Ana Dias Cordeiro, in Público on-line
A magistrada que coordena a unidade de investigação destes crimes no DIAP de Lisboa, Maria Fernanda Alves, diz que os processos ficam muitas vezes suspensos a pedido da vítima. Tal acontece, em parte, por medo de represálias ou relutância em deixar a relação.
Marília deu o primeiro passo e, naquela noite, a polícia foi a sua casa. Não eram visíveis marcas de agressões físicas. A mulher de 42 anos queixou-se sobretudo das violentas discussões e da humilhação. Durante anos, perdoara – afinal, ele era o pai dos seus dois filhos. Nessa noite, porém, não hesitou: saiu com eles e mudou-se para casa de uma irmã. Não mais veria o olhar do marido toldado pelo álcool. Não mais aceitaria os seus brutos modos.
O primeiro passo era essa primeira queixa, e a saída de casa, com tudo o que poderia seguir-se: ofensas mais frequentes e intensas, ameaças, perseguições, vergonha ou culpa de destruir a família, dificuldade em viver apenas de um rendimento, o seu.
Quando a queixa é encaminhada pela Polícia de Segurança Pública (PSP) para o Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa, este delega na polícia a investigação. E como acontece com as cerca de 190 queixas que segundo o DIAP de Lisboa, em média, são tratadas todos os meses, Marília (nome fictício) foi notificada. No dia da inquirição, porém, não quis depor contra o marido. Calou todo o ressentimento, usando do direito de não prestar declarações para pessoas com ligações familiares com o suspeito. O processo foi suspenso.
A falta de colaboração das vítimas, e de familiares ou vizinhos para testemunhar, dificulta a investigação por crimes de violência doméstica, diz a procuradora da República Maria Fernanda Alves, que coordena a Unidade contra o Crime de Violência Doméstica do DIAP de Lisboa.
Quando não é possível recolher prova ou o processo já foi antes suspenso, a pedido da vítima e com o acordo do suspeito, há arquivamento. O mapa de movimentos de inquéritos de violência doméstica do DIAP de Lisboa, em 2014, mostra que 1527 processos foram arquivados, 206 suspensos e 1281 estavam, no final do ano, pendentes. Estes números incluem quer processos abertos ao longo do ano, quer transitados de anos anteriores. Apenas 252 resultaram em acusação.
Nessa minoria que chega a julgamento, e quando são chamadas a depor, algumas vítimas retraem-se. Dos dados referentes a 2014, tratados pelo DIAP de Lisboa até final de Fevereiro deste ano, constam 68 condenações por violência doméstica. Dessas, em apenas sete foi decretada pena de prisão efectiva.
As penas suspensas são habitualmente acompanhadas de medidas de proibição de contactos, afastamento da residência ou de vigilância electrónica que nem sempre previnem situações mais extremas. No caso conhecido de Manuel Baltazar “Palito”, o arguido já tinha sido condenado por um crime de violência doméstica a pena suspensa com proibição de contactos e vigilância electrónica quatro meses antes dos crimes pelos quais está a ser julgado: a morte da tia e da mãe da ex-mulher, também atingida, bem como a filha, em Abril 2014 em São João da Pesqueira.
Medo de represálias
Para haver condenação, será preciso repetir tudo o que foi dito em fase de inquérito e isso nem sempre acontece: por medo de represálias, preocupação com os filhos, vontade de permanecer na relação e, ao mesmo tempo, impulso para a deixar; por sentimento de impotência para enfrentar a realidade ou vergonha.
No caso de Marília, haveria um pouco de tudo isto e, ainda, esperança que o marido mudasse o seu comportamento. Caíra na ilusão criada pelo ciclo da violência, assim descrito por psicólogos e sociólogos: a uma primeira fase de tensão, segue-se um crescendo e uma explosão com os ataques verbais a poderem assumir a forma de violência física; depois uma acalmia, a que chamam de “lua-de-mel”, e novamente, sem aviso, um crescendo e uma explosão. Com o passar dos anos, os intervalos entre as diferentes fases tornam-se mais curtos: uma explosão que, no início, podia verificar-se uma vez por ano, passa a acontecer mais vezes.
Cerca de um mês depois da primeira participação à polícia, Marília fez segunda queixa, denunciando uma nova situação de ofensas verbais. Tinha voltado para casa com os filhos pouco depois da primeira denúncia. A PSP fez nova reavaliação, e a situação está, neste momento, a ser acompanhada por elementos da Equipa de Proximidade e Apoio à Vítima. Os agentes telefonam à vítima ou deslocam-se à residência – fazem-no (mais do que uma vez por semana) sempre que o risco é considerado elevado.
A procuradora Maria Fernanda Alves vê em Marília “um caso típico” da falta de colaboração que encontra em situações de violência doméstica – que podem também ser contra crianças ou idosos mas é em grande parte uma violência conjugal. A queixa não tem valor de prova; só o depoimento da vítima na Divisão de Investigação Criminal da PSP ou, nalguns casos, no DIAP. Se não houver registo de agressões físicas, com recolha de prova documental pela polícia (como fotografias tiradas à vítima) quando chamada ao local, esse depoimento ou inquirição é vital para a investigação de um crime perpetrado na intimidade. Vizinhos e familiares da vítima podem aceitar depor, mas isso também é raro.