Por Ana Tulha, in Notícias Magazine
Piménio, investigador, teve uma professora que lhe disse que ia acabar a vender na feira. Cátia, finalista de Educação Social, foi despedida de um café porque os clientes recusaram ser atendidos por ela. São dois de seis casos de sucesso e superação. Com muita discriminação pelo meio.
Piménio ainda andava longe de perceber o que queria fazer da vida quando uma professora lhe quis traçar o destino. “Não sei o que estão aqui a fazer. Tu [apontando para a colega de carteira de Piménio] vais limpar casas de banho e tu [dirigindo-se a ele] vais andar a vender nas feiras.”
O inapropriado exercício de futurologia da docente, a feder a preconceito e racismo, tinha apenas uma premissa: o facto de Piménio ser cigano, de pai e mãe, e de a colega de carteira ser filha de uma peixeira. A dada altura, o estigma quase levou a melhor sobre ele. A partir do 7.º ano, passou a ser o único cigano da escola. “Havia um ambiente algo tóxico. Fazerem piadas estúpidas era o prato do dia”, recorda.
A desmotivação era tal que no 8.º ano chumbou e esteve para ir embora. Mas não foi. E tudo mudou. Entrou numa turma mais pequena, que o recebeu “super bem”, e os resultados não tardaram. Passou a ter quatros e cincos e depressa saltou para o Quadro de Honra da escola. Pelo meio, teve uma professora de Físico-Química que o fez perceber que era apaixonado pela Física.
E assim ganhou alento para o que estava para vir: fez o Secundário com bolsa de mérito e, mais tarde, com o apoio de uma bolsa atribuída pela Junta de Freguesia da Ericeira, ingressou na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, em Engenharia Física. Sem nunca esconder as origens. “Olá, eu sou o Piménio e sou cigano.” Foi assim que se apresentou aos colegas de turma, no primeiro dia de aulas na faculdade.
E não, não acabou a vender na feira. Fez a licenciatura com quinzes e dezasseis, seguiu para o mestrado, teve uma bolsa de investigação no Campus Tecnológico e Nuclear do Instituto Superior Técnico e é hoje, aos 32 anos, investigador no Instituto de Biofísica e Engenharia Biomédica.
Bem-sucedido nos estudos, e perfeitamente inserido no mercado de trabalho, ativista e fiel às tradições e à herança da cultura cigana, é um dos rostos mais visíveis de um leque de jovens que, pelo exemplo e pela capacidade de resiliência, lutam diariamente para derrubar barreiras e estereótipos de toda a espécie.
Mais do que reclamar mérito próprio, o jovem investigador lembra todos os outros jovens ciganos que, ao contrário dele, desistiram da escola e continuam à margem do mercado de trabalho. “Circunstâncias ditadas por forças externas”, garante. A começar pelo sistema de ensino.
Segundo um estudo do Ministério da Educação, havia, em 2016/17, mais de 11 mil crianças e jovens de etnia cigana matriculados no ensino obrigatório, o que representa um aumento próximo dos 100%, relativamente aos dados de há 20 anos. O cenário anda longe de ser risonho, ainda assim. Desde logo porque o número de alunos ciganos diminui consideravelmente à medida que avançamos no ciclo de estudos – ao ponto de, no Secundário, se terem contabilizado apenas 256 estudantes ciganos.
De resto, aponta Piménio Ferreira, os números mascaram outros problemas. “Não há uma escolaridade de qualidade. Na Primária, muitas crianças ciganas vão passando sem saber ler ou escrever. Muitas são empurradas para turmas especiais, com dificuldades cognitivas”, aponta Piménio. Um cenário que fomenta a autoexclusão das comunidades ciganas, defende.
Maria José Casa-Nova, professora do Departamento de Ciências Sociais da Educação da Universidade do Minho e coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas, invoca também razões históricas. “Só há quatro décadas é que a maior parte da população cigana se sedentarizou e começou a estudar. Daí que haja um estranhamento em relação à escola. Acaba por ser algo hostil, não por tratar mal as crianças, mas porque é um ambiente desconhecido”, refere a investigadora, que se dedica ao estudo das comunidades ciganas desde 1991.
Despedida pelos que sempre lhe sorriram
Os obstáculos não acabam aqui. Até porque os casamentos, muitas vezes celebrados precocemente, e o facto de a virgindade das raparigas ser vista como um ponto de honra que importa preservar a todo o custo, também pesam nos números do abandono escolar. Depois, ainda há os constrangimentos relacionados com a habitação e o orçamento familiar.
Cátia Montes, 32 anos, nascida e criada em São Brás de Alportel (Faro), que o diga. No 9.º ano, teve de mudar de casa, a escola ficou mais distante e viu-se forçada a virar-lhe as costas. Nos anos que se seguiram, foi vivendo de trabalhos precários, na apanha da fruta ou na copa de um restaurante. Pelo meio, juntou-se com um rapaz, também cigano, e conheceu as agruras do nomadismo. “Andei de terra em terra, a ser expulsa pela GNR. Passei dias à chuva e ao frio.”
Desses anos, ficou-lhe também um episódio “chocante”. “Com 20 anos, fui pedir trabalho a um restaurante aqui em São Brás. A dona, que me conhecia desde pequena, aceitou-me, mas passado três dias disse-me que, apesar de gostar do meu trabalho, ia ter de me despedir porque os clientes (fixos) se recusavam a ser servidos por uma cigana. Isto vindo de pessoas que passavam por mim na rua e me sorriam. Aquilo abriu-me os olhos”, recorda.
A este caso seguiram-se outros, igualmente revoltantes. Como quando começou a trabalhar na área de charcutaria de um supermercado e soube, por uma amiga, que havia gente a preferir deslocar-se a outro estabelecimento, mais distante, porque achavam indecente “ter uma cigana a servir-lhes comida”. Estes e outros episódios, mais ou menos subtis, acabaram por germinar numa mudança de rumo: com 27 anos, voltou a estudar.
Hoje, além de ser bombeira voluntária, concilia o trabalho no supermercado com o 3.º ano do curso de Educação Social, que está a fazer na Escola Superior de Educação e Comunicação da Universidade do Algarve, em regime pós-laboral.
“Não esqueço as minhas origens, nem as coisas por que passei, e quero contribuir para que o racismo e a discriminação não travem outros jovens”, vinca, com toda a determinação, antes de deixar uma chamada de atenção: “É preciso que as pessoas percebam que isto não é uma verdadeira meritocracia, que não pensem que, se nós, um número reduzido, conseguimos, toda a gente consegue. Claro que o mérito é importante, mas não basta. Eu continuo a ser a exceção à regra”.
Cátia contou com o empurrão determinante do OPRE, um programa de política pública, com o apoio do Alto Comissariado para as Migrações, que nasceu de um projeto pioneiro da Associação Letras Nómadas e da Plataforma Portuguesa dos Direitos das Mulheres.
Atualmente, o OPRE garante a atribuição de 32 bolsas anuais, no valor de 1 500 euros, a jovens ciganos que pretendam frequentar o Ensino Superior. Para que as dificuldades financeiras não sejam um entrave a quem, como Cátia, quiser apostar na formação.
Pregar a educação com o exemplo
A história da jovem natural de São Brás de Alportel cruza-se com a de Bruno Gonçalves (43 anos), conimbricense cofundador da Letras Nómadas (2013) e mentor do OPRE. Nascido e criado numa comunidade cigana, Bruno estudou até ao 8.º ano, quando teve de ser mais um a levar dinheiro para casa. Mas não se ficou.
Aos 18 anos, inconformado, entra num curso profissional de eletricidade de baixa tensão. Mais tarde, tira o 9.º ano através do programa “Novas Oportunidades”. Entretanto, torna-se ativista e funda a Associação Cigana de Coimbra. Trabalha vários anos como mediador educativo, até se tornar mediador municipal na Câmara de Coimbra.
Conclui o Ensino Secundário já com 35 anos e, com 39, uma surpresa da esposa ajuda-o a dar o passo que faltava. “Sem eu saber, inscreveu-me num curso de Animação Sociocultural, para maiores de 23 anos. Como é que eu podia ser apologista da educação se não dava o exemplo?”
Por essa altura, Bruno tinha já lançado as bases do OPRE (inicialmente designado Opré Chavalé – “erguei-vos, jovens”). “A intenção é encorajar as pessoas, mostrar-lhes que é possível. É um trabalho muito difícil, porque vivemos numa sociedade racista e as pessoas têm uma autoestima muito baixa. Acaba por haver uma censura interna dentro da comunidade. Poucas são as pessoas que vão para a universidade e isso gera uma incredulidade entre as pessoas mais velhas.”
Bruno Gonçalves lançou as bases do OPRE, o programa que concede bolsas aos jovens ciganos que queiram ir para a faculdade (Gonçalo Villaverde/Global Imagens)
Antes do OPRE, Bruno tinha já mergulhado a fundo no associativismo quando, em 2013, se tornou delegado nacional do ROMED, um projeto criado no âmbito do Programa Europeu de Formação de Mediadores, para estimular a participação ativa das comunidades ciganas.
“É um programa de apoio ao mediador, que passa pela organização de grupos ativos comunitários, numa lógica de relação mais próxima com as entidades públicas locais”, descodifica Bruno Gonçalves, sublinhando a importância de criar líderes a nível local, que possam depois fomentar a mudança a nível nacional. Por isso, também o ROMED, atualmente na terceira edição, é hoje uma política pública, financiada pela Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade.
Dentro dos apoios estatais, há ainda a destacar o Programa Escolhas, que vai já na sétima edição (e que só na última edição contou com cinco mil participantes de comunidades ciganas), o Programa de Apoio ao Associativismo Cigano (PAAC), que visa robustecer as associações ciganas, e o Fundo de Apoio à Estratégia Nacional (FAPE), destinado a apoiar projetos que concretizem a Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, revista e aprovada em novembro do ano passado. Entre as medidas previstas, está a atribuição de cem bolsas, agora também a alunos do Ensino Secundário.
São pequenos passos que vão contribuindo para uma mudança que se faz devagar, devagarinho. Atualmente, há perto de 60 jovens ciganos no Ensino Superior, com uma taxa de aproveitamento que ronda os 75%.
“Enquanto antes a população cigana dizia que a escola não era para eles, hoje já há a consciência do ‘eu sou capaz, isto também é para mim’. É preciso perceber que a questão não é os ciganos não gostarem da escola, é precisarem de ser ajudados para conseguirem construir um percurso de sucesso”, reforça Maria José Casa-Nova, também coordenadora do Núcleo de Educação para os Direitos Humanos do Instituto de Educação da Universidade do Minho.
Sem que isso implique virar costas às origens. “Nunca podemos deixar de ser aquilo que somos: ciganos, portugueses ciganos. Muitas vezes as pessoas dizem que por estudarmos estamos a deixar de ser ciganos. Não: ao estudarmos, há um reforço da nossa identidade”, defende o ativista Bruno Gonçalves.
Mas ainda há muito por fazer. Até porque, se há casos em que a hostilidade já se faz sentir na escola, esta aumenta consideravelmente quando está em causa o acesso ao mercado de trabalho. Em Portugal, o estudo mais completo sobre a relação dos ciganos com o trabalho remonta a 2014. Na altura, 57% dos inquiridos dizia nunca ter trabalhado. Entre os restantes, a venda ambulante era a principal atividade económica. Maria José Casa-Nova testemunhou “in loco” as dificuldades.
“Cheguei a acompanhar um jovem cigano de 17 anos, que tinha o 11.º ano, e que, quando foi candidatar-se a um emprego num café lhe disseram automaticamente que a vaga estava ocupada”, aponta a investigadora. “Isto é proibido perante a lei, mas há formas de o contornar. É a prova de que o mercado se fecha perante a população cigana. Por isso, há muitos jovens a viver na clandestinidade étnica. Se não tiverem uma morfologia que os identifique como sendo ciganos, escondem a sua identidade.”
“Filha, tu não desistas. És o nosso orgulho”
Priscila Sá, 22 anos, licenciada em Direito e atualmente a cumprir o estágio de admissão à Ordem dos Advogados, admite já o ter feito, esporadicamente, na vida pessoal. “Temos de ser cautelosos, estratégicos, para perceber com que tipo de pessoa estamos a lidar. Se sei que o facto de dizer que sou cigana vai condicionar alguém, prefiro não o dizer”, confessa a jovem gaiense.
Já na vida académica, que tem cumprido sem percalços e com belas notas, nunca se viu obrigada a esconder o que quer que fosse. “Sempre fui muito apoiada. As pessoas sempre me adoraram e admiraram por ser pioneira, por não ter exemplos para fazer o que tenho feito”, orgulha-se Priscila. Os pais ficaram-se pelo Ensino Básico e fizeram-se comerciantes, mas ela soube cedo que queria ser uma advogada.
“A minha mãe sempre me incentivou muito. E a minha avó está sempre a dizer: ‘Filha, tu não desistas. És o nosso orgulho.’ Tive o privilégio de nascer numa família com uma mentalidade aberta”, reconhece. A isso, foi juntar alguns apoios – primeiro a bolsa da Direção-Geral do Ensino Superior (DGES), depois a do OPRE – e levar o barco a bom porto. Pelo meio, há cinco meses, casou, mas não por causa da tradição, garante.
“Nunca casaria com um homem que me pusesse um travão. Ele sabe que a minha carreira é a minha prioridade.” Até porque, com 22 anos, já sente que a missão é maior do que ela. “Já tive colegas que me vieram perguntar se não era aquela menina de etnia cigana que tinha aparecido na televisão. Ficam fascinadas. Se calhar vão para casa falar nisso e certos estereótipos vão sendo derrubados. Sinto que tenho essa responsabilidade. E sinto orgulho por isso.”
Além dos pais e do marido, que sempre a apoiaram, Priscila tem ainda uma outra inspiração: Carlos Miguel, advogado de 62 anos que, em 2017, se tornou o primeiro cigano a integrar um Governo. “Fico muito feliz por isto estar a acontecer. Durante muito tempo, eu era uma espécie de gorila na jaula do zoo, um rapazinho muito admirado por ser caso único.
Agora, os ciganos já perceberam que é através da educação que conseguem ter um futuro melhor”, congratula-se o atual secretário de Estado das Autarquias Locais, em conversa com a “Notícias Magazine”. O governante admite que o caminho na política não se fez sem uma certa “resistência”.
“Quando concorri a número dois da Câmara de Torres Vedras, serviram-se do facto de eu ter defendido homicidas como argumento para eu não desempenhar um cargo público. Teoricamente, estavam em causa razões éticas, mas no fundo eram razões étnicas, porque o que se dizia nos bastidores era: ‘Mas vocês vão querer um cigano como presidente da Câmara?’”
De resto, assume que, por ter uma profissão liberal, nunca sentiu necessidade de esconder as origens, mas reconhece que o acesso ao mercado de trabalho (em que um cigano tem de ser “duas ou três vezes melhor”) e à habitação continuam a ser obstáculos de vulto.
Os números comprovam-no: um estudo conduzido pelo Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana, divulgado em 2017, concluía que 32% da população cigana ainda vivia em barracas, tendas, autocaravanas ou rulotes. Culpa das dificuldades financeiras, mas também do estigma.
Guiomar Sousa, ativista cigana de 37 anos, natural da Figueira da Foz, sabe do que fala. Quando vivia em Espinho, passou anos a tentar alugar uma casa, mas levou negas sucessivas. “Ligava, as pessoas diziam que sim e quando me viam vinham logo com o discurso de que afinal a casa já estava alugada. Cheguei a pagar dois meses de entrada para uma casa para depois me ligarem a dizer que a casa não estava em condições e que íamos ter de anular.” A história sai-lhe a meias com a revolta.
“Acabaram por me dizer que as vizinhas souberam que ia para lá uma cigana e fizeram um ultimato à senhoria: ‘Ou elas ou nós.’ A própria senhoria chegou a dizer-me que já devia saber que alguém com a minha condição não devia conviver com aquelas pessoas. Foi um episódio muito doloroso.”
Ainda mais porque a vida nunca foi um mar de rosas. Aos nove anos, o pai tirou-a da escola, para ficar a tomar conta da casa. Aos 18, casou e começou a ir às feiras. Aos 21, foi mãe. Só cinco anos depois voltou a estudar, completando o 6.º ano através de um curso EFA. Ainda assim, sem formação e face ao preconceito que teimava em fechar-lhe portas, passou anos sem conseguir trabalho.
Até que, em 2014, foi contratada pelo Alto Comissariado para as Migrações, para ser dinamizadora do programa Escolhas, durante ano e meio. Depois, enquanto tratava de concluir o 9.º ano, no Sistema RVCC (Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências), foi auxiliar numa escola e até nas limpezas trabalhou. Tirou tantos cursos no Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) que já nem os sabe listar. Hoje, trabalha como mediadora do IEFP, num projeto-piloto, na Figueira da Foz.
Mas o papel de Guiomar na transformação que ainda agora começou é maior do que isso. Tem sido também uma das grandes dinamizadoras de uma espécie de revolução silenciosa das mulheres ciganas em Portugal, um grupo que luta por mais reconhecimento e uma vida mais ativa. “Começámos a falar entre nós e a perceber que sentíamos as mesmas necessidades. Fomos sensibilizando outras mulheres e começámos a participar em encontros feministas e manifestações.”
Além da luta pela igualdade de género, a batalha contra a discriminação está sempre presente. Até porque o racismo não dá tréguas. “Se vir os comentários numa notícia sobre ciganos, aquilo é muito mau. Há pessoas a dizer que deviam morrer todos, que devíamos ir para uma ilha e lançarem-nos uma bomba ou que nos deviam mandar a todos para uma vala comum. É preciso ter muito sangue frio.”
Da pulseira eletrónica à fama
Nem só com o associativismo e os estudos se mudam mentalidades. A arte e a música em particular também podem dar uma ajuda. Avelino, conhecido no mundo artístico por Nininho Maia, tem mostrado isso mesmo. Criado no antigo Bairro da Curraleira, nas Olaias (Lisboa), filho de pai cigano, deixou a escola aos 16 anos. “Comecei a sentir que já era homem. Aquelas coisas parvas.” Começou por trabalhar em negócios de família, depois passou pelo IKEA, até se dedicar aos automóveis.
Pelo meio, numa noite de copos, meteu-se numa cena feia de pancadaria e acabou com pulseira eletrónica, durante um ano e 15 dias. A reclusão teve tanto de calvário como de redenção. Isto porque, durante esse período, decidiu gravar uma música em vídeo para mandar à irmã. Da irmã para a prima. Da prima para o YouTube. E do YouTube para todo o lado, a um ritmo frenético. Hoje, o vídeo superou já os dois milhões de visualizações.
Entretanto, Nininho, 31 anos, tez bem morena, olhos muito azuis, acrescentou ao repertório mais de dez temas, amplamente partilhados na Internet, e várias dezenas de atuações. E já pensa no próximo passo. “Ando a finalizar três músicas para lançar um EP.”
Sempre com a música cigana como premissa, mesmo que também lhe misture outros géneros. “As pessoas começam a respeitar mais a música cigana. Antes não é que não a respeitassem, mas nunca olharam para ela como música. A minha luta é essa.”
Com tudo o que de bom e mau as lutas trazem. Bom pelo sucesso e mediatismo que tem alcançado (até já teve participação numa novela de TVI). Mau pela discriminação que também já sentiu na pele. “Já gravei em estúdios em que, quando cantava uma música com partes mais ciganas, me diziam: ‘Ah, se calhar é melhor não ir por aí.’ E já tive uma atuação agendada para uma discoteca do Porto, em que os bilhetes esgotaram em poucas horas, mas o espetáculo acabou por ser cancelado”, sublinha. Justificação: o medo de que a festa chamasse muitos ciganos e desse mau nome à casa. Ou mais uma prova – a juntar a tantas outras – de que o racismo continua bem vivo em Portugal.
E os discursos populistas, que têm vindo a ganhar força, só o têm feito crescer, alerta Bruno Gonçalves, cofundador da Letras Nómadas. “Temos ouvido coisas terríveis. Que somos parasitas, que só queremos direitos e não queremos deveres. Não vamos escamotear e dizer que não há pessoas na comunidade cigana com maus comportamentos. Existem. Mas existem em todas. Claro que parece que um ato de um cigano traumatiza para cinco gerações. As pessoas dizem o que quer e lhes apetece e saem sempre impunes”, acusa o ativista.
A missão adivinha-se, por isso, longa, dura, penosa. De resto, é a própria secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade a reconhecer que, apesar de todas as medidas e programas (referidos acima) que têm sido lançados pelo Governo, ainda há muito por fazer. “Temos um enorme caminho pela frente. Há jovens pioneiros que são o rosto visível da mudança, mas não podemos assumir que alcançámos a não-discriminação. Mesmo os que têm sucesso não deixam de mencionar quantas barreiras tiveram de vencer”, assinala Rosa Monteiro, à NM.
Piménio, o investigador que no 8.º ano esteve para desistir da escola e acabou a dar a volta por cima, vai mais longe. “Acho que falta mudar tudo. Precisamos de uma mudança estrutural. Às vezes pagam-se propinas, mas falta o resto, porque as pessoas não estão preparadas. É como começar a construir a casa pelo telhado. Falta entender que o racismo em Portugal é sistémico.” Falta, no fundo, uma revolução. A começar pelas mentalidades, dentro e fora das comunidades.
Revolução essa que jovens como Piménio (ou como Cátia, ou como Bruno, ou como Priscila, ou como Guiomar, ou mesmo como Nininho) já começaram. Para que nenhuma criança cigana volte a ter de ouvir uma professora vaticinar que vai acabar a vender na feira. Para que, um dia, este país também possa ser para ciganos.