6.11.18

Mulheres na Coreia do Norte são violadas sempre que um homem quiser

Aline Raimundo, TVI24

Violência sexual realizada por homens em posição de poder é tão comum no país que passou a ser aceite como parte de vida quotidiana, revela relatório da Human Rights Watch

As mulheres norte-coreanas são vítimas de violação e abuso sexual cometidos por oficiais que abusam da autoridade. É a conclusão de um relatório divulgado pela organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch, que entrevistou 54 refugiadas norte-coreanas e oito ex-funcionários do governo que fugiram do país desde 2011, quando Kim Jong-un assumiu o poder.

De acordo com o documento, divulgado na quinta-feira e citado pela estação de televisão britânica BBC, a violência sexual contra as mulheres realizada por homens em posição de poder é tão comum na Coreia do Norte que é vista como inevitável, passou a ser aceite como parte da vida quotidiana e pode ser considerada endémica.

A Human Rights Watch diz no relatório “You cry at Night, but Don’t Know Why (Chora-se à noite, sem se saber porquê)” que os responsáveis norte-coreanos atuam com impunidade, visto que governo não investiga denúncias nem oferece proteção às vítimas.

Embora a violência sexual e baseada no género seja motivo de preocupação em todo o lado, existem cada vez mais provas a sugerir que ela é endémica na Coreia do Norte”, refere a Human Rights Watch.

“Consideram-nos brinquedos sexuais”
De acordo com as entrevistadas, “os predadores sexuais incluem dirigentes de alto nível do partido, guardas e interrogadores de prisões, responsáveis da polícia, procuradores e soldados”. O medo das represálias políticas e a ausência de dispositivos legais para as proteger tornam as mulheres mais vulneráveis.

“Quando os polícias estão a patrulhar as ruas, se veem uma bela mulher, inventam um problema. Mesmo que ela tenha a identidade a em ordem, a autorização para viajar e todos os documentos necessários, eles dizem: ‘Ah, há algo errado’. Entregar o corpo a um polícia é tão comum… não há nada que se possa fazer”, disse Oh Jung-hee, uma antiga comerciante com cerca de 40 anos, da província de Ryanggang.
A mulher, que abandonou a Coreia do Norte em 2014, contou ter sido abusada várias vezes.


“Fui vítima muitas vezes. Quando lhes apetecia, guardas do mercado ou polícias pediam-me que os seguisse para uma sala vazia fora do mercado ou outro sítio qualquer. O que eu podia fazer?", questionou Oh Jung-hee, acrescentando que se sentia impotente para resistir ou denunciar os abusos. “Eles consideram-nos como brinquedos [sexuais]. Estamos à mercê dos homens”, referiu.

Oh Jung-hee acrescentou que, por a atitude ser tão comum, os homens não pensam que o que estão a fazer é errado e as mulheres passaram a aceitá-la.

É tão frequente que já se tornou banal. quase já nem damos conta do nosso sofrimento. Mas somos humanas. Então, às vezes, do nada, chora-se à noite sem se saber porquê”, confessou.

Para o marido de Oh Jung-hee, Kim Chul-kook, antigo professor universitário, também com cerca de 40 anos, os comerciantes como a mulher “têm de aceitar que a coerção sexual [por homens numa posição de poder] faz parte da dinâmica social e de mercado. É a única maneira de sobreviver”.

Questão de sobrevivência
Com a grave crise económica que atinge a Coreia do Norte, alvo de diversas sanções dos países ocidentais por causa do controverso programa nuclear, os lares são sustentados na maior parte do tempo pelas mulheres, que trabalham no mercado negro. Os homens, na maioria das vezes funcionários com baixos salários, têm menos liberdade de movimento. Uma situação que expõe as norte-coreanas a todo tipo de risco, sublinha o relatório.
De acordo com a Human Rigths Watch, a recusa pode significar a perda da principal fonte de rendimento, comprometendo a sobrevivência da família, o confisco de dinheiro e a apreensão de mercadorias, ou até mesmo o envio para campos de trabalho forçado ou de presos políticos por estar envolvida em atividades comerciais.

Quando um funcionário numa posição de poder “escolhe” uma mulher ela não tem opção que não seja obedecer a qualquer pedido que ele faça, seja relativo a sexo, dinheiro ou outros favores, disseram muitos dos norte-coreanos ouvidos pela organização de defesa dos direitos humanos

O relatório refere que, “na altura dos ataques, a maioria das vítimas estava sob custódia das autoridades ou era comerciante” e "tinham pouca escolha, caso tentassem recusar ou denunciar, arriscando-se a sofrer mais violência sexual, períodos mais longos de detenção, espancamentos e trabalho forçado".

Yoon Su-ryun, antiga contrabandista de ervas medicinais para a China, com cerca de 30 anos, esteve detida em agosto de 2012 e foi violada por um polícia.
“Quando ele me violou, apenas me tirou as cuecas, sem dizer uma palavra. Eu não tinha para onde fugir. Pensei: ‘o que pode acontecer-me se recusar?’. Então cedi. Fui libertada no dia seguinte. O próprio homem que me violou preencheu os documentos necessários para minha libertação.

Pensei que estava a oferecer o meu corpo para poder sair de lá e ir ter com a minha filha. Na altura nem sequer estava perturbada. Até pensei que tinha sorte. Agora que moro aqui [na Coreia do Sul], [eu sei que] é violência sexual e violação”.

O mesmo aconteceu com Park Young-hee, uma ex-proprietária rural na casa dos 40 anos, quando estava a ser interrogada por um polícia num centro de detenção preventiva, após ser apanhada a tentar fugir do país.
"Ele fez-me sentar bem perto dele... [e] tocou-me entre as pernas... diversas vezes durante vários dias", afirmou. "A minha vida estava nas mãos dele. Então, eu fiz tudo que ele queria. Como poderia ter agido de outra forma? Tudo o que fazemos na Coreia do Norte pode ser considerado ilegal, então, tudo depende da perceção ou da atitude de quem está a interrogar", realçou.
Pressão social
As norte-coreanas raramente denunciam qualquer abuso, num dos países mais repressivos e pobres do mundo, além do medo das represálias e da vergonha social, faltam apoio social e serviços legais.

"Se uma mulher é violada, é porque ela devia estar a flirtar", disse Lee Chun-seok, uma ex-professora e comerciante com quase 50 anos.
"Tive medo e vergonha", contou Yoon Soon-ae, outra vítima de violação. "Nunca contei a ninguém. Na Coreia do Norte, é como cuspir no próprio rosto. Toda a gente me teria culpado", relatou.

A violência sexual na Coreia do Norte é um segredo notório, sem resposta e amplamente tolerado”, disse o diretor executivo da Human Rigths Watch, Kenneth Roth, citado no comunicado de divulgação do relatório.

Centrado no abuso sexual por parte de homens em posições oficiais de poder e na resposta do governo em tais casos, o relatório utiliza pseudónimos porque “todos os sobreviventes entrevistados expressaram preocupação sobre possíveis consequências para si ou os familiares na Coreia do Norte”.

Apelo à Coreia do Norte para que trate violação como crime
A Human Rigths Watch, recomenda no relatório que o governo norte-coreano deve reconhecer o problema da violência sexual, exigir que a polícia investigue os casos independentemente da posição ou estatuto dos alegados autores e penalizar os infratores.

Pede ainda a criação de condições que permitam a existência de denúncias anónimas sobre violência sexual por parte de funcionários do governo e a recolha estatística das queixas.
A organização de defesa dos direitos humanos apela ainda à Coreia do Sul, Estados Unidos, Japão, União Europeia, agências da ONU e organizações não-governamentais com presença na Coreia do Norte para pressionarem Pyongyang a realizar as reformas recomendadas no relatório.


As mulheres norte-coreanas não deviam correr o risco de serem violadas por responsáveis governamentais ou trabalhadores quando deixam as suas casas para ganhar dinheiro para alimentar as suas famílias”, assinalou Kenneth Roth. “Kim Jong-un e o seu governo devem reconhecer o problema e tomar medidas urgentes para proteger as mulheres e garantir justiça para as vítimas de violência sexual”, insistiu.