado para o facto das desigualdades deterem um caráter multidimensional e sistémico. Na verdade, identificam-se fortes desigualdades na distribuição dos rendimentos, designadamente na dispersão salarial, que tem sido um dos principais motores do tal ciclo. Mas também a desigualdade que aumenta a desproporção entre os rendimentos provenientes do trabalho, que se comprimem, face a outras fontes de rendimento e de riqueza, como o capital, que se expandem. No entanto, para se perceber como o ciclo da desigualdade se reproduz é fundamental ir para além do rendimento e enquadrar outras dimensões.
A este respeito posso nomear algumas: as desigualdades educacionais, que continuam a ser determinantes num país que mantém os maiores défices de escolarização da Europa; as desigualdades territoriais, que aprofundam a distância entre as periferias e as maiores cidades, mas que simultaneamente polarizam diferentes territórios no interior das áreas metropolitanas; as desigualdades perante a mobilidade, onde quem detém meios de transporte particular leva menos tempo nas deslocações diárias; as desigualdades de género, que são transversais e se desenvolvem tanto nos locais de trabalho, onde a disparidade salarial a favor dos homens se mantém, como no espaço doméstico, onde as mulheres continuam a assegurar a maior parte das tarefas; as desigualdades nas práticas de cidadania e de ação coletiva, nas quais os menos escolarizados e qualificados tendem a estar mais arredados. Poderia continuar, contudo, grande parte destas dimensões estão identificadas e relativamente bem estudadas.
Uma leitura transversal destes estudos concluirá sem grande dificuldade que a desigualdade é um dos principais pilares que estruturam a sociedade portuguesa. Um pilar perverso que tem de ser removido por intermédio da construção de uma reforma estrutural que atinja diferentes dimensões e setores. Esta reforma terá de incidir na política de rendimento quer no que diz respeito à sua devolução e recuperação, quer na implementação de políticas de maior progressividade fiscal sobre os escalões de rendimento do topo, capazes de, simultaneamente, englobar as diversas componentes do rendimento e da riqueza, como o capital e a propriedade. Mas uma reforma estrutural deverá ser mais do que uma reforma fiscal. Tem de ser uma reforma que aprofunde a escolarização nas diferentes gerações; uma reforma que invista no transporte público para todos; uma reforma que aumente o salário mínimo, equipare as remunerações entre homens e mulheres, e resolva os problemas da precariedade laboral; uma reforma que invista nos equipamentos e serviços públicos, como a rede pré-escolar ou o apoio à população idosa; uma reforma que integre as pessoas com deficiência nos vários domínios da vida social e profissional; uma reforma que contemple a equidade entre territórios como um princípio básico de intervenção. Estas e outras políticas necessárias não representam slogans vazios, como certos políticos e comentadores se apressam a classificar. Pelo contrário, são os vazios que se perpetuam na sociedade portuguesa que têm de ser urgentemente preenchidos. E, para tal, é fundamental conceber a política de igualdade como a verdadeira reforma estrutural.
Sociólogo do ISCTE-IUL e do Observatório das Desigualdades