23.10.20

O desespero de quem sonha com um teto

 Gonçalo Fonseca, in Expresso

Números oficiais não há, mas Helena Roseta estima que número de casas ocupadas por famílias ascenda às centenas. Moratória que suspendia despejos acaba no fim do mês

As noites de Edna, mãe solteira que ocupa uma casa em Chelas (Lisboa) há quase quatro anos, são passadas com o filho Enzo no sofá, a ver televisão e a trocar mimos, à espera que chegue o sono. O menino adormece facilmente, mas a mãe passa várias noites acordada, com a cabeça cheia de preocupações e turva com o peso de um dia de trabalho. “A única altura em que durmo descansada é ao fim de semana, que é quando não há despejos”, conta Edna, de 30 anos, que já foi despejada cinco vezes nos últimos 15 anos.

Apesar de os despejos terem sido suspensos em março, como medida excecional para proteger as famílias durante a pandemia, esta não é uma preocupação facilmente esquecida. A moratória termina no final deste mês e Edna teme que recomece o rodopio de mudanças e explicações aos mais pequenos, já habituados à rotina triste das lágrimas da mãe perante a dureza das ordens policiais.

Mas nem até lá pode ficar descansada. Não é claro se as pessoas que ocupam casas são abrangidas pelo regime extraordinário e transitório que suspendeu os despejos até 30 de setembro. O Expresso tem conhecimento de pelo menos um caso de ocupação abusiva em que os moradores receberam uma ordem de despejo da Polícia Municipal em maio, em pleno estado de emergência, para saírem da casa que ocupavam na zona da Mouraria.

Como a família de Edna há dezenas de outras que, devido aos baixos salários e às rendas altas, ocuparam casas municipais vazias para não ficarem na rua. Muitas são migrantes que vieram para Portugal à procura de uma vida melhor. Alguns trabalham em lares de idosos, em apoio ao domicílio, como Edna, em supermercados ou a fazer entregas. Na pandemia são considerados trabalhadores essenciais mas não têm um lugar para dormir a que possam chamar seu.

Segundo um estudo recente do Deutsche Bank, Lisboa é a cidade na Europa onde as famílias fazem mais esforço para pagar a renda, que em média absorve mais de metade do salário (a nível mundial ocupa a sexta posição). Com o preço médio da renda a chegar aos €900 na capital, muitas famílias ficam de fora do mercado de arrendamento.

Não é possível saber ao certo os números da ocupação. Contactado pelo Expresso, o gabinete da vereadora da Habitação e Desenvolvimento Local, Paula Marques, não divulga quantas famílias estão a ocupar casas em Lisboa, mas a ex-presidente da Assembleia Municipal de Lisboa, Helena Roseta, estima que o número de casas ocupadas chegue às centenas.

De acordo com a autarquia, nos últimos dois anos foram atribuídas pelo município 1600 habitações e estão atualmente estão a ser analisados cerca de 2600 pedidos para programas de renda assistida, não sendo divulgado o tempo médio de espera.

O DIA MAIS TEMIDO

Mulheres como Edna, inscritas há vários anos nas listas da CML, veem-se a braços com uma decisão difícil. Entrar numa casa vazia e esperar que a polícia municipal lhes bata à porta, ou cumprir a lei e viver em situações ainda mais precárias, em sobrelotação ou expostas a violência. “Temos várias mulheres a procurar ajuda na Habita que estão a ocupar uma casa, e a Câmara dá-lhes como solução voltarem para as casas onde têm ficha. Mas o problema é que nessas casas elas estão muitas vezes expostas a situações de violência doméstica”, afirma Rita Silva, investigadora e ativista da Habita, associação que luta pelo direito à Habitação.

Edna soube que ia ter um bebé aos 15 anos. Problemas com a mãe e o padrasto forçaram-na a sair de casa quando descobriram que ia ter um filho. Grávida e assustada, encontrou um pequeno apartamento num rés do chão do bairro onde sempre viveu, em Chelas, depois de ter vindo de São Tomé ainda criança, e mudou-se para lá. Foi nesse lugar degradado, que antes era usado por toxicodependentes, que deu os primeiros passos como mãe. Aos poucos foi mobilando o espaço e transformou-o numa casa. Foi para ali que levou o primeiro filho, Lisandro, quando nasceu. Encontrou trabalho e a vida estabilizou, reatou a relação com o namorado e juntos tiveram uma menina, a Fabiana. “Ela tinha dias, eu ainda estava a recuperar do parto quando uma manhã me bateram à porta”, conta Edna. Tinha chegado o dia que todos os ocupas temem, o dia do despejo. “Quando és despejada sentes-te um lixo. Partem tudo, tiram o chão, a casa de banho. Sentes que não fazes parte da sociedade. Parece que só tens deveres, não tens direitos.”

“A única altura em que durmo descansada é ao fim de semana, que é quando não há despejos”, conta Edna, de 30 anos, mãe solteira que já foi despejada cinco vezes

A CML afirma que, antes do despejo, “cada situação detetada é encaminhada para as respostas adequadas”. Mas o Expresso pôde verificar, ao longo de mais de um ano em que assistiu a diferentes situações de despejo, que muitas vezes estas famílias são deixadas sem qualquer tipo de apoio social e no dia do despejo estão presentes apenas técnicos da Gebalis, empresa que gere a habitação social em Lisboa, e agentes da polícia municipal.

“As mulheres veem-se numa situação de enorme vulnerabilidade. Muitas vezes têm salários inferiores aos dos homens. São elas as cuidadoras da família, quer seja dos filhos quer seja de familiares mais velhos e muitas vezes ficam sozinhas nesta situação. Perante tudo isto, ocupam”, defende Rita Silva.

Dam, de 40 anos, esteve desempregada mais de um ano, depois de se ter despedido do seu último trabalho para poder cuidar da mãe idosa que está acamada. Atualmente trabalha como segurança num supermercado e durante o tempo em que foi pedido aos portugueses que ficassem em casa, Dam não parou. Antes de ocupar o apartamento onde vive há quase dois anos na zona da Bela Vista, morava com a sua família de cinco pessoas num T1 na Penha de França que lhe levava quase 70% do salário. “A casa estava cheia de ratos e baratas, não tinha condições. Pagava €400 e a minha mãe dormia no quarto, nós dormíamos na sala, em cima de mantas. Não restava quase dinheiro para comer”, conta.

Um familiar falou-lhe daquele apartamento que estava vazio e Dam, inscrita há seis anos na Câmara, decidiu arriscar.

FUGIR DA VIOLÊNCIA

Se antes da pandemia a crise da habitação em Lisboa era alimentada pelo turismo e a especulação imobiliária, que afastaram milhares de pessoas da cidade, agora com o crescimento do desemprego, que se prevê aumente para cerca de 10% em 2020, a situação de muitas famílias que nunca recuperaram da crise financeira de 2008 é dramática.

Joana, de 36 anos, já teve de pedir apoio alimentar à junta de freguesia da Ajuda, depois de ter estado três meses sem trabalho. “Na lavandaria lavávamos principalmente toalhas de restaurantes e hotéis. Como isso fechou tudo, tive de ir para casa”, conta. Vítima de violência doméstica em Espanha, país onde viveu grande parte da vida, fugiu para Portugal para casa da mãe, uma tentativa de desenhar um futuro diferente para os filhos. Após cinco anos inscrita na Câmara e cansada de viver num ambiente de sobrelotação, ocupou um T2 na Ajuda com a família de nove pessoas. Joana tem cinco filhos, a filha mais velha, Nicole, de 20 anos, tem dois. As crianças dormem juntas na sala, e os adultos nos quartos. “Não é fácil viver assim, mas é melhor do que nada. Sabemos que não é certo ocupar, mas esta casa estava vazia e não temos outra solução”, desabafa.

No princípio deste ano, quando a covid-19 já começava a ameaçar a Europa, foram despejadas mais de 70 pessoas de etnia cigana que estavam em situação de ocupação no Bairro Bensaúde, nos Olivais.

“A CML afirma que o “direito à Habitação de uns não pode sobrepor-se ao de outros”, já que a ocupação põe em causa “os direitos dos que já se candidataram a uma casa”

Naide Negrita, de 16 anos, e Wilson Silva, de 21, estão à espera de bebé. Foram despejados em junho do ano passado da casa municipal que estavam a ocupar no Bairro Bensaúde. “Quando vieram tirar-nos de lá estávamos no Hospital. Arrombaram a porta e tiraram tudo o que tínhamos lá dentro”, explica Naide. Nos primeiros tempos viveram num carro, depois montaram uma barraca, que lentamente têm vindo a melhorar. “Agora temos de renovar a candidatura à Câmara, e vai demorar anos até termos uma casa nossa. Entretanto temos de criar um bebé aqui”, suspira Wilson.

O jovem casal de etnia cigana não está sozinho, já que há várias outras famílias na mesma situação, todas a viver em barracas ou em tendas. À Lusa, a Gebalis frisa que “todas as casas desocupadas estavam afetas a outras famílias, que estavam legitimamente à espera de resposta habitacional”.

FALTA DE ALTERNATIVAS

Contactado pelo Expresso, o gabinete do pelouro da Habitação da CML afirma que o “direito à habitação de uns não pode sobrepor-se ao de outros”, já que a ocupação põe em causa “os direitos das pessoas que já comprovaram a sua necessidade habitacional com candidatura, causando por vezes transtorno na reabilitação dos imóveis e a entrada na casa das famílias a quem já estão afetas estas habitações”.

No entanto, o próprio pelouro da Habitação admite que, “por vezes, as casas municipais ficam vazias por muito tempo sem conhecimento da Câmara e da Gebalis ou enquanto se aguardam procedimentos burocráticos e obras de reabilitação”, o que indica que há falta de fiscalização no parque habitacional público na cidade.

Para muitas famílias que ocupam, esta opção afigura-se como a única forma de conquistarem algo seu quando se deparam com a realidade da sua pobreza. Com o que ganham não conseguem pagar uma renda no mercado habitacional, e a renda que poderiam pagar é uma renda social que pode demorar vários anos até que lhes seja acessível. “Qualquer pessoa pode condenar a ocupação, é compreensível. Mas se essa pessoa se visse numa situação de completa ausência de alternativas, na iminência de estar na rua com os filhos, se visse uma casa vazia, entrava”, sublinha Rita Silva.