15.11.18

Um Estado que inclui, uma economia que exclui

Alexandre Abreu, in Expresso

A taxa de risco de pobreza é o indicador mais habitualmente utilizado para analisar a evolução da pobreza ao longo do tempo na sociedade portuguesa. Corresponde à percentagem da população que pertence a agregados familiares cujo rendimento por adulto equivalente é menor do que 60% da mediana.1 Trata-se de um indicador de pobreza relativa, por contraste com os indicadores de pobreza absoluta de que são exemplo as taxas calculadas com referência aos limiares de pobreza de 1,90 dólares/dia ou 3,10 dólares/dia, mais comuns no contexto das análises do desenvolvimento global e da pobreza nos países do Sul.

No fundo, a taxa de risco de pobreza indica-nos a proporção da população que aufere um rendimento substancialmente abaixo do padrão normal da sua sociedade. Numa sociedade como a nossa, esta é efectivamente a forma mais relevante e apropriada de analisar e discutir pobreza: enquanto exclusão, por insuficiência de rendimento, da possibilidade de alcançar um nível mínimo de consumo consentâneo com o padrão dessa sociedade, com tudo o que isso implica em termos de acesso à habitação, transportes, cultura, etc.

A análise da evolução da taxa de risco de pobreza em Portugal nas últimas duas décadas (desde 1995, período para o qual temos dados disponíveis) permite retirar algumas conclusões importantes. Em primeiro lugar, verificamos – felizmente – que esta taxa tem tido uma tendência decrescente, de 23% em 1995 para 18,3% em 2017. Continuam a ser quase dois milhões os portugueses em situação de pobreza, o que deve envergonhar-nos a todos, mas apesar de tudo os progressos são assinaláveis. A principal excepção à tendência de redução da pobreza nos últimos vinte anos foram os anos entre 2011 e 2014, período em que a percentagem de pobres aumentou quase 2% (de 17,9% para 19,5%, correspondentes a cerca de 115.000 pobres adicionais).

Isto confirma, como tem também sido apontado por Carlos Farinha Rodrigues, provavelmente o maior especialista português nos problemas da pobreza e desigualdade, que as medidas de política económica associadas ao Programa de Assistência Económica e Financeira penalizaram especialmente os portugueses com menores rendimentos. Repare-se que, tratando-se de um indicador relativo, a taxa de pobreza ter-se-ia mantido inalterada mesmo em contexto de recessão se todos tivessem sido igualmente penalizados no seu rendimento; o facto de este indicador de pobreza relativa ter aumentado significativamente revela que, numa situação que foi de recuo generalizado do nível de vida, os portugueses com menores rendimentos sofreram com especial intensidade. É importante recordar tudo isto, contra as tentativas de reescrever a história por parte dos partidos que estavam nessa altura no poder.
Felizmente, a partir de 2015 a trajectória de redução da pobreza foi novamente retomada. Segundo o Eurostat, terão sido cerca de 59.000 pobres a menos em 2016, 73.000 a menos em 2017: um ritmo de redução mais lento do que deveria, mas seguramente passos na direcção certa, indissociáveis do aumento do salário mínimo, da actualização das pensões, da introdução da prestação social para a inclusão e das outras medidas de valorização de salários, pensões e apoios sociais levadas a cabo por este Governo.

Entretanto, existe um outro indicador relacionado com este que é menos frequentemente referido mas para o qual vale a pena olhar em conjunto: trata-se do mesmo indicador, a taxa de risco de pobreza, calculado antes de pensões e outras transferências sociais. No caso português, a diferença é impressionante: em 2016, a percentagem de pobres assim definidos passa de 18,3% (após transferências sociais) para 45,2% (antes de qualquer transferência). Quer isto dizer que, sem as pensões e apoios sociais do Estado, perto de metade da população portuguesa estaria em risco de pobreza. E ainda mais preocupante é o facto deste último indicador ter-se degradado bastante no decurso deste século, de 41% em 2003 para um máximo de 48% em 2013, ainda que tenha melhorado um pouco nos anos mais recentes

Tudo isto mostra bem a importância central da acção redistributiva do Estado, através das pensões e transferências sociais, para evitar o que de outro modo seria uma epidemia de pobreza de dimensões catastróficas. Revela também que, em Portugal, os mecanismos de distribuição primária do rendimento – aqueles que resultam das interacções de mercado – produzem tendencialmente pobreza generalizada e, nos últimos vinte anos, tem tido tendência a fazê-lo cada vez mais. Isto deve-se em parte ao envelhecimento da população e à sua resultante dependência crescente das pensões, mas também não pode deixar de ser relacionado com aspectos como as sucessivas alterações do código laboral no sentido da desprotecção da parte mais fraca.

A conclusão é necessariamente muito ambivalente. Temos um Estado bastante eficaz a incluir mas uma economia bastante eficaz a excluir. Um sistema de apoios sociais razoavelmente competente a combater a pobreza, mas uma enorme vulnerabilidade enquanto sociedade a alterações de política como as que foram impostas pelo Governo anterior.