Joacine Katar Moreira, Piménio Pereira, in Público on-line
Desafiamos a esquerda a combater o racismo e a discriminação presentes nestas quatro posições políticas.
No passado dia 12 de Janeiro, o LIVRE organizou na sua sede uma conferência que dá título a este artigo, moderada por Rosa Barreto e cujos oradores convidados fomos Joacine Katar Moreira, activista do movimento negro, e Piménio Ferreira, activista cigano.
Os partidos políticos portugueses, tanto à esquerda como à direita, são reflexo da sociedade e representam, portanto, as relações e as posições de poder nela existentes. Estas, por sua vez, são o resultado das dinâmicas históricas e dos desequilíbrios daí resultantes.
Se, historicamente, à população cigana tem sido negado o acesso a direitos fundamentais, forçada ao empobrecimento sistemático e à precariedade económica, a vários tipos de exclusão, pouco se tem falado das perseguições seculares que criminalizaram o ‘ser-se cigano’ com o degredo para as ex-colónias, condenações para as galés, trabalhos forçados, escravatura, mutilações e pena de morte, manifestando-se também na proibição do casamento entre si, de morar juntos, no exercer diferentes formas de actividade profissional (tratar com animais, comercializar), na proibição de possuir bens e propriedades, de usar vestimentas distintas e até de falar a sua própria língua.
Por outro lado, a sociedade portuguesa precisa de lidar com a verdade da sua história colonial, o que terá repercussão na forma como se relaciona hoje, por exemplo, com a sua população africana e afrodescendente, colocando fim a duas falácias. A primeira tem que ver com a superação colonial e passa pela ideia de que o colonialismo está muito distante no tempo para a desconstrução crítica das suas práticas violentas, e portanto de ter repercussões no momento presente, e alimenta-se da exaltação dos “Descobrimentos” e das “conquistas” portuguesas além-mar. A segunda falácia, a da ideia do bom colonizador, insiste em omitir factos tais como o trabalho forçado, o estatuto do indigenato, a violência das “Campanhas de Pacificação”, o tráfico de pessoas escravizadas e a escravatura.
Posto isto, e voltando ao panorama político português, assiste-se ao pouco investimento dos partidos políticos em candidatos negros e ciganos, o que advém da subvalorização dos votos destas comunidades, entendidas como pouco relevantes para a vida política nacional e politicamente alienadas. Isto faz com que também não se debatam de forma recorrente questões que afectam de forma particular estes cidadãos, como a pobreza cíclica, a segregação habitacional (note-se que 80% das pessoas ciganas não pode escolher onde vive, encontrando-se entre nomadismo forçado, habitação precária ou social, que também afecta a população de origem africana); o desemprego e a precariedade; a actual lei da nacionalidade, a lei da discriminação racial e a não recolha dos dados “étnico-raciais”; a violência e perseguição policiais; a revisão histórica dos manuais escolares, entre outros factos que comprovam as desigualdades profundas em que vivemos e que tendem a ser naturalizadas.
Neste cenário, quer a direita quer a esquerda têm-se mantido cúmplices no silenciamento e invisibilização destes problemas. A esquerda portuguesa, embora não se tratando de um todo homogéneo, não está isenta de preconceitos raciais, de reproduzir o racismo estrutural e institucional e de comportamentos de discriminação e estigmatização social, apesar de ser um campo político mais sensível e histórica e ideologicamente mais propenso a ideias de igualdade, de inclusão e da defesa dos direitos das minorias.
Desafiamos a esquerda a combater o racismo e a discriminação presentes nestas quatro posições políticas:
1) A recusa ou a secundarização da ideia de que o racismo é estrutural, portanto político e social (e histórico), e o equívoco e a teimosia em pretender combater indivíduos e não as estruturas e o funcionamento das instituições, permitindo a perpetuação da opressão histórica e da violência sistémica sobre parte da população;
2) A persistência à esquerda da ideia de que é só no quadro da luta de classes que se deve combater o racismo, uma perspectiva distorcida e que mostra o desconhecimento profundo e o desinteresse pelas questões raciais, sendo que a luta de classes e o capitalismo têm um teor racial que não pode ser ignorado, tendo o sistema capitalista no racismo um dos seus pilares;
3) A composição dos partidos de esquerda (e a consequente composição da Assembleia da República), que não representam a diversidade da sociedade portuguesa, e sendo o cerne da democracia a representação, ficam excluídas comunidades inteiras, e portanto também a defesa dos seus interesses e da sua mundivisão (que certamente trará consigo a resolução de problemas que afectam toda a comunidade) no espaço das decisões políticas. Se não por mais nada, é a qualidade da nossa democracia que está em causa;
4) A falsa representatividade, numa esquerda que não se empenha em desconstruir o seu racismo e compactua com as posições hegemónicas da sociedade e que regra geral escolhe um ou dois “representantes” das minorias étnicas para figurar nas suas listas, mas em lugares não elegíveis.
A esquerda portuguesa é hoje chamada a envolver-se nas lutas destas comunidades marginalizadas e historicamente oprimidas e a fazer valer as suas doutrinas de igualdade e justiça social.
Investigadora do CEI-IUL/ISCTE
Dirigente do SOS Racismo