Ana Cristina Pereira, in Jornal Público
Foi lançada no final do ano por uma mulher que se bate em tribunal para ser tutora da mãe cuja vontade, diz, não foi respeitada. Em poucos dias, pedido de mudança da lei teve mil apoiantes.
O Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa decidiu que deve ser o irmão mais velho a gerir a vida e os bens de Maria e não a mais nova, como ela queria. Indignada, a filha não só recorreu, como lançou uma petição a solicitar a revisão do regime jurídico das incapacidades das pessoas maiores, em vigor desde 1966.
A petição reunia nesta segunda-feira à tarde 1045 assinaturas. “Com mil assinaturas já pode ser publicada no Diário da República, mas queremos chegar às quatro mil para que o assunto seja debatido em plenário da Assembleia da República”, esclarece a primeira signatária, a filha, Teresa Silva.
Teresa conhece a proposta de alteração que o Governo está a estudar deste Abril do ano passado. Sabe que o projecto de proposta troca os dois institutos em vigor (interdição e inabilitação) por um outro, flexível, ajustado às necessidades de cada um (designado "maior acompanhado", à luz do princípio de que a pessoa não deve ser substituída na sua vontade mas sim acompanhada nas decisões que toma). Quer acelerar essa mudança.
No dia 27 de Dezembro, colocou na Internet uma petição intitulada “Solicita legislação que consagre a promoção, a protecção, o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com capacidade diminuída”. Parece-lhe “inacreditável” que a vida daquelas pessoas continue a ser decidida com base num regime jurídico que foi publicado em 1966. “Que justiça é esta que tem esta lentidão a responder às alterações da sociedade?”, questiona.
Os signatários – que incluem pessoas como António Leuschner, presidente do Conselho Nacional de Saúde Mental – entendem que urge reconhecer às pessoas com capacidades diminuídas “o Direito a serem acompanhadas nas suas decisões por alguém da sua confiança, devendo ser-lhes dada toda a ajuda possível para que sejam as próprias a decidir”.
A lista de reivindicações para as pessoas com capacidades diminuídas inclui ainda “o Direito a que alguém as represente se e quando, de todo, não conseguirem tomar decisões livres e esclarecidas sobre determinados aspectos das suas vidas". E “o Direito a que a [sua] vontade antecipadamente expressa seja respeitada”.
Tribunais decretam cinco vezes mais interdições do que há 20 anos
Declaração reconhecida por notário
Teresa Silva tem a indignação impregnada na voz. “Somos quatro irmãos e não nos entendemos quanto à gestão da vida da nossa mãe”, explica, por telefone. A mãe está em casa. Teresa contratou uma empresa para lhe prestar todos os cuidados. “Os meus irmãos acham que é um grande gasto, que há opções mais baratas, e eu acho que devemos respeitar a vontade dela.”
No dia 30 de Janeiro de 2012, quando ainda estava autónoma, a mãe chamou uma notária. Na presença de duas médicas, que se dispuseram a abonar a sua sanidade mental, declarou que, se viesse a perder capacidade de decisão, não queria que nenhum dos seus quatro filhos se instalasse em sua casa. Queria, sim, que fosse a filha mais nova a decidir eventuais tratamentos médicos e a tratar dos seus assuntos, incluindo a gestão das suas contas bancárias.
“Ela sempre pediu para ficar em casa e ter uma pessoa a cuidar dela”, assegura Teresa, sem abrandar o ritmo, sem perder o tom impaciente. “E ela sabia que eu cumpriria a vontade dela”, diz ainda.
Governo quer alterar paradigma. Em vez de incapazes, haverá maiores acompanhados
Em 2014, quando a saúde da mãe se deteriorou de forma abrupta, tornou-se evidente que perdera capacidade de se governar. Os filhos, que já estavam desavindos por outras razões, não se puseram de acordo. Teresa intentou a acção de interdição, anexando a declaração de vontade feita pela mãe.
A sentença, a que o PÚBLICO teve acesso, é de 19 de Junho de 2017. “Qual foi a minha surpresa quando vi que o tribunal, reconhecendo que a minha mãe não estava capaz, fixando a data de interdição em Dezembro de 2014, nomeou o filho mais velho como tutor”, conta. “Nem refere a declaração de vontade da minha mãe!”
O Código Civil não prevê declarações antecipadas de vontade destas. Indica a ordem de preferência da pessoa a escolher para desempenhar o papel de tutor de quem fica interdito de gerir a sua vida e os seus bens: o cônjuge (excepto se estiver separado ou for incapaz), os pais, os filhos maiores, preferindo o filho mais velho, a menos que o tribunal entenda que um dos outros dá mais garantias. Os três irmãos queriam que fosse o mais velho.
Enquadramento legal
Tinha de ser assim? “Não”, responde Rosário Zincke, que faz parte dos corpos sociais da associação Alzheimer Portugal. Enquanto advogada trata de processos desta natureza e assumiu este. “Existe enquadramento legal que permitiria atender à vontade antecipadamente expressa.”
O Direito, sublinha Zincke, não abrange só normas, também valores e princípios. Primeiro, “o juiz não está absolutamente vinculado a seguir a regra nos termos da qual, na falta de cônjuge, em princípio é o filho mais velho”. O Código Civil prevê que seja outro, se esse outro der melhores garantias. Depois, Portugal ratificou várias convenções, desde logo a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência em 2009, que aponta para o respeito pelos direitos, vontades e preferências das pessoas.
Há, nota Zincke, toda uma mudança de paradigma. E essa mudança já se vê, por exemplo, na lei que regula o testamento vital.
Teresa não se conformou. Recorreu ao Tribunal da Relação de Lisboa. "O Ministério Público veio dizer que, se calhar, em 2012 a minha mãe já não estaria em condições. Se calhar? Não é preciso provas? E os registos médicos? E os testemunhos?”
Ainda aguarda desfecho, mas já vai avisando: "Estou disponível para recorrer ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Para mim, a vontade da pessoa deve ser respeitada. Isto é óbvio, elementar. Então uma pessoa não pode decidir aquilo que quer da sua vida?!"
A experiência de Rosário Zincke diz-lhe que ainda é raro em Portugal haver declarações antecipadas desta natureza. A tendência está aí. Fernando Vieira, psiquiatra no Serviço de Psiquiatria Forense, no Centro Hospital Psiquiátrico de Lisboa, por exemplo, conhece entidades estrangeiras que começaram a dizer às pessoas com demência para preparar o futuro.
“A ideia base do novo regime é terminar com a inflexibilidade dicotómica do regime actual (capacidade/incapacidade)”, resume. A própria pessoa vulnerável ou diminuída nas suas capacidades passa a poder requerer acompanhamento (além do cônjuge, do unido de facto, de um parente susceptível e do Ministério Público). Também terá a possibilidade de designar quem a vai acompanhar.