21.7.16

Na Europa de hoje os pobres e os fracos são os descartados

Texto: Isabel Guerreiro · Imagem: José Diogo Lucena, in Jornal Tornado

“ A idolatria do mercado abriu caminho aos desonestos e indiferentes”, afirma Eduardo Paz Ferreira, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em entrevista exclusiva

A Europa de hoje “não corresponde a uma sociedade decente”, “não respeita os seus cidadãos” e “tornou-se uma enorme máquina burocrática ao serviço de um modelo social injusto”. Para Eduardo Paz Ferreira, catedrático da Faculdade de Direito, na Europa de hoje “a desigualdade é cada vez maior e a preocupação com os valores do Estado Social menor”


Eduardo Paz Ferreira na apresentação do livro “Por uma Sociedade Decente”, da editora Marcador

Jornal Tornado – Numa sociedade decente onde cabe a Europa que temos hoje?

Eduardo Paz Ferreira – A integração europeia foi um acontecimento da maior importância para assegurar a recuperação económica e aproximar os povos e tem na sua génese um projecto de solidariedade e partilha de valores que correspondem à ideia de uma sociedade decente. Lamentavelmente, nos últimos tempos a União Europeia tem-se afastado muito desses valores. Num anterior livro meu – Da Europa de Schuman à Não Europa de Merkel – analiso esse processo doloroso.

Mais concretamente, tem-se afastado de que valores?

A Europa de hoje não corresponde a uma sociedade decente, desde logo, porque não respeita os seus cidadãos, nem mostra preocupação com os cidadãos ou os Estados em dificuldade. Tornou-se uma enorme máquina burocrática ao serviço de um modelo social injusto, em que a desigualdade é cada vez maior e a preocupação com os valores do Estado Social menor. A impiedade mostrada para com os refugiados, a tolerância da violação das regras de direito em estados como a Hungria ou a Polónia são os exemplos mais visíveis da quebra do ideais que estiveram na génese de um processo de união que só conduziu a uma maior divisão.

Numa Europa decente há lugar para cantarem vitória os poderosos, os mais fortes, o mundo dos mercados financeiros e da especulação?

Lamentavelmente, como tem explicado com grande clareza e coragem o Papa Francisco não há lugar para os pobres e os fracos. Estes são os descartados, aqueles de que a sociedade se pretende livrar. A idolatria do mercado destruiu as fundações das sociedades mais justas e abriu caminho aos desonestos e indiferentes. A especulação financeira criou gravíssimos problemas que se vieram a repercutir sobre a economia e os contribuintes.
Eduardo Paz Ferreira, professor catedrático da Faculdade de Direito

Eduardo Paz Ferreira, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
UE em “processo de degradação”

Que comentário lhe merece a decisão da Ecofin, de abrir o processo de sanções a Portugal e Espanha por défice excessivo?

Não é uma decisão surpreendente em face do processo de degradação da União Europeia, mas simboliza claramente a afirmação do poder dos estados fortes e a intenção de criar as maiores dificuldades a quem pretende seguir um via diferente, mesmo que muito moderadamente diferente. Sublinhe-se que, antes de Portugal, houve 160 violações das regras orçamentais (estúpidas e destituídas de sentido) sem que tenha havido lugar a qualquer sanção.

Os tecnocratas de Bruxelas triunfarão mais uma vez sobre a Europa falida dos valores, da solidariedade e da convergência?

Tanto quanto se pode perceber do que se passa neste momento sim. O governo português não conseguiu reunir os apoios políticos necessários e parece estar a tentar satisfazer os desejos da Comissão. Resta esperar que essa seja uma vitória pírrica e que acelere o despertar da consciência dos europeus.

Depois do Brexit, o que se seguirá? Acredita mesmo que ele se concretize ou haverá manobras de bastidores?

Parece-me evidente que o Brexit prosseguirá. A questão colocar-se-á exclusivamente nos “timings” e nos modos de relacionamento futuros ente a União e o Reino Unido. Do Brexit resultarão problemas graves para o Reino Unido no plano económico, como está abundantemente demonstrado num conjunto de estudos das mais várias proveniências e, no plano político, com a possibilidade de um novo referendo na Escócia e as dificuldades de fazer a Irlanda do Norte aceitar esta solução. As consequências negativas, no entanto, irão provavelmente muito mais longe e atingirão a União Europeia e os seus elos mais fracos. O FMI prevê uma quebra do PIB português de 0,5%.

Continua a defender a permanência de Portugal no euro?

Sim, como mal menor. Uma saída unilateral e não apoiada de Portugal lançaria o país no caos financeiro.

Admite a existência de um referendo sobre o assunto em Portugal?

Não me parece que fosse útil um referendo que, de resto, quase seguramente iria no sentido da permanência. Veremos como evoluirão as coisas.

Se escrevesse hoje um livro sobre o desassossego, como descreveria a sua visão sobre o futuro da Europa?

Infelizmente, com muitas sombras. Com a sensação que estamos numa Nave de Loucos (para citar um velho filme), sem qualquer capacidade de comando e direcção e com as forças do mal a crescer. Mas, como escreveu, Gramsci, contra o pessimismo da razão teremos de recorrer ao optimismo da acção.