Pedro Sales Dias, in Público on-line
PJ fez buscas no "convento de Santa Luzia", em Requião, Famalicão. Há décadas que uma associação de fiéis se faz passar por uma ordem religiosa. Noviças que desobedeciam sofriam castigos físicos e eram impedidas de comer e de ver a família.
Inspectores da Polícia Judiciária do Porto fizeram buscas esta quarta-feira, manhã cedo, no “convento de Santa Luzia” da Fraternidade Missionária do Cristo Jovem, em Requião, Vila Nova de Famalicão, onde estiveram a recolher documentos e objectos até ao início da tarde. O padre Joaquim Milheiro, de 84 anos, e três falsas freiras, que surgiram com vestes típicas, são suspeitos de terem agredido e escravizado pelo menos seis jovens noviças nos últimos dez anos. Foram constituídos arguidos e deverão ser ouvidos na próxima segunda-feira no Ministério Público de Famalicão, indiciados pelos crimes de maus tratos e de escravidão.
A fraternidade é, na verdade, uma comunidade católica ultraconservadora onde não entram mulheres de calças, nem homens com barba ou cabelo cumprido, e que funciona num terreno que foi há décadas comprado pelo padre. Foi ali que se refugiou, retirado da vida activa sacerdotal, após ser alvo de um inquérito na Igreja que foi inconclusivo.
Esta nova investigação, que começou no ano passado na sequência de uma denúncia às autoridades por duas noviças daquela fraternidade, poderá, afinal, revelar o que poderá ter estado na origem de outra situação que culminou com o suicídio de outra jovem que há três anos foi encontrada morta num poço daquela fraternidade. A denúncia relaciona as agressões de que foi repetidamente alvo com a solução que encontrou para escapar: preferiu pôr termo à vida, adiantou fonte da PJ.
A fraternidade existe desde 1978 e há vários anos que o edifício onde está instalada é classificado, sem hesitações, pelas gentes de Requião como um convento, gentes que também acreditam que a fraternidade é uma ordem religiosa liderada pelo padre. Nunca foi, porém, nem uma coisa nem outra. A arquidiocese de Braga reagiu ao início da noite desta quarta-feira com um comunicado às notícias. Sublinha que em causa está uma “associação de fiéis com estatutos aprovados” em 1978 que “nasceu de um movimento para jovens que posteriormente construiu um edifício”.
O que poderá explicar então que as três arguidas, entre os 60 e os 70 anos, se proclamem freiras e que os relatos das vítimas dêem conta de que viveram naquela fraternidade sendo recorrentemente impedidas de ver a família e sujeitas a castigos corporais e até impedidas de comer quando não obedeciam às ordens destes arguidos? A Igreja Católica, através da Arquidiocese de Braga, não responde. No comunicado não aproveita para desmentir que em causa estão mulheres que, legitimadas por um padre, agiam como freiras de facto num edifício que nas últimas décadas assumiu o nome de convento, até para alguns padres que o PÚBLICO contactou e que não compreendem o que terá levado a Igreja a pactuar com o equívoco de que a fraternidade é uma congregação religiosa com regras de obediência próprias.
“O que posso dizer é que aquilo não é uma ordem religiosa e que não está sob a alçada da Conferência Nacional dos Institutos Religiosos de Portugal (CIRP). Está sob a dependência da arquidiocese de Braga. Nem aquilo é um convento, nem elas são freiras nem noviças. O que sei é que funciona como um centro espiritual e que no interior tem réplicas de santuários marianos europeus”, disse ao PÚBLICO o padre José Vieira, presidente da CIRP.
O equívoco, porém, instalou-se tão credível que surge como um segredo bem guardado há várias décadas por todos. Foi estabelecido de tal forma que o edifício da associação de fiéis está instalado na “Rua do Convento”. A própria Igreja assume no Anuário Católico que é essa a morada do padre Joaquim Milheiro, que o PÚBLICO tentou contactar sem sucesso.
No comunicado, contudo, a arquidiocese já preferiu usar esta quarta-feira o termo “casa” para dizer que esta, “no segundo domingo de cada mês”, está “aberta ao público e muitas pessoas participam em actos formativos e litúrgicos”. Foi, segundo o comunicado, no final do ano passado que ex-membros da fraternidade informaram a arquidiocese de “presumíveis anomalias na vida quotidiana da comunidade”. A arquidiocese garante que iniciou então uma investigação interna. “As irmãs sempre manifestaram plena liberdade na sua estadia”, acrescenta ainda a arquidiocese.
Fontes da Polícia Judiciária garantem que as “irmãs” vítimas dos maus tratos abandonaram a fraternidade e a Igreja Católica. Duas delas, com pouco menos de 20 anos, estiveram a ser ouvidas na PJ do Porto até ao início da noite desta quarta-feira. “Sou o advogado da instituição e serei também do senhor padre e das freiras que serão ouvidas pelo Ministério Público. Não há ligação entre a situação da noviça que optou por pôr termo há vida há três anos e estas acusações de maus tratos”, disse o advogado Ernesto Salgado. O PÚBLICO tentou mais tarde, sem sucesso, questioná-lo sobre a condição de as arguidas não serem afinal freiras.
Fraternidade vendia "cruzes do amor" por 650 contos em 1999
Terá sido em Fevereiro de 1999, que a fraternidade e o padre foram referenciados publicamente pela primeira vez. Num artigo no PÚBLICO, era explicado o crescente fenómeno da “Cruz do Amor”, um símbolo apocalíptico, não reconhecido pela Igreja Católica, que estava a ser instalado nas igrejas, casas de padres e casas de fiéis. Especialmente difundida em Braga, na sua origem estava esta fraternidade que já tinha então uma grande tipografia, designada “Boa Nova” no interior das suas instalações e um centro social. A tipografia servia então para divulgar a “Cruz do Amor” e a solução para a catástrofe à porta das igrejas de Braga através de um prospecto onde se lia que a intenção era de que a cruz chegasse a “todas as famílias de Portugal e do mundo”, para que “neste mundo paganizado, sem Deus, a Cruz do Amor passe a ser o centro da família”. Seria, quando chegasse o fim do mundo, a “tábua da salvação” para quem a comprasse e instalasse em casa, no quintal ou no jardim. Funcionaria como uma “arca” de regresso a Deus, mas a maior, com 7,38 metros, chegava a custar então 650 contos, o equivalente agora a 3250 euros.
Até Setembro desse ano, a fraternidade vendeu 54 cruzes, encomendadas a uma fábrica. Depois o negócio prosperou e passou a vender para o estrangeiro. Várias foram as pessoas que se queixaram de não conseguir dormir por causa de cruzes, iluminadas de noite, no jardim do vizinho. D. Jorge Ortiga, então bispo auxiliar de Braga, alertou que a cruz era “pura superstição”.