18.3.19

Duas faces da União Europeia

Manuel Carvalho da Silva, in DN

A União Europeia (UE) continua incapaz de resolver graves problemas como o das migrações ou do agravamento das injustiças e degrada-se aceleradamente com o alastramento da mancha de governos de extrema-direita e, acima de tudo, com o Brexit.

Mas prossegue o rumo de chamar a si, através de procedimentos antidemocráticos, poderes e prerrogativas políticas que anteriormente incumbiam aos estados e aos governos nacionais. Vejamos dois exemplos de captura dessas atribuições com consequências pesadas: um já duramente experimentado em Portugal com imposições da União Bancária, e outro em construção no âmbito da União do Mercado de Capitais.

A União Bancária estabeleceu um conjunto de regras comuns a toda a UE e transferiu para o Banco Central Europeu (BCE) os poderes de supervisão dos bancos e de intervenção em caso de "resolução", isto é, de falência de bancos. Supostamente deveria servir para evitar novas situações em que o dinheiro dos contribuintes é utilizado para salvar bancos em caso de insolvência" (ver a "União Bancária" na página da Internet do Conselho Europeu).
Além das regras comuns e dos mecanismos de supervisão e resolução já estabelecidos, a União Bancária deveria também dispor de um sistema de garantia de depósitos, isto é, de um fundo que pudesse ressarcir os depositantes com contas inferiores a cem mil euros, em casos de falência de bancos. A Alemanha e outros países têm-se oposto à criação desse fundo e, portanto, ele pode até nunca vir a ser criado.

A União Bancária é, pois, propositadamente coxa. O BCE e a Comissão Europeia (CE) exercem com afinco as competências para eles transferidas. Exerceram-nas em Portugal (ainda informalmente) no caso Banif, e (formalmente) nos da capitalização da Caixa Geral de Depósitos e venda do Novo Banco. Não é exagerado dizer-se que a UE ditou, ou condicionou fortemente, os termos em que ocorreram estas operações.

Quando o Estado empresta ao "Fundo de Resolução" milhares de milhões de euros (por trinta anos), para salvar os bancos, captura recursos que podiam ser utilizados para amortizar dívida pública ou financiar investimento. Num empréstimo de elevados riscos, o Estado recebe juros pelo que empresta (para já 2%), mas paga juros semelhantes, senão mais altos, pela dívida pública que deixa de amortizar ou perde o retorno do investimento que fica por fazer. Moral da história: os portugueses pagam pelo que a União Europeia decide, mesmo que a decisão não salvaguarde os seus interesses e direitos.

Segundo exemplo. Em fevereiro de 2019 o Parlamento Europeu, a CE e os estados-membros acordaram lançar um Produto de Pensões Pessoais pan-Europeu (PEPP) que é publicitado como produto de pensões voluntário, complementar aos regimes de pensões nacionais. Não se trata da criação de um fundo de pensões europeu, mas antes de um quadro regulatório que pode ser usado pelas companhias de seguros, fundos de pensões e bancos sediados em qualquer um dos países da União Europeia, para oferecer produtos de pensões (vulgo, seguros ou planos de poupança-reforma) em qualquer outro país da UE. Esta proposta fazia parte do projeto da União de Mercado de Capitais e visava revitalizar os planos de pensões privados seriamente abalados pela crise financeira.

Poucos portugueses, fora dos bancos e companhias de seguros, conhecerão esta iniciativa da UE. Ninguém a discutiu. No entanto, ela pode vir a ter enormes impactos na vida de todos nós. Há sinais bem fortes de que este "produto" poderá entrar em concorrência com o atual sistema público de pensões: pode enfraquecê-lo e transformá-lo num sistema de mínimos que não garanta pensões dignas, mas apenas subsídios de subsistência na velhice. Quem disse à UE que os portugueses queriam entregar as suas pensões aos mercados de capitais? Com que direito nos podem destruir um sistema que, apesar de ainda frágil, é solidário e tem sido pilar de combate à pobreza?
Nesta aproximação às eleições europeias há que defender a democracia. Os direitos dos cidadãos e a salvaguarda dos poderes dos estados-membros, dos seus parlamentos e governos, têm de ser respeitados. Os desrespeitos de regras democráticas é uma das primeiras causas do acumular de contradições e cisões no seio da UE e do seu perigoso esboroar.