21.10.20

Sem-abrigo na Madeira: pandemia deu mais visibilidade a um problema antigo

Márcio Berenguer, in Público on-line

Em menos de um ano, houve um crescimento de 30% da população em situação de sem abrigo no Funchal. Aumento, a par de uma maior exposição, tem gerado sentimentos de insegurança, e mobilizado autarquia, governo regional e PSP.

A câmara municipal fala em intranquilidade, a PSP num aumento do consumo abusivo de álcool e estupefacientes às claras na baixa do Funchal, e o governo madeirense diz estar a trabalhar em respostas. Sem turistas, lojas, esplanadas e restaurantes fecham cedo e a cidade, deserta, desperta para uma realidade que antes da pandemia, com o movimento, confundia-se com a multidão.

Mas o aumento da população em situação de sem abrigo na capital madeirense, não é apenas uma percepção. Ou uma ilusão de óptica provocada pela menor circulação de pessoas nas ruas e praças da cidade. É real, reconhecem as autoridades regionais.

Os números de que a autarquia dispõe, e que resultam do acompanhamento no terreno feito pela Associação Conversa Amiga (ACA) – parceira do município –, apontam para um aumento de 30% de pessoas em situação de sem abrigo na cidade.

“Em Dezembro de 2019, estavam identificadas pela ACA 97 pessoas; em Setembro de 2020, estão, por sua vez, identificadas 127 pessoas”, contabiliza ao PÚBLICO o gabinete da presidência da Câmara Municipal do Funchal.

As contas da Secretaria Regional da Inclusão Social e Cidadania (SRISC), não diferem muito. Neste momento, diz ao PÚBLICO fonte do gabinete da secretária regional Augusta Aguiar, está a ser feito um acompanhamento a 125 pessoas em situação de sem abrigo.

“Esta é uma realidade dinâmica, que, por variados motivos, muitas vezes difíceis de identificar e isolar, tem tendência a amplificar-se em contexto de crise económica e social”, explica ao PÚBLICO, a secretária regional, explicando que as respostas dadas pelo Plano Regional de Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (PRIPSS), permitiram nos últimos meses retirar 29 pessoas da rua.

Durante as semanas de confinamento, a secretaria regional transformou um pavilhão desportivo num centro temporário de acolhimento para pessoas sem abrigo. Nesse período, além de terem sido asseguradas melhores condições de higiene e conforto, apoio alimentar e cuidados médicos, os utentes tiveram acompanhamento diário psicossocial e psicológico. Uma oportunidade para, em conjunto com os parceiros que trabalham em proximidade, como a Associação Protectora dos Pobres, a CASA, a ACA e a AMI, colocar em prática um plano de transição progressiva para a vida em comunidade, que resultou na integração de muitas pessoas em habitações. “Um passo importante na autonomização e empoderamento desta população mais vulnerável, tendo como fim último a sua reinserção social.”

Augusta Aguiar destaca o “excelente trabalho” que tem vindo a ser desenvolvido por todos os parceiros do PRIPSS, mas reconhece que há sempre muito mais a fazer. Mas, diz, o governo regional não vai baixar os braços. Vamos reinventar soluções, como foi exemplo o centro de acolhimento temporário, que permitiu reintegrar em habitações 29 pessoas em situação de sem-abrigo. “Colocamos o cidadão, sobretudo o mais vulnerável, no centro da nossa decisão, numa acção contínua de apoio às pessoas, para que ninguém fique desprotegido”, garante a secretária regional, sinalizando que perto de 90% das pessoas que estão sem abrigo têm dependências várias: álcool, estupefacientes ou substâncias psicoactivas.

A autarquia tem o mesmo entendimento. O problema já existia, mas a pandemia potenciou o consumo às claras. “Aumentaram significativamente os casos de toxicodependentes que passaram a vir consumir para a rua, o que também contribui directamente para o sentimento de insegurança na cidade e para a pequena criminalidade”, diz o gabinete do presidente da câmara, Miguel Gouveia, que recentemente assumiu uma posição de força no combate ao vandalismo, criminalidade e insegurança na cidade.

O primeiro passo, foi a criação de equipas multidisciplinares entre a PSP e a fiscalização municipal, que reforçaram as acções em locais mais problemáticos da cidade. O segundo, é a colocação de um sistema de videovigilância CCTV na baixa do Funchal. O sistema, que está já a ser montado e será gerido pela PSP, é composto por 11 câmaras. “Visa contribuir para aumentar, desde logo, o sentimento de segurança na cidade e para tornar mais eficaz a prevenção e detecção de ameaças criminais e incivilidades, sendo desde logo um elemento dissuasor de situações relacionadas com a criminalidade, como furtos e vandalismo”, justifica a autarquia, considerando que a diminuição da actividade económica, e o consequente decréscimo acentuado de população na rua, resultou num aumento exponencial do tráfico e consumo de droga na rua, da prostituição e de vários outros fenómenos de exclusão social.
PSP está atenta

Comportamentos a que a PSP, diz ao PÚBLICO o Comando Regional, tem estado atenta. “A PSP tem efectuado acções regulares em toda a zona baixa da cidade do Funchal, apreendendo pequenas quantidades de estupefaciente consideradas para consumo, (...), prestando uma especial atenção à zona velha da cidade, e demais áreas de maior concentração de pessoas, onde têm sido detidos diversos cidadãos conotados com a prática do tráfico de estupefacientes.”

Mesmo assim, apesar destes fenómenos afectarem o “sentimento de segurança” das pessoas, a PSP rejeita que exista um aumento na criminalidade. Apresenta mesmo, garante, uma redução significativa em relação ao período homólogo do ano anterior.

Por isso, por não serem “efectivos problemas de criminalidade”, mas antes questões de “exclusão social, pobreza, saúde mental e dependências várias”, o Comando Regional da polícia defende uma resposta integrada, que considere mesmo o tratamento compulsivo.

No terreno, pela primeira vez desde que começou em 2008 a distribuir refeições quentes aos sem-abrigo, a CASA vai contar com a presença policial durante os atendimentos. “Os nossos voluntários e eu própria temos alguns receios”, admite Sílvia Ferreira, responsável pela CASA-Madeira, responsabilizando o consumo de drogas legais, como o Bloom, feitas à base de substitutos de mefedrona, que durante o confinamento popularizaram-se ainda mais. O preço e o facto de poderem ser encomendadas online, numa altura em que o número de voos no aeroporto madeirense foi reduzido aos mínimos e os portos e marinas foram fechados ao exterior, tornou este tipo de substâncias bastante atractivas pra traficantes e consumidores. “Temos assistido a alguns episódios potenciados por estas drogas, em que é necessária a presença policial”, afirma Sílvia Ferreira.