Joana Gonçalves, in RR
Viu morrer, foi feito prisioneiro e acabou por ser salvo por uma criança-soldado. Enganado na hora de pedir o visto para a família na embaixada portuguesa, só se reencontrou com a mulher e os três filhos cinco anos depois. Ben chegou a Portugal em 2013, para escapar ao conflito armado no seu país. Ouça a história, na primeira pessoa, de um pai refugiado em Portugal.
Ben (nome fictício) prefere não ser identificado. O Estado português concedeu-lhe asilo em 2013, depois de ter escapado aos rebeldes na República Democrática do Congo. Escolheu Portugal pelos fortes laços que mantém com Angola, uma das nove nações que fazem fronteira com o seu país-natal.
Como ele, mais de 4.500 pessoas pediram ajuda ao nosso país nos últimos cinco anos. A maioria desses pedidos continua a acontecer de forma espontânea, geralmente logo à chegada a um aeroporto nacional.
I - "Se eles chegarem ao poder, quem é que vão governar?"
Os rebeldes entraram na nossa aldeia em novembro de 2012. Chama-se Rutshuru e fica a 70 quilómetros de Goma, uma capital provincial com um milhão de habitantes, na República Democrática do Congo.
M23 era o nome deste grupo, Movimento 23 de Março. Roubaram as nossas casas, as nossas lojas, mataram homens, violaram mulheres. Tínhamos medo de acordar um dia com toda a aldeia em chamas.
Decidimos pedir ajuda. Na altura já tínhamos soldados das Nações Unidas no nosso país. Eu pensava muitos vezes: “Se eles estão em guerra com o Governo, porque é que atacam o povo? Não compreendo. Se eles conseguirem o que querem, se eles chegarem ao poder, quem é que vão governar? Se matarem toda a gente não vai sobrar ninguém.”
Decidimos denunciar a situação a um grupo de soldados da ONU estacionado fora da aldeia. A pessoa com quem falámos disse-nos que o chefe estava fora, em Goma.
“Quando ele regressar vamos contar-lhe o que se passa”, disse-nos.
E foi isso que aconteceu. Quando o chefe voltou trouxe uma brigada das Nações Unidas que criou um perímetro de segurança à volta da nossa aldeia. Perguntaram-nos a todos, um a um, o que se tinha passado.
Alguns relataram roubos, outros violações. Contámos tudo.
O chefe ficou muito, muito chateado. Disse-nos: “A guerra tem regras, eles não estão a cumprir as regras. Mataram civis, isto não pode ser!”
Uma semana depois os rebeldes regressaram, com o dobro da violência. Mataram soldados da ONU e levaram-nos a todos.
II - Um amigo entre a tormenta e a chegada a Portugal
Levaram-nos para uma floresta. Lá encontrámos um grupo maior, estavam à nossa espera. O líder estava ao centro.
Pensávamos que eles iam fazer o habitual, estávamos à espera que nos roubassem e nos deixassem ir, mas desta vez foi diferente. Disseram-nos que sabiam da denúncia e que não iam deixar ninguém sair de lá, enquanto não acusássemos os denunciantes.
Isto era um enorme problema, nós fomos juntos. Ninguém ia falar. Levaram-nos para um edifício, uma prisão. Disseram-nos que se não falássemos até ao final da noite nos matavam a todos, que ninguém ia sair de lá com vida.
“Deus, porque me deixaste? Porque me deixaste?”, gritei em tetela, a minha língua materna.
Estava muito assustado, aterrorizado. Bateram-me com a coronha de uma arma. À noite, um soldado perguntou: “Ouvi alguém falar tetela há pouco. Quem é?”
Eu não respondi. Tive medo. Então ele falou na minha língua materna, só eu percebi, os restantes falavam francês. “Eu quero ajudar-te. Não te vou fazer mal.”
Perguntou-me se eu tinha família. “Sim, tenho uma mulher e três filhos”, respondi. “Ninguém vai sair daqui. Não quero que fiques aqui”, disse-me.
Lembro-me que ele não queria falar comigo junto ao grupo. Levou-me, explicou-me que tinha sido uma das crianças sequestradas, recrutadas para servir no grupo de rebeldes M23.
Fugimos. Entregou-me em mão a outra pessoa. Disse que tínhamos de andar muito, fugir até muito longe, que eles iam procurar por mim. Foi esta pessoa que me salvou.
Antes de partir, contou-me que também queria fugir, mas que não tinha ainda chegado o momento. A 5 de novembro de 2013, o líder do M23 anunciou o fim das operações militares e ordenou às tropas o desarmamento e a desmobilização. Renderam-se, finalmente. Espero que ele tenha conseguido escapar.
Durante três dias estive escondido, tinha medo de sair. Ao quarto dia fugi, pedi ajuda e apanhei um avião até Lisboa. Cheguei em 2013, consegui asilo. Um mês e meio depois enviaram-me para Portalegre. Eu não sabia falar português, não tinha ainda notícias da minha família.
III - Uma carta sem aviso de receção
Antes de partir escrevi uma carta e pedi à pessoa que me ajudou que a entregasse à minha esposa.
Eu sabia que ela ia fugir, porque eu disse-lhe para o fazer na carta que lhe escrevi. Os rebeldes podiam procurar-me na aldeia e fazer-lhe muito mal. “Aí não estão seguros. Sai, leva os nosso filhos e vende tudo o que conseguires.” Nós tínhamos uma loja. “Guarda o dinheiro e vai. Eles não têm um coração bom, compreendes?”, escrevi.
Tenho duas meninas e um menino. Durante vários meses não soube deles.
Em Portugal procurei na internet, mas não consegui encontrá-los. Só mais tarde, através de uma rádio local, é que cheguei até eles. Um amigo disse-me que conhecia um jornalista de uma agência, confesso que não sei que agência era, mas foi ele quem fez o contacto.
O anúncio de que eu estava vivo e à procura deles circulou nas rádios e jornais, juntamente com as outras notícias. Alguém que conhecia a minha mulher ouviu-o numa rádio local e avisou-a de que eu estava bem, em Portugal.
O meu amigo conseguiu o número dela e nunca mais perdemos o contacto. Ela já estava na capital, falámos sempre ao telefone. Eu enviei-lhe algumas fotografias para ela mostrar aos nossos filhos.
IV - Cinco anos depois, o reencontro
Depois de conseguir o visto de residência, em 2015, fiz o pedido de reagrupamento familiar no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Esperei muito.
Paguei a uma pessoa para me ajudar a recolher os documentos necessários à obtenção do visto para a minha família. Em 2016, todos os papéis foram entregues na embaixada de Portugal em Kinshasa. Disseram-lhes que nenhum deles era válido, que tínhamos sido enganados.
Em 2017 recomeçámos todo o processo. A minha família acabaria por chegar em maio de 2018.
Quando fui buscá-los ao aeroporto estava nervoso. Passaram cinco anos desde que fugi do meu país. Sei que a minha filha mais velha ainda me conhece, ela tinha 13 anos na altura. O meu filho também, tinha 11 quando parti, mas a mais nova era ainda um bebé, com apenas 3 anos.
O primeiro a abraçar-me foi o meu filho. Lembrei-me do que me disse uma vez ao telefone, quando lhe perguntei porque é que estava sempre doente. Ele esteve muitas vezes internado antes de cá chegar.
“Pai, quando eu estiver ao pé de ti, nunca mais vou estar doente.”
A promessa foi cumprida, desde que chegou a Portugal nunca mais esteve doente.