in DN
Quem entra nos campos de refugiados Rohingya em Kutupalong, no Bangladesh, na fronteira com Myanmar, depara-se com as precárias condições de vida inerentes à pobreza extrema, enfrenta olhares vazios e é rodeado de inúmeras crianças, ainda assim sorridentes.
"Aqui as crianças estudam, brincam e crescem. No Myanmar, escondíamo-nos como as galinhas se escondem para que ninguém nos encontrasse. Não tínhamos hipótese de estudar. Tínhamos tanto medo dos militares que quando o sol de punha desligávamos as luzes. O nosso sonho é que as crianças tenham sonhos, que tenham um futuro", conta à Lusa a refugiada Ali Nessa, em entrevista no âmbito de Bolsa de Exploração da Nomad.
A jovem de 33 anos, mãe de cinco filhos, e que viu "militares a atirar crianças para a fogueira", não tem dúvidas de que o futuro passa pelo conhecimento: "Quando as pessoas não aprendem é como se fossem cegas. Passam a ser inúteis, surdas".
Metade dos cerca de 1,2 milhões de refugiados em Kutupalong são precisamente crianças -- muitas já com diárias tarefas de adulto - que inundam os espaços públicos, sendo que os mais novos, sem memória de outras realidades e alheados à sua condição de miséria, emprestam ao ambiente de Kutupalong uma alegria que os campos, de facto, não têm.
Os 750 mil refugiados que em 2017, num curto espaço de tempo, fugiram e reforçaram o contingente rohingya no Bangladesh alojaram-se como puderam, num processo caótico que remediou quem fugia de violenta repressão do outro lado da fronteira.
"O exército [birmanês] batia-nos e queimava as nossas casas, os nossos abrigos. Mataram o nosso povo, torturaram-nos. Vivíamos bem, estávamos a salvo. Não havia raptos, nem assassinatos. Havia paz em todo o lado. Mas essa paz desapareceu", lamenta Abdul Jalil, 80 anos, cinco filhos e sete netos.
A segunda maior mancha verde do Bangladesh praticamente desapareceu, dando lugar a um amontoado de precárias cabanas de bambu que se aguentam no tempo seco, mas que amiúde desabam na época das monções, tragédia diária que ceifa muitas vidas e coloca desafios redobrados à ajuda humanitária.
No meio do caos, uma árvore resiste, uma imponente figueira-de-bengala em alto de colina no campo 10, e que encarna o espírito rohingya: "É uma árvore muito importante nas nossas vidas. Esta á a nossa última esperança. Várias vezes já nos salvou a vida. É uma bênção de Deus".
Shah Alam, 30 anos, antigo professor, conta como a necessidade de construir abrigos e rasgar estradas os fez desbastar a floresta, contudo "seria pecado cortar esta arvore, que tem 'algo' dentro", muito além da proteção nas monções, à sombra quando o sol esmaga, ao curso dos elefantes, privados também do seu ambiente natural.
Sem necessidade de alojamento caótico, desordenado, que uma emergência obriga, as organizações não governamentais (ONG) avançam agora com extensões dos atuais campos, fazendo-o de forma planeada e com recurso à tecnologia.
Os 'drones' [aparelhos aéreos não tripulados], por exemplo, são decisivos para mapear o irregular terreno, ajudando a encontrar melhores soluções de segurança e durabilidade neste relevo acidentado.
Os novos campos emprestam alguma dignidade em termos de espaço e acesso a serviços básicos como as casas de banho comunitárias, sendo o objetivo das ONG ir deslocando pessoas das zonas mais densamente povoadas.
Atingindo os 14 anos, a escolaridade termina e prossegue o longo calvário dos jovens, literalmente sem nada que fazer - proibidos de continuar os estudos, também lhes é negada a possibilidade de trabalhar e de sair dos campos, onde se perspetiva irem passar os próximos anos.
Com a idade -- todos aparentam ser mais velhos do realmente são -, os olhares vão perdendo vivacidade e esperança: os rohingya ficaram sem a nacionalidade de Myanmar (antiga Birmânia) no processo de recenseamento de 1982 e, de momento, não parece próxima uma solução política para o futuro destes apátridas.
"O governo do Bangladesh dá-nos abrigo como a nossa mãe. E quem nos dá comida (óleo de palma, arroz e lentilhas) é nosso pai. Mas estamos a queimar ao sol. O sol é quente. Estamos a queimar. Temos água, mas precisamos de água fresca. Outro problema é a falta de comida: não temos carne, não temos galinha. Comemos vegetais todos os dias...", lamenta-se Laila Begum, 45 anos, sete filhos.
Privacidade é um conceito que desapareceu do quotidiano dos rohingya -- os banhos, com roupa, são, invariavelmente, em ambiente público - e a noite traz novos perigos, nomeadamente para as mulheres, receosas de usar latrinas sem iluminação, locais onde há registos de várias violações.
Em Kutupalong o tempo demora-se tanto quanto as novidades, pelo que ocupá-lo é uma das preocupações das ONG em vários projetos com os refugiados, já que a saúde mental é uma das prioridades, extensível aos próprios trabalhadores humanitários.
Questões religiosas praticamente param o ritmo dos campos à sexta-feira e ao sábado, até junto às vias principais onde se multiplicam-se os pequenos ofícios, todos com tecnologia rudimentar: há barbeiros, costureiros, padeiros, ferreiros, pequenos comerciantes, tudo o que precisa uma cidade nascida do improviso.
"Não façam os rohingya chorar mais, pois já estamos sem lágrimas (...) Deixámos a nossa casa e agora vivemos como vagabundos. Não há qualquer benefício em estarmos vivos. Alá, dai-nos veneno", diz a música na rouca voz de Anu Mia, que aos 55 anos já desconfia do sonho de um dia voltar a casa.
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