Natália Faria e Rui Gaudêncio (fotografia), in Público on-line
Ana Fernandes, presidente da Associação Portuguesa de Demografia, diz que os Censos de 2021 vão mostrar uma pirâmide etária semelhante ao “cogumelo da bomba atómica”. Quanto a medidas para contrariar a descida dos nascimentos e dos jovens em idade activa, admite que a beneficiação das mulheres com filhos no cálculo das pensões possa ser uma via, além de uma aposta muito clara em creches a preços acessíveis.
A mortalidade excessiva provocada pela covid-19 não é por si só suficiente para encurtar a esperança de vida dos portugueses, segundo Ana Fernandes, presidente da Associação Portuguesa da Demografia, para quem, além das mortes provocadas directamente pelo novo coronavírus, há ainda que estudar a mortalidade excessiva decorrente do medo, da ansiedade e do menor acesso aos cuidados de saúde. Mas a pandemia vai alterar a estrutura demográfica da população, sobretudo porque a incerteza instalada quanto ao futuro já está a fazer baixar a natalidade e não há imigrantes a entrar para compensar o envelhecimento populacional. Para contrariar esta tendência, importava discutir medidas como a indexação do cálculo das pensões ao número de filhos, como se fez em França, diz a também investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa.
Que impacto terá a pandemia na estrutura demográfica do país? Concorda com o INE quando este calcula que, no triénio 2019-2021, e na comparação com o triénio anterior, a esperança de vida possa
recuar cerca de três meses, quer à nascença quer aos 65 anos?
Não creio. Para que isso acontecesse, era preciso que houvesse uma persistência da mortalidade, ou seja, que esse
aumento da mortalidade por covid-19 alastrasse por todo o ano e isso não acontece.
Tivemos uns picos (um no Verão do ano passado e outro, maior, já
em Janeiro deste ano) mas isso não me parece suficiente para justificar o recuo na esperança de vida. Para que esta mortalidade tivesse um efeito na esperança de vida à nascença, era preciso que tivesse morrido mais gente e mais jovem. Além disso, para que o INE pudesse aferir três meses no cálculo da esperança de vida, precisávamos de ter números muito correctos em relação à população, que não temos, estamos à espera dos resultados do recenseamento.
A pandemia vai continuar a ter um efeito muito negativo na decisão de ter uma criança
E aos 65 anos?
Aos 65 anos é provável que haja uma ligeira baixa ou estabilização, porque, apesar de não termos tido um aumento de mortalidade estrutural ao longo destes dois anos, as pessoas que morreram por covid-19 foram sobretudo pessoas com mais de 65 anos. E, tivemos, por exemplo, no Verão do ano passado, um pico de mortalidade por outras causas de morte que não covid-19, e que pode ser explicado pelo facto de ter havido poucas ambulâncias em determinado momento e pelas pessoas que morreram de ataque cardíaco e por AVC por falta de atendimento específico nas urgências ou por terem deixado de ir ao médico com receio.
Era preciso analisar melhor essas causas de morte que resultaram indirectamente da covid-19, mas não me parece, por aquilo que já sabemos da mortalidade excessiva, que esta seja suficiente para haver um recuo na esperança de vida.
Poder-se-á então dizer que o impacto da pandemia na estrutura demográfica será reduzido?
Será reduzido. A minha percepção é que este foi um fenómeno muitíssimo relevante e muitíssimo importante do ponto de vista social, que criou incerteza ao nível daquilo que era certo que era o controlo da mortalidade, mas que, em termos de impacto estatístico populacional e ao nível da estrutura etária, não terá relevância.
Quando às creches não temos visto grandes preocupações políticas. As creches privadas continuam a ser demasiado caras, mais do que a universidade.
Mesmo considerada a diminuição da natalidade?
Isso é outra coisa. E aqui já não estamos a falar directamente da covid-19, mas daquilo que ela provoca nas pessoas. E,
ao nível da natalidade, a pandemia está a ter um impacto pela incerteza que introduziu em termos económicos, para além das situações objectivas de precariedade que veio criar.
Portanto, a pandemia não só veio criar objectivamente situações precárias como, naqueles em que não chegou a fazê-lo, criou incerteza. E é esta incerteza instalada face à vida social e face ao amanhã que põe fortemente em causa a decisão de se ter uma criança.
Corremos o risco de voltar a um número semelhante aos
82.367 nascimentos de 2014 — ano em que batemos no fundo em termos de natalidade?
É provável, sim, que continuemos a baixar, até porque não me parece que as condições se tenham alterado, pelo menos ao nível da percepção da sociedade face àquilo que nos aconteceu. Não temos ainda dados para crer que as coisas estejam certas face ao futuro. E, nessa medida, a pandemia vai continuar a ter um efeito muito negativo na decisão de ter uma criança.
É o problema de o
trabalho ser uma espécie de pedra de toque na decisão reprodutiva?
Completamente. É por aí que passa muito a decisão de ter um filho. Pela perspectiva de uma situação estável em termos de rendimento e de situação económica.
É de prever que tenhamos assim um estreitamento ainda maior na base da pirâmide etária?
Esse é um enorme problema que se vai reflectir no futuro e que não tem retrocesso: a base da pirâmide vai apertando, e, pelo facto de termos cada vez menos jovens por efeitos anteriores de recuo na natalidade, teremos também o estreitamento da pirâmide na parte central.
E isto é combatível por via de medidas de apoio à natalidade ou já não vamos a tempo?
O Governo está naturalmente a querer transmitir uma
ideia de confiança no futuro e na recuperação da economia por via do dinheiro europeu que aí vem, mas não me parece que o rombo seja recuperável de imediato.
A França conseguiu chegar aos 2,1 filhos em média por mulher em idade fértil com a ajuda dos imigrantes, evidentemente, embora também com uma política muito orientada para a distribuição de creches por todo o lado. Essa preocupação não se tem visto por cá
No início do ano passado, ainda se pensava que as portas das empresas que tinham fechado, dos restaurantes e do comércio, voltariam a reabrir rapidamente, mas hoje já sabemos que não é assim e que muitas empresas fecharam mesmo. Do ponto de vista político, os estudos mostram que, entre os europeus, a chave de toque que faz com que possam ter mais filhos está na existência de creches acessíveis, no espaço e do ponto de vista económico: é o apoio fundamental de que as famílias precisam para decidirem ter um filho, quando há alguma segurança do ponto de vista económico, até porque as mulheres não querem ficar em casa, têm carreiras profissionais e não as querem perder.
E aqui até temos medidas bastante boas no sentido de uma maior participação dos pais na relação com os filhos, que ajudam a que as mulheres possam proteger um pouco melhor o seu local de trabalho e a sua carreira profissional. Mas quando às creches não temos visto grandes preocupações políticas. As creches privadas continuam a ser demasiado caras, mais do que a universidade.
A normalização do teletrabalho poderá ajudar a alavancar um bocadinho a maternidade, uma vez que a conciliação trabalho/família é outra das dificuldades frequentemente apontadas pelos pais?
Poderíamos teoricamente pensar que sim, mas, na prática, o trabalho em casa tem muitos ónus e muitas dificuldades, principalmente para as mulheres que passaram a funcionar a dois ritmos dentro de casa e sentiram as dificuldades de terem de se concentrar no trabalho ao mesmo tempo que têm de dar apoio à criança ou ao bebé, atender às refeições e organizar a casa. É muito complicado. E mesmo com as crianças na escola não penso que mudar o escritório para casa possa ter grande impacto na maternidade.
E temos por outro lado o menor afluxo de imigrantes, que poderá também agravar a queda da natalidade.
Exactamente. E a natalidade em Portugal beneficiou durante algum tempo das mulheres brasileiras que vinham para Portugal e que tinham filhos, ajudando assim a compensar a descida no número de nados-vivos e o défice de população jovem no país.
E a França conseguiu chegar aos 2,1 filhos em média por mulher em idade fértil com a ajuda dos imigrantes, evidentemente, embora também com uma política muito orientada para a distribuição de creches por todo o lado.
Essa preocupação não se tem visto por cá e, desde que Manuela Ferreira Leite fechou as creches públicas, como as que existiam ao nível das universidades e dos locais onde havia jovens, o problema das creches está totalmente entregue à sociedade civil, privados e instituições particulares de solidariedade social.
A natalidade em Portugal não poderia beneficiar de medidas como a adoptada recentemente em Espanha, cujo Governo decidiu incluir as famílias monoparentais com dois filhos no conceito de famílias numerosas?
Isso poderá beneficiar as famílias, mas já não vem promover a natalidade, porque é uma medida a jusante disso. Há uma discussão que pode ser lançada neste domínio e que tem a ver com o facto de o cálculo das pensões poder ter em conta o número de filhos, nomeadamente para as mulheres. No fundo, pensar-se em introduzir no cálculo das pensões um coeficiente de ponderação consoante o número de filhos, multiplicando um pouco o valor que a mulher vai receber como pensão. Não vejo que no princípio da vida activa isto possa ser muito estimulante, mas é uma medida que os franceses adoptaram e que pode proteger mais as mulheres que optam por ter filhos.
Um sueco que anda numa cadeira de rodas faz a sua vida normal, apesar da sua incapacidade é uma pessoa autónoma, enquanto em Portugal não é, pode até ser um acamado ou, pelo menos, estar reduzido à janela de casa
Ainda em Madrid, Isabel Diaz Ayuso anunciou há pouco a decisão de apoiar as mulheres com rendimentos inferiores a 30 mil euros anuais com um cheque de 500 euros mensais, desde o quinto mês de gravidez até aos dois anos da criança, num apoio total de 14.500 euros, já a partir de 2022.
É uma medida que poderá ter algum impacto, não posso dizer que não, principalmente nas mulheres que não tenham uma aposta na carreira profissional. No fundo, é um abono que começa antes de a criança nascer. E os abonos em Portugal não são nada estimulantes da natalidade porque são muito baixos e são só para as crianças de categorias sociais muito baixas. Mas pensar que o nascimento de uma criança é um beneficio para o país pode passar por medidas dessas.
No caso de Madrid, a medida aplica-se apenas às mulheres até aos 30 anos de idade, pelo que se depreende que há aqui um esforço para tentar baixar a idade a que as mulheres têm filhos.
Essa preocupação percebe-se porque, em Portugal, por exemplo, a idade da mulher ao nascimento do primeiro filho está nos 30 anos, o que é muito alto. E isto compreende-se porque a entrada no mercado de trabalho dá-se muito tardiamente e os jovens demoram muito tempo a conseguir alguma estabilidade laboral e até uma relação conjugal estável. É tudo mais tardio. E isso também pode ser o reflexo do aumento da longevidade: como se vive muito mais tempo, foi tudo atrasado.
Calculei o impacto da crise anterior na esperança de vida aos 65 anos e realmente verificou-se uma redução, também porque muitas pessoas tiveram medo de perder as pensões e passaram a ter um menor acesso a cuidados de saúde, e isso traduziu-se em ataques de pânico, ataques de coração, e provavelmente, mortes prematuras. Agora estamos um bocadinho no mesmo padrão
Vamos continuar a somar ganhos na esperança de vida ou estamos perto do limite?
Estamos já perto do limite daquilo que é possível, porque, se retirarmos de uma tábua de mortalidade tudo o que é morte evitável (acidentes de viação, infecções...) e calcularmos novamente a esperança de vida, ela já ronda os 86 anos. Para as mulheres espanholas, aliás, já temos uma esperança de vida que ronda os 86 anos. Portanto, nós estamos no limiar daquilo que é possível em termos de estender a esperança de vida humana.
No entanto, entre os portugueses a esperança de vida saudável aos 65 anos é relativamente curta.
Nós
temos das esperanças de vida saudável aos 65 anos mais baixas da Europa. Mas este cálculo é feito com base em indicadores de avaliação subjectiva e não objectiva, ou seja, são as pessoas que dizem se têm saúde ou não, se têm incapacidade ou não, e, portanto, isto vale o que vale, ou seja, tem um valor muito relativo porque em Portugal as pessoas são sempre muito pessimistas, olham para a sua saúde sempre pelo lado negativo. E depois a nossa cultura é muito dependentista, promovemos pouco a autonomia. Enquanto os nórdicos são muito promotores da autonomia da pessoa, nós somos muito proteccionistas. E, portanto, um sueco que anda numa cadeira de rodas faz a sua vida normal, apesar da sua incapacidade é uma pessoa autónoma, enquanto em Portugal não é, pode até ser um acamado ou, pelo menos, estar reduzido à janela de casa porque não sai, não tem autonomia.
Vê paralelismos e diferenças do impacto desta crise na estrutura populacional relativamente à crise anterior, que motivou a vinda da
troika?
Penso que as duas crises se estão a encontrar. Porque a crise financeira provocou uma crise económica, tivemos empresas fechadas, negócios que deixaram de funcionar, pessoas desempregadas, e também se instalou a incerteza. E, do ponto de vista sociológico, podemos dizer que o perfil destas duas crises é idêntico, ainda que esta que estamos a viver esteja agravada pela incerteza relativamente à saúde. Mas há uma similitude muito grande entre uma e a outra.
Eu calculei o impacto da crise anterior na esperança de vida aos 65 anos e realmente verificou-se uma redução, também porque muitas pessoas tiveram medo do que ia acontecer, medo de perder as pensões e passaram a ter um menor acesso a cuidados de saúde, e isso traduziu-se em ataques de pânico, ataques de coração, e provavelmente, mortes prematuras. E agora estamos um bocadinho no mesmo padrão de incerteza, não em relação às pensões, não tivemos o mesmo tipo de cortes, mas na incerteza em relação ao dia de amanhã.
Mas na altura pesou o medo ou o efectivo menor acesso a cuidados de saúde?
Penso que foi um misto dos dois, porque, na velhice, a insegurança quanto ao dia de amanhã causa muita inquietação. Eu apanhei algumas pessoas de idade com esta inquietação, que causa muito desespero, tristeza, depressão e problemas de saúde, evidentemente.
É certo que os
Censos de 2021 não vão espelhar ainda os efeitos da pandemia na população, mas que mudanças espera encontrar na estrutura populacional portuguesa quando forem divulgados os resultados?
O que nós esperamos é uma aproximação da pirâmide etária àquilo a que chamo a imagem do “cogumelo da bomba atómica”, explosivo e algo assustador, em que a parte central e a base da pirâmide se encolhem acentuadamente e o topo aumenta. Penso que continuaremos acima dos dez milhões de residentes, mas a reduzir, e que vamos ter défice de população activa, de população jovem. Teremos mais espaço nas escolas e mais pessoas em lares e a viver sozinhas. Portanto, teremos um acentuar do encolhimento na parte central e da base e um alargamento do topo na pirâmide etária.
E não devíamos estar a olhar mais seriamente para este problema?
Com certeza, porque é o futuro. A demografia é traiçoeira, quando ela se apresenta é como facto consumado já não há nada a fazer, porque já se devia ter feito para trás.