Gonçalo Rosa da Silva, in Visão
"O medo do desconhecido combate-se tornando-o conhecido", defende a estudante e líder da Plataforma Cidadã de Apoio aos Refugiados Adriana Costa Santos, que foi para Bruxelas em 2015 para dar uma ajuda aos refugiados durante um mês... até agora
“Não é por acaso que a resistência se escreve no feminino”, lê-se no perfil do Facebook da jovem de 24 anos que é o rosto da Plataforma Cidadã de Apoio aos Refugiados, considerada pelo jornal Le Soir, há dois anos, a entidade mais relevante de Bruxelas em termos sociais. Filha do jornalista António Costa Santos e da psicóloga Cristina Martins, Adriana foi escolhida pelos jovens belgas da Amnistia Internacional para o Prémio Direitos Humanos deste ano. Ainda era adolescente quando começou a fazer voluntariado no bairro do Fim do Mundo, em Cascais. Seguiram-se os intercâmbios culturais (Youth in Action e Erasmus). No ano sabático, a então estudante de Relações Internacionais na Universidade de Bolonha, Itália, foi desafiada por uma amiga a ficar alojada em Bruxelas e a dar uma ajuda aos refugiados durante um mês. Ficou até hoje. No início, partilhou a experiência no blogue Chegada à Paz, no site da VISÃO, entre outubro de 2015 e maio de 2016, que lhe valeu o prémio Corações Capazes de Construir, da Associação Corações com Coroa. Determinada, mobilizou cidadãos pelas redes sociais a fim de acolherem refugiados nas suas casas, poupando-os a pernoitarem na rua e a serem vítimas da intervenção policial no parque Maximilien, em Bruxelas. Agora, que a Plataforma tem um novo centro para ajudar quem foge da guerra e não tem direitos, Adriana continua a apelar aos europeus para serem mais interventivos na crise migratória.
Quando descobriu a sua faceta destemida e ativista?
Lembro-me de começar a escrever aos quatro anos e, mais tarde, de querer fazer trabalho humanitário, que tem um lado de consciência política transmitida pelos meus pais e avós: falávamos dos tempos do Estado Novo, da falta de direitos e de liberdades, e da importância de prevenir que um período desses se repetisse.
Como se adaptou à sua nova vida na Bélgica e à realidade dos refugiados?
Antes de arranjar quarto, vivi em casa de uma amiga e comecei a trabalhar [num restaurante e a tomar conta de crianças], enquanto fazia o mestrado e a gestão de voluntários da Plataforma – lançava apelos pelo site e nas redes sociais quando havia atividades, organizava briefings e punha os novos projetos em prática. Em 2015, houve uma crise de acolhimento, com refugiados de guerra na rua até poderem pedir asilo, mais ou menos garantido na altura. Com o desmantelamento da selva de Calais [acampamento improvisado junto àquela cidade francesa], o Estado belga acordou com a Plataforma acolher 270 refugiados em Bruxelas, mas, no verão de 2017, as pessoas voltaram a ficar na rua, sem os seus pedidos de asilo aceites. Aumentaram os discursos de ódio e o Governo começou a criar divisões entre as pessoas que acolhem os refugiados e as que não os acolhem, ou entre os racistas e os não racistas.
O tema faz parte da sua tese de mestrado?
Sim, a tese é sobre a defesa do estatuto social dos refugiados. Quando se fala de migrações, pressupõe-se que os migrantes aumentem o seu estatuto social ao encontrarem uma vida melhor, mas passou-se o contrário com os sírios e os iraquianos que chegaram em 2015. Foi muito difícil não voltarem a ter o estatuto que tinham na sociedade de origem.
Como nasceu a ideia de pôr as famílias a fornecer sacos-cama [Sleeping Bag Challenge]?
Foi no verão de 2017: a equipa de voluntários escreveu o nome dos cidadãos nos sacos-cama, e se a polícia os confiscasse podíamos alegar que eram nossos e os tínhamos emprestado.
O que sentiu quando se deu conta das chamadas operações de limpeza no centro da cidade?
Quando entrei no parque Maximilien para fazer a distribuição percebi como era fácil, em 15 dias de ausência, esquecer as coisas que ali aconteciam. Lembro-me desse sábado, dia 18 de agosto: ver 500 pessoas ali, esquecidas do mundo. Na segunda-feira, às sete da manhã, a polícia organizou uma rusga e surpreendeu os refugiados que estavam a dormir. Ao fugirem, deixavam tudo para trás e vinham as carrinhas da câmara para apanhar os objetos e deitá-los fora. Mais de 150 sacos-cama foram destruídos. Fiquei muito revoltada. Estas ações aconteciam quando não estavam voluntários no parque. Lancei um apelo aos voluntários: chegar antes da polícia e acordar as pessoas, às seis da manhã. Foi o momento mais duro de todos, 15 dias seguidos nisto, a ver as rusgas, uma autêntica caça ao Homem.
A ideia de acolher refugiados em casa de cidadãos belgas surgiu nessa altura?
A polícia prendia quem tinha menos capacidade de correr: crianças, idosos, pessoas feridas ou doentes. Tirámos fotografias e recolhemos testemunhos do que se estava a passar. Muita gente viu e juntou-se a nós. Propusemos que alojassem pessoas em casa. Hoje, 50 mil pessoas apoiam-nos, temos mais de 10 mil voluntários ativos e pelo menos 7 mil famílias recebem diariamente 600 pessoas. Já não podem prendê-las na rua. No final de 2017, a plataforma ganhou um centro de acolhimento, a Porte d‘Ulysse, em Haren, graças a apoios da região de Bruxelas: tínhamos cem lugares em abril, em junho eram já 350.
O namorado trabalha consigo. Como se organizam?
É difícil! Somos os dois copresidentes da plataforma, onde trabalho agora a tempo inteiro. O ano passado foi muito difícil conciliar com o mestrado, fiz só dois exames, e este ano tenho de me impor limites para o concluir. O meu namorado [Medhi Kassou] coordena a parte da comunicação e eu coordeno a do alojamento, que requer sensibilidade face às particularidades de cada um. Durante o dia, vou conhecer os dois lados da história, o das famílias e o dos refugiados, e, à noite, ponho-os em contacto. Há ainda as necessidades médicas, de apoio jurídico, psicológico, etc.
Quem mais pede apoio psicológico?
Aqueles que vêm de países em guerra. Têm de passar pela Líbia, muitos ficam na prisão, podem ser torturados e escravizados, e depois há todo o percurso na Europa, onde são vítimas de violência policial. As famílias de acolhimento também, ao lidarem com alguém em perigo constante, algo a que não estão habituadas.
Que impacto é que esta realidade tem na sua vida diária?
Tive dificuldade em habituar-me à Bélgica: um clima diferente, formas de funcionar diferentes, um pouco mais frios. Depois, encontrei um grupo de boas pessoas na equipa dos voluntários da plataforma e nas famílias que se mobilizaram para acolher, à noite, quem precisasse.
A atitude mais fria, como diz, pode ser reflexo de uma sociedade que viveu duas guerras?
Depois de se aperceberem de uma realidade que não conheciam, os cidadãos mobilizam-se e acolhem. O que mete medo nesta situação é o discurso nacionalista do Governo para obter mais votos.
Portugal tem estado à altura nas respostas à crise migratória?
Estou orgulhosa do contexto político português, democrático e contratendência face à corrente de extrema-direita que ganha terreno na Europa. Já no acolhimento, há mitos difundidos que não são verdadeiros. Houve uma abertura, mas conheço várias pessoas que pediram asilo e não o tiveram, devido às regras rígidas das instituições europeias. A lei para regular o asilo, que tem décadas [Tratado de Dublin], diz que este tem de ser feito no país de entrada, mas não se previa que os refugiados chegassem à Europa pelo Mediterrâneo. Não é justo que a Grécia e a Espanha sejam obrigadas a tratar todos os pedidos de asilo. A lei prevê que os governos recorram, se necessário, à cláusula de soberania: em 2015, a Bélgica, a França e a Alemanha suspenderam o Tratado de Dublin e trataram pedidos de asilo dos refugiados que entraram na Grécia. Portugal diz-se disposto a fazer o mesmo, mas eles chegam e muitos são recambiados para Itália.
Porquê para Itália?
Por terem entrado por lá e porque o Governo italiano tem um acordo com a Líbia. O risco de acabarem na Líbia e de serem vítimas de escravatura e de tortura é grande.
O Reino Unido continua a ser o destino com que muitos sonham?
Continua, porque não há bilhete de identidade e quando chegam, mesmo sem garantia de asilo, não correm o risco de ser abordados na rua pela polícia a pedir os documentos, o que acontece muito na Bélgica. Por outro lado, os traficantes de seres humanos têm interesse em que o negócio continue e alimentam mitos: a Inglaterra vai dar-lhes acolhimento e condições, etc., convencem-nos a pagar para entrar ilegalmente.
Como é que as pessoas contornam as limitações legais aos pedidos de asilo?
O facto de estarem mais informadas faz com que algumas usem estratégias, como pedir asilo na Bélgica para menores, por exemplo, ou dar a morada de uma família de acolhimento e, após seis meses, pedir ao Estado belga para tratar do pedido de asilo.
Como solucionar a crise migratória?
Uma das medidas seria usar a cláusula de soberania para as pessoas poderem pedir asilo. Mesmo que não consigam, o pedido pode ser tratado pelos serviços de imigração. Ou abrir centros de acolhimento e de orientação, à luz do que foi feito em França, quando desmantelaram Calais: mais de 50% dos refugiados receberam asilo por virem de países em guerra. Há um ano, pedimos ao Estado belga um centro de orientação para prestar cuidados de saúde, informação e apoio jurídico, sem deixar os refugiados expostos a situações de violência por não terem quaisquer direitos.
A integração dos refugiados ainda é uma miragem?
Neste momento, não se pode chamar integração, até porque a Bélgica já não está propriamente em paz. O Governo declarou guerra às pessoas sem direitos. Não é por acaso que existem obrigações a nível internacional para proteger pessoas que vêm de países em guerra, sobretudo quando a maioria dos Estados europeus ganha com essa guerra. Felizmente, para muitos que acolheram, a realidade tornou-se mais humana. O medo do desconhecido combate-se tornando-o conhecido.
Lidar com situações-limite tira-lhe o sono?
Tive momentos duros. Psicologicamente é difícil lidar com urgências numa base diária: seres humanos feridos, sem direitos; uns perdem a cabeça, outros são presos ou morrem. No parque, os sem-abrigo com toxicodependências e doença mental ficam entregues à sua sorte, por falta de gente com formação especializada para os acolher e acompanhar. São os mais vulneráveis e só têm a violência como recurso, situação com que temos de lidar quando estamos na rua.
Como se vê nos próximos anos? A fazer política?
Tenho uma descrença no mundo político. Acho que a melhor forma de fazer política é informar, e a plataforma, apartidária, faz um trabalho político, apelando a que sejamos mais ativos e conscientes do impacto que podemos ter.
Pode dar um exemplo de cidadania ativa?
O Estado belga tinha um projeto-lei que permitia à polícia fazer rusgas, entrar pela casa das famílias adentro e arrombar portas para prender um refugiado. Fizemos um apelo em todas as freguesias da Bélgica. Mais de 150 câmaras pronunciaram-se contra e não permitiram a intervenção da polícia local. O Governo recuou e congelou o projeto em maio do ano passado.
Quais são os seus sonhos e metas para 2019?
Vou continuar a ser socialmente ativa, mas também quero acabar o mestrado. Tenho 24 anos e o que faço é apaixonante, mas era o Estado que devia fazê-lo. Seria bom que o Governo chamasse a si essa responsabilidade, para que nós pudéssemos voltar às nossas vidas.