Bárbara Figueiredo, in JN
Avelino Cunha, de 82 anos, mora em Maiorca, Figueira da Foz, e perdeu em maio a sua "menina", Maria Manuela Pinto. Sofria de Alzheimer. Como tem vivido depois disso, só ele sabe, e enfrentar o primeiro Dia de Todos os Santos sem a mulher vai ser "mais um desafio".
"São tantas as datas importantes que agora vou viver sem ela mas, enquanto puder andar, irei ao cemitério todos os dias. Alguma vez me ia conseguir deitar sem a ir ver?", perguntou sentado no sofá onde diz ter conversado muito com Maria Manuela, noutros tempos.
Avelino perdeu Maria no passado dia 19 de maio e, desde aí, tem sido uma luta constante contra as saudades. Já o amor do "casamento mais bonito do mundo", esse mantém-se intacto.
O dia de hoje, para Avelino, que confessa ser "de famílias muito religiosas", é um novo "desafio" que pretende enfrentar, dando "três beijinhos" na fotografia da sepultura, como tem feito desde há quase seis meses. Mas é um dia novo.
Há muitos anos, contou, tinha prometido à mulher que, quando fossem idosos, faria um quarto para eles no rés-do-chão da casa, para poderem "estar no conforto e no quente". "Percebe? Eu preparei tudo, mas ela só aqui conseguiu ficar um mês e meio comigo. Eu fiz de tudo".
A história de amizade que se tornou amor
Avelino foi aos 14 anos para Lisboa, trabalhar como carpinteiro, e Maria fazia visitas regulares à cidade para acompanhar o pai em idas regulares ao hospital. Apesar de se conhecerem desde crianças, uma vez que moravam ambos em Maiorca, a amizade cresceu pelas ruas da capital e, mais tarde, quando Avelino tinha 21 anos e se tornou carteiro, já fora da cidade, a história tornou-se de amor.
"Eu ficava espantado quando vivia em Lisboa e ouvia os comerciantes ambulantes com os seus pregões e a Maria adorava também", até porque mais tarde, na Figueira da Foz, se veio a tornar vendedora de fruta no Mercado Municipal.
Os pregões de Lisboa vieram então a tomar outra importância quando Maria adoeceu, porque Avelino lhos cantava todos os dias para a fazer lembrar das coisas. "Ela lá lembrava, mas também se fartava deles e, quando isso acontecia, eu lembrava-a que nasci no dia de anos de Bocage (15 de setembro) só que ele nasceu 200 anos antes de mim e, como tal, eu sabia inventar muitas anedotas para a fazer rir", conta, ainda apaixonado pela sua Maria.
"Era uma vez uma velhinha, quase cega, coitadinha. E já mal podendo andar, encostava o seu bordão sempre olhando para o chão. Ia na estrada a passar e ouviu um cão que ladrou. A pobrezinha parou, ficando assustada, encostada no seu bordão, sempre olhando para o chão, caiu. Nisto, surge uma menina viva, formosa e ladina que disse 'Eu levanto-a avozinha e levo-a à sua casinha. Onde lhe dói, o que tem? Diga que eu vou já buscar qualquer coisa para a curar, vou pedir à minha mãe'. Não foi nada, meu amor. Tu és um anjo, uma flor, ajuda-me só a andar. Deus te pague a tua bondade, disse a velhinha a chorar", recita Avelino, recordando as vezes sem conta em que se sentou ao lado da mulher para lhe cantar esta lengalenga.
"Cantei-lhe isto, dias, dias e dias mas ela também se fartava desta história e lá tinha eu de inventar outras", para a manter por cá. Mas as histórias não eram a única forma de a manter entretida e feliz. As peras e maçãs que assava enquanto a mulher estava acamada eram servidas com uma mentira piedosa, mas que a fazia muito feliz. O segredo era dizer-lhe que a fruta vinha do terreno da rua do Castelo, onde Maria Manuela viveu quando era nova, e aí, "isso é que era vê-la comer".
No dia 12 de novembro, o casal faria 60 anos de casados e, para Avelino, continua a ser um dia feliz, por a vida lhe ter deixado intacto o amor. Maior desafio é o novo ritual de visitar a amada no cemitério neste dia. "Todos os dias a visito e lhe dou três beijinhos". O dia de hoje não será exceção.
Para o futuro, o pedido que faz é simples. "Já tenho uma carta escrita para a minha filha e para a minha neta, para quando eu morrer, meterem no meu caixão a trança que a minha mulher usou muito tempo e depois cortou, bem como as argolas grandes que usava. É que esqueci-me de meter isso com ela, porque são dias de grande aflição, sabe? Mas levo um dia comigo para ao pé dela."