22.10.20

Nelson de Souza: “Abrimos as gavetas e pusemos todos os projectos em cima da mesa”

Luisa Pinto, in Público on-line

O ministro do Planeamento diz que a tarefa de executar tantos planos de investimento é grande, mas Portugal vai conseguir fazê-lo, sem perder de vista o objectivo de aumentar a transparência.

Nelson de Souza diz que o Governo se esforçou por tirar todos os projectos que havia nas gavetas, para os colocar nos instrumentos mais adequados. E acrescenta que só quando for conhecido a arquitectura do próximo Quadro Financeiro Plurianual será possível perceber melhor os mecanismos de funcionamento do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). E garante que o executivo não andou a inventar necessidades.

Portugal foi dos primeiros a apresentar um PRR, quando em Bruxelas não há sequer regulamento aprovado. Porque é que era tão importante “ganhar” esta corrida?
É uma questão de ser coerente. Portugal foi desde o início um dos Estados-membros que mais lutaram por esta iniciativa. Mal seria, se não estivesse profundamente empenhado em manifestar total comprometimento quer político, quer técnico, na sua plena utilização, mesmo não estando definidos os contornos regulamentares finais.

O que é o melhor que nos pode acontecer? E o pior?
Elaborámos o plano em condições difíceis, com muito pouco tempo. Tivemos dois meses e meio para preparar este draft, ainda por cima não o quisemos fazer fechados nos gabinetes, ouvimos opiniões sobre como utilizar estes meios, de forma a dar resposta não só aos problemas estruturais, mas também àqueles que foram mais evidenciados pela crise pandémica. Estamos convencidos de que a proposta que apresentámos é a que corresponde às necessidades do país, mas é um ponto de partida. Ainda teremos as próximas semanas, porventura uns dois ou três meses, para negociar com a Comissão, ao mesmo tempo que vemos clarificados também as dúvidas e critérios que ainda falta esclarecer.

O recurso a empréstimos é uma dessas questões a esclarecer? O primeiro-ministro disse que não os usaria, mas afinal há três grandes blocos de investimento no PRR. Banco de Fomento, habitação pública e material circulante para a CP. De que depende, de facto, o avanço destes projectos? Do impacto que vão ter na dívida e no défice?
Portugal ainda tem um nível elevado de endividamento público externo. Essa é uma variável que naturalmente vai sofrer uma degradação em resultado da crise pandémica, daí termos uma particular preocupação com o acompanhamento deste indicador. Isto limita-nos a capacidade de acesso livre e indiscriminado à componente de empréstimos deste pacote de estímulos europeus. Nós reservamo-nos de utilizar estes empréstimos apenas depois de esclarecidas as condições em que os podemos obter e utilizar em função da nossa capacidade.

Mas é uma vontade do Governo ou foi uma sugestão de Bruxelas?
Está previsto que podemos recorrer aos empréstimos. Foi uma opção nossa face ao contexto macroeconómico em que a economia portuguesa vive, e viverá, nos próximos anos. Queremos esclarecer em que condições particulares determinado tipo de operações se pode contratar e mobilizar. São questões de natureza técnica que estamos à espera de ver esclarecidas, mas a própria comissão ainda está a estudar modalidades. Quando as tiver resposta, o Governo dirá se avança com eles ou não.

No caso do Banco de Fomento, não estará em causa o próprio Banco que, sem capitalização, continuará sem funcionar como até aqui?
É preciso notar que o Banco de Fomento já é uma realidade. Naturalmente o Governo está a procura de todas as fontes de financiamento que possam concorrer para a sua vitalização, para que ganhe escala e dimensão crítica para cumprir a sua missão. Se não for esta a solução, existirão outras fontes de financiamento comunitárias. Ou no Quadro Financeiro Plurianual (QFP), ou outros mecanismos, como o InvestEU, no quadro das políticas centralizadas, ou a própria cooperação com o BEI e o Fundo Europeu de Investimentos, que faz muito trabalho com outros bancos promocionais nacionais. O Banco de Fomento não está em perigo, estamos a tentar maximizar as melhores fontes de financiamento.

Há uma forte componente de investimento público neste PRR e é importante perceber como foram escolhidos. Não aparecem investimentos considerados prioritários, na ferrovia por exemplo, mas aparece uma linha de Metro entre a Casa da Música e Devesas que surpreendeu o próprio presidente da Câmara do Porto. Não se está a acelerar o que não é prioritário só porque há necessidade de gastar? Qual foi o racional?
Nós tivemos de corresponder a vários propósitos e restrições no PRR e às diversas alternativas de financiamento para o horizonte temporal de uma década. Porque nunca estamos a falar só de PRR, ele tem de ser entendido em articulação com o próximo QFP. O que fizemos foi abrir as gavetas todas e pôr todos os projectos e necessidades em cima da mesa. Mas se se considerar que o tamanho da mesa é igual ao tamanho do orçamento disponível, vemos que não há espaço para tudo o que estava dentro das gavetas. Houve que tomar opções e remeter algumas ideias que, sendo estratégicas e necessárias, numa visão a médio e longo prazo, não pudessem porventura ser executadas no prazo que temos para a programação. Para o PRR ser bem entendido precisa de ser analisado conjuntamente com o QFP, cujas linhas ainda se conhece pouco. Por isso é difícil fazer uma análise completa e eu reconheço a responsabilidade que o Governo tem nisso, porque ainda não divulgou o QFP.

Dê um exemplo.
A ligação ferroviária Lisboa-Porto, em alta velocidade. É um projecto que a médio longo prazo reúne um consenso generalizado, por se entender estratégico que Portugal não fique definitivamente arredado da rede europeia de alta velocidade. Mas a dimensão do projecto e sobretudo o tempo para a sua conclusão não era compatível com o curto período de tempo que temos para executar os projectos do PRR. E se olharmos para a dimensão financeira e planeamento era dificilmente comportável para o próprio QFP. Mesmo estando no Plano Nacional de Investimentos e sendo uma visão de longo prazo sobre as infra-estruturas necessárias, vamos tentar encontrar financiamento junto de programas europeus, recorrendo a outras fontes que não estes instrumentos.

Não se consegue perceber bem onde é que estão os apoios às empresas. No PRR não estão. Vão estar no QFP?
Existe no PRR, no projecto Agendas Mobilizadoras de Reindustrialização [de 930 milhões de euros], que tem um pendor voluntarista muito grande. Pensamos identificar, em conjunto com empresas e o sistema científico, conhecimento que já esteja disponível, desenvolvido no sector de produção de conhecimento, que seja transferível e transformável em produtos e serviços rentáveis. E juntar empresas e constituir consórcios para a sua produção. Todos os outros sistemas de incentivos normais, vamos fazê-lo no QFP.

Já se fala de transferência de conhecimento universidade/empresas há muito tempo. Porque acha que desta vez vai funcionar, quando os prazos até são mais apertados?
Porque temos a capacidade de mobilizar recursos significativos para um conjunto direccionado de actores, sem estar a abrir concursos genéricos e generalizados. E porque vamos ter ao lado mecanismos para apoiar os projectos que sempre apoiámos. Mas teremos de ter particular cuidado na selecção dessas iniciativas, que não pode ser feita só pelo Estado. Tem de ser em conjunto com as empresas, com os centros de saber. Se calhar recorrendo a peritos especialistas que, connosco, possam decidir quais os melhores consórcios e oportunidades para desenvolver.

E que apoios às empresas haverá no Programa PT 2030?
A iniciativa “Europa mais inteligente”, que abrange a área da competitividade e das empresas, vai ter globalmente cerca de 50% do FEDER, pelo que no nosso caso serão cerca de cinco mil milhões de euros para dar continuidade a tudo aquilo que se faz no âmbito do actual Quadro Comunitário.

O que nos pode já dizer sobre o próximo QFP?
Já foi feita uma apreciação geral em Conselho de Ministros (CM), que foi necessária até para apreciar o PRR. Nas próximas duas semanas, vamos definir o que é a arquitectura global, o tipo de programas, objectivos que vai cobrir, e porventura traçar o quadro em termos gerais. Depois de ser aprovada em CM, será divulgada a arquitectura e aí sim vai ser possível perceber plenamente o PRR e o QFP.

Vai haver muitas novidades face ao actual?
Ajustaremos o quadro actual sem grandes disrupções. Até porque queremos que o próximo quadro arranque o mais depressa possível. Não depende de nós uma rápida aprovação de orçamento e regulamentos, mas queremos que tudo aconteça de uma forma tranquila. As disrupções que vão existir incidirão sobre algumas práticas do passado. Queremos apostar em novos métodos que reduzam significativamente a complexidade de acesso aos fundos comunitários, sem prejuízo de manter o nível de controlo, de fiscalização e de boa aplicação dos fundos. Temos novas tecnologias ao nosso dispor.

Queixou-se que este quadro foi muito complexo. Como vai ser a negociação do PT 2030?
Estou esperançado que decorra num espaço de tempo mais curto, numa base mais racional e técnica e menos administrativa e burocrática, que foi o que não permitiu que da última vez se tomassem algumas decisões e opções de maior racionalidade. Não queremos introduzir alterações muito radicais. Existe a preocupação de aproveitar os sistemas de gestão e controlo das Autoridades de Gestão actuais para manter os processos de certificação rápidos e em continuidade, está previsto no processo de regulamentação. E vamos também tentar, ao mesmo tempo que temos o desafio enorme de pôr o PRR no terreno, prestar atenção ao arranque em simultâneo do QFP, tendo a cautela de evitar mudanças excessivas e não justificadas.

O que vai ser feito para melhorar o acesso à informação e aumentar a transparência nestes apoios?
Vamos trabalhar no sentido de sermos o mais abertos possível. Neste momento há informação de tudo o que são projectos aprovados, mas é um serviço incompleto. Vamos desenvolver ferramentas que permitam aos utilizadores questionarem a base de dados, tirarem apuramento por município, por tipo de promotor, etc. Vamos também completar a informação com o ciclo de vida do projecto, sobre o que lhes acontece depois de aprovados. Porque uns são pagos a 70%, outros a 100%, outros são anulados, outros são suspensos, porque passam a processos judiciais de investigação. Eu aposto na transparência. Mas vai envolver níveis de compromissos muito maiores porque temos compromissos que são publicamente expostos.

A reprogramação do actual PT 2020 chegou a fazer-se?
Só falta um programa e fica fechado esta semana. A reprogramação foi feita para maximizar o financiamento dos fundos estruturais de diversas despesas associadas a resposta de crise pandémica. Reforçaram-se verbas quer nos Programas Operacionais Regionais, quer nos temáticos, em cerca de mil milhões de euros.

Diz que não temos particulares problemas de execução de fundos, mas o Governo mostrou bem as suas preocupações ao querer mudar a lei, e ao querer um regime transitório que permita baixar uma série de barreiras legislativas. As alterações ao CCP, por exemplo.
Vivemos tempos de preocupação e ela é legítima. À tradicional dificuldade de deixarmos muita coisa para o fim, e é isso que aconteceu em todos os QCA, juntaram-se recursos adicionais que, ainda por cima, estão concentrados no início de um QFA. Em vez de termos a sobreposição de dois QCA, temos três. Só uma pessoa desligada da realidade é que não teria esta preocupação. Mas dizer que temos dificuldade em executar os fundos é que não é factualmente verdade. Estamos com uma execução de 47%, seis pontos acima da média europeia. Na regra N+3 ainda não perdemos um cêntimo e há 11 países que em conjunto já perderam mais de 300 milhões. Isto é um facto.

Porque foi importante criar um regime de transição no Código Contratos Públicos?
Há um conjunto de dificuldades que tornam, neste momento, a realização de investimento público muito complexa. O problema verifica-se na Europa no seu conjunto, o que quer dizer que o enquadramento regulamentar vigente no espaço europeu tem de ser revisto. O que nós fizemos foi, não podendo alterar a legislação, dentro dos limites que nos são permitidos tentar simplificar alguns procedimentos no sentido de reduzir o ciclo de contratação, de obtenção de autorizações prévias. Porque é normal que entre a data de aprovação do apoio e o arranque da obra decorra um ano ou ano e meio. Se para os fundos normais já era muito tempo, para o PRR quase que inviabiliza operações. Tudo o que vier nesse sentido será um bom contributo para que possamos executar melhor.