in TSF
No Dia Internacional contra o fascismo e o antissemitismo, Irene Flunser Pimentel escreve um ensaio para a TSF. A historiadora considera "preocupante a emergência da atual vaga autoritária e populista, mesmo sem lhe chamarmos fascista".
«Fascismo» tem sido um termo - por vezes afastado do conceito que ele representa - glosado e repetido em tempos recentes, sobretudo na sequência das vitórias eleitorais do Brexit, de Duterte, Trump e Bolsonaro, entre outros. Pondo também em causa os direitos humanos e as conquistas democráticas alcançadas desde o pós-II Guerra Mundial, chegaram igualmente ao poder da Hungria, Polónia, República Checa, Itália e da Áustria governantes de extrema-direita, xenófobos, racistas, anti-semitas, anti-migrantes homofóbicos e misóginos. Noutros países europeus, como são os casos da França, Holanda, Suécia e da Alemanha, o populismo de extrema-direita tem aumentado de forma preocupante o número dos seus votos. Muitos comparam esta onda iliberal com a vaga de ditaduras, de tipo autoritário, fascista ou nacional-socialista, que assombrou a Europa nos anos 30 e 40 do século XX.
Mas antes de ver porquê, deve-se lembrar que o conceito de fascismo - tal como o de totalitarismo - nasceu na Itália, onde Mussolini chegou ao poder após a "marcha sobre Roma" de 1922, e passou de movimento a um regime ditatorial de novo tipo. Em final de 1914, um grupo de nacionalistas, aos quais se juntou Benito Mussolini, inicialmente socialista, tentaram levar a Itália a entrar na I Guerra Mundial, criando o Fascio Rivoluzionario d'Azione Interventista. Oficialmente, o fascismo nasceu em Milão, em 23 de Março de 1919, num encontro de veteranos de guerra, sindicalistas intervencionistas e intelectuais futuristas que se juntaram para declarar a guerra ao socialismo, considerado inimigo do nacionalismo. Foi Mussolini, que ali se encontrava, que chamou ao seu movimento Fasci di Combattimento, ou "fraternidades de combate".
Este defendia uma agenda ao mesmo tempo nacionalista, de expansionismo da Itália nos Balcãs e em redor do Mediterrâneo, e radical, com algumas reivindicacões da esquerda. Curiosamente, quando o fascismo subiu ao poder na Itália, o termo começou por ser também utilizado pelos adversários de Mussolini, que se intitularam a eles próprios antifascistas. Após a II Guerra Mundial, por razões evidentes, o termo ficou com má fama, mas, mais tarde, nos anos 70 e 80, historiadores e politólogos usaram analiticamente o termo de fascismo para caracterizar num sentido genérico um conceito ideal-típico, ligado a ideologias, movimentos e regimes existentes em diversos países e períodos.
Procuraram assim detetar um "mínimo fascismo", isto é, condições mínimas que certo grupo ou regime político deve ter para ser considerado fascista. Por seu lado, Stanley G. Payne (Fascism: Comparison and Definition, 1980) elaborou uma lista de características identificadoras do fascismo, que incluía a criação de um Estado autoritário, um setor económico estatal forte, com uma política antiliberal, anticomunista e anti-conservadora. Com o historiador Roger Griffin (The Nature of Fascism, 1993), a ênfase foi colocada na análise da retórica do fascismo, ao considera-lo uma ideologia baseada num mito «palingenético» - referindo-se à noção de «renascimento nacional» e de criação de um «homem novo» -, ultra-nacionalista e populista, mas anticonservadora, que transcendia as classes revolucionária.
O mito mobilizador fascista era uma visão do renascimento eminente da nação, após a decadência provocada pelo liberalismo através de um movimento purificador que eliminasse a ameaça socialista e comunista internacionalista. Já no século XXI, o historiador suíço Philippe Burrin (Fascisme, nazisme, autoritarisme, 2000) caracterizou o fascismo como tendo a «ambição de formar uma comunidade nacional unificada e mobilizada em permanência», militarizada e anti-igualitária, excluindo toda outra fidelidade do que a votada a um chefe, personificador do destino coletivo nacional. Por seu lado, Emile Gentile (Qu´est ce que le fascisme? Histoire et interpretation, 2004), definiu o fascismo como um fenómeno político moderno, nacionalista, revolucionário, totalitário, racista e imperialista, antiliberal e antimarxista, organizado num partido miliciano, com uma conceção totalitária da política e do Estado.
Afirmando o primado absoluto da nação, o fascismo entendia esta última como uma comunidade organizada de forma étnica e hierarquicamente homogénea, encabeçada por um Estado total corporativista, com vocação de poder e de conquista visando a criação de um "homem novo" e de uma ordem nova. Decididos a destruir a civilização democrática e liberal, a ideologia e o regime fascistas pretenderam substituir radicalmente os princípios de igualdade e liberdade, bem como os direitos do homem e do cidadão, definidos pelas Luzes e pelas revoluções democráticas do final do século XVIII. Um ano depois, Robert Paxton (The Anatomy of Fascism, 2005) definiu «o fascismo como uma forma de comportamento político marcado pela preocupação obsessiva com o declínio, a humilhação e a vitimização da comunidade nacional». O mesmo autor insistiu na ideia de que o fascismo se "normalizou" e chegou ao poder, com as indispensáveis «cumplicidades conservadoras», para acabar com a luta de classes, o sindicalismo e as liberdades democráticas.
Fascismo e nazismo: semelhanças e diferenças
Em parte ligado ao conceito de fascismo genérico, que englobaria todas as ditaduras europeias dos anos 30 e 40 do século XX está a pergunta: foi o nacional-socialismo alemão um fascismo ou, pelo contrário, um fenómeno único e singular? Foi certamente singular, a nível de regime, pois teve uma dinâmica ideológica racial e elevou a Volksgemeinschaft («comunidade nacional») acima do Estado, que era "sagrado" para o fascismo italiano. Comparado com a relativa limitação da penetração da ordem fascista na Itália, o nazismo teria representado o domínio total do Estado sobre a sociedade. Por outro lado, a uma política externa, expansionista, mas mais «tradicional» da Itália, a da Alemanha nazi caracterizara-se pela vontade de domínio racial total e imperialista do nazismo, baseada na conquista de Lebensraum («espaço vital»).
Já em 1976, Zeev Sternhell considerara não poder haver comparação entre o terrorismo de Estado nazi e a ditadura fascista na Itália, que teria deixado graus de autonomia a vários setores da sociedade civil. Para este autor, a diferença entre fascismo e nazismo é qualitativa, devendo-se olhar-se para a importância das ideologias e não só para a prática dos regimes, para se distinguir entre nazismo e fascismo, bem como este do autoritarismo civil ou militar. Pode-se, porém, dizer que nazismo e fascismo representam espécies distintas no interior de um mesmo género, sem que isso implique uma identidade total. Para os que defendem esta conceção, as semelhanças entre os dois regimes passam a ter relevância. Mussolini e Hitler chegaram ambos ao poder através de uma aliança com as elites industriais, rurais, militares e burocráticas.
Ambos se basearam num culto belicista e militarista, alimentado pela crise sócio-política a seguir à Grande Guerra e foram nacionalismos exacerbados e chauvinistas, com tendências imperialistas e expansionistas. Os dois regimes, dirigidos por um partido único e um chefe carismático, caracterizaram-se ainda pela total intolerância relativamente a toda a oposição e por terem uma política anti-liberal, anti-socialista e anti-marxista, de destruição das organizações da classe operária. Assinalando as semelhanças entre o nazismo e outras formas de fascismo, o historiador Ian Kershaw não deixou de considerar, porém, que o primeiro teve pretensões totalitárias e exigências monopolizadoras sobre a sociedade. Por outro lado, enquanto na Itália fascista, o Estado tradicional acabou por ter uma supremacia sobre o partido, na Alemanha nacional-socialista, o partido, instâncias em permanente rivalidade e um Estado SS teriam acabado por dominar o Estado e a sociedade civil, especialmente depois do início da II Guerra Mundial.
Estará a haver um retorno do fascismo?
Quanto à comparação da atual onda populista liberal de extrema-direita com a vaga de ditaduras que assombrou a Europa nos anos 30 e 40 do século XX, o historiador francês Henry Rousso concordou, em 2014 que haveria à primeira vista semelhanças, por exemplo, entre as consequências da crise económica mundial de 1929 e as da crise financeira de 2007/8. Em ambas as épocas, assiste-se à subida de movimentos de extrema-direita de rejeição das elites políticas parlamentares, marcados pela xenofobia e o anti-semitismo, mas Rousso assinalou também as diferenças devido aos contextos diversos. Afirmando não se poder compreender os anos 30 sem lembrar o enorme poder de sedução exercido então, tanto pelo fascismo, no sentido genérico do termo, como pelo comunismo, considerou que os europeus ainda estariam traumatizados pelas duas guerras mundiais e pelo Holocausto, que os tornava incapazes de analisar o nosso presente e futuro.
Em 2016, Ian Kershaw, autor de uma grande biografia de Hitler, também recusou traçar paralelismos entre a subida do fascismo e a da atual vaga populista de extrema-direita, pois, segundo ele, a Europa seria capaz de resistir a uma "onda de barbárie", muito devido, em primeiro lugar, ao facto de a "liberal e pacífica" Alemanha estar muito atenta aos perigos do passado, e também ao papel da União Europeia. No entanto, chamamos a atenção para o facto de a situação atual ser muito volátil e ter mudado rapidamente, o que nos faz questionar se esses historiadores não se mostrariam mais pessimistas, hoje em 2018.
Historiador da Alemanha nazi e do Holocausto, Christopher R. Browning escreveu precisamente neste ano o artigo «The Suffocation of Democracy», onde, sem utilizar o termo «fascismo», refere as aterradoras semelhanças, mas também uma importante terrível diferença entre os anos 30 e a atualidade. Entre as similitudes, menciona os factos de, na Alemanha nazi, os partidos do centro e da esquerda não se terem unido em defesa da democracia, e de os conservadores e o Presidente Hindenburg terem utilizado os poderes de emergência de defesa da democracia para se tornarem os seus coveiros, ao aliarem-se aos nazis. Browning realça, porém, uma grande diferença na atual vaga autoritária e populista, que não necessita de proibir no imediato os partidos e a comunicação social, chegando-lhe utilizar os meios sociais online com notícias falsas de modo a tornar irrelevantes a verdade dos factos na "opinião pública".
Acrescentaríamos que, nos anos 30 do século XX, o fascismo e o nazismo, em graus diferentes, tiveram a preocupação de monopolizar as Forças Armadas, o sistema judicial e policial bem como colocar a Igreja do seu lado ou neutralizá-la. Assistimos hoje a tentativas parecidas dos dirigentes populistas de extrema-direita que chegam ao poder. Concordando que a História não se repete, penso que a matriz da história humana não tem revelado grandes mudanças e este facto torna preocupante a emergência da atual vaga autoritária e populista, mesmo sem lhe chamarmos de fascista.
*Irene Flunser Pimentel é historiadora e investigadora do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa