Joana Gorjão Henriques (Texto) e Nuno Ferreira Santos (Fotografia), in Público online
O psicólogo social Rupert Brown vem abrir esta quinta-feira, às 14h30, o ano académico do Instituto de Ciências Sociais, em Lisboa, com palestra sobre discurso de ódio e efeitos nas vítimas indirectas.
Professor emérito de Psicologia Social na Universidade de Sussex, investigador que escreveu dezenas de artigos em áreas como as relações interpessoais ou o preconceito, Rupert Brown está em Lisboa para a palestra Sedas Nunes, no Instituto de Ciências Sociais, em Lisboa, que irá abrir o ano académico às 14h30. O autor dos livros
Prejudice: Its Social Psychology ou
Group Processes: dynamics within and between groups, e de uma biografia sobre o psicólogo social Henri Tajfel: explorer of identity and differences vai falar sobre os efeitos indirectos dos crimes de ódio, algo que “não tem sido tão explorado” — ou seja, das pessoas que são do mesmo grupo identitário que as vítimas directas de crime que não foram directamente atacadas.
Em entrevista ao PÚBLICO na quarta-feira, em Lisboa, explica que nos crimes de ódio o que está em causa — tanto em relação às vítimas, quanto aos agressores — são as identidades de grupo: de um grupo minoritário, no caso das vítimas, e de um grupo maioritário, no dos agressores. Quando cometem o crime, estes agressores vêem-se como membros de um grupo maior a tentar defender a maioria contra minorias, sublinha. “Nesse momento não estão a agir como indivíduos mas como membros de um grupo. Essa foi a contribuição mais importante de Tajfel.”
No Reino Unido e em Portugal há legislação para punir quem comete crimes de ódio de acordo com as características das pessoas, da religião à origem étnica e racial ou à orientação sexual. Mas em Portugal
não tem sido muito eficaz, há poucas condenações — como é que se torna mais eficaz a lei?
Tive acesso a
algumas estatísticas portuguesas e uma das coisas em comum com o Reino Unido é o facto de os números estarem a subir. O que é muito diferente são os números de crimes
de ódio registados pela polícia [que em Portugal eram cento e pouco] e no Reino Unidos eram 120.000. Temos mais população, mas há diferença na forma como a polícia encara a seriedade do crime de ódio.
Desde o assassinato, nos anos 1990, do jovem negro
Stephen Lawrence houve uma sucessão de mudanças a nível político e da polícia para que se passasse a tomar estas ofensas a sério, reconhecendo que as pessoas são atingidas por causa da pertença a um grupo, seja a cor da sua pele, a religião ou a orientação sexual. Em relação à legislação isto significa que, se alguém for condenado por um crime de ódio, a sentença é agravada. A lei foi criada por várias razões, para desencorajar, mas, mais importante, para reconhecer que este país leva o crime de ódio a sério — simbolicamente, passa a mensagem de que este tipo de crimes merece atenção especial.
Isto leva a outra questão que desenvolve: quando as pessoas em posição de liderança expressam a sua condenação de comportamentos de ódio, isso tem um efeito positivo na dissuasão...
Sim, cria uma nova norma em que este tipo de crimes são vistos como ofensivos e graves.
Se tivermos pessoas em lugares de autoridade a tomar posições fortes contra a imigração ou contra grupos minoritários, claro que tem efeitos e que as pessoas no terreno vão sentir-se mais legitimadas a agir, partindo dos seus sentimentos negativos já existentes, contra grupos minoritários
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a líderes que, pelo contrário, expressam ódio e discriminam determinados grupos?
Tem obviamente o efeito oposto. É por isso que olhamos para o crime de ódio não apenas do ponto de vista dos agressores ou de algumas pessoas psicopatas; temos de perceber que, quando acontece em determinado contexto político, e que quando os partidos da extrema-direita estão em ascensão, isso cria uma espécie de influência contranormativa, contra as instituições e contra as leis. Se tivermos pessoas em lugares de autoridade a tomar posições fortes contra a imigração ou contra grupos minoritários, claro que tem efeitos e que as pessoas no terreno vão sentir-se mais legitimadas a agir, partindo dos seus sentimentos negativos já existentes, contra grupos minoritários.
Quais as consequências de ter essas pessoas a expressar de forma tão aberta o ódio e o preconceito? Aumenta o número de ataques ou de pessoas que são abertamente discriminatórias?
É difícil fazer uma associação directa, mas podemos ver algumas conexões. Por exemplo, há seis anos o
Reino Unido decidiu sair da União Europeia e isso foi estimulado por alguns políticos que estavam a fazer campanha anti-imigração. Especialmente nos dias seguintes aos resultados do referendo vimos uma subida acentuada dos ataques, e particularmente em relação a imigrantes do Leste — a grande fonte de imigração para o Reino Unido —, que eram vistos como uma ameaça específica. Aos olhos desses agressores, 52% das pessoas do país pensavam como eles — o que obviamente não era verdade, porque os motivos para o “Brexit” foram vários.
Defende que a pesquisa reforça os argumentos morais e legais para tratar o crime de ódio como uma categoria especial e que os tribunais deviam levar em conta não apenas o impacto na vítima, mas também na comunidade. Isto implica uma mudança de mentalidade no sistema judicial, assim como na comunidade maioritária e até nas vítimas. Como se pode fazer esta mudança?
Isso é um grande debate que temos no sistema judicial, mas vai à questão sobre o porquê de o crime do ódio ser considerado tão sério. Quando alguém é atacado por causa da sua religião [ou outra das características], pode passar por algum trauma, mas os efeitos psicológicos de ter sido atacado por ódio duram mais e são mais graves do que num crime equivalente aleatório. Os efeitos sentem-se de forma mais ampla na comunidade a que a pessoa pertence — as pessoas vão sentir mais medo, preocupação sobre se serão os próximos.
No sistema judicial britânico, depois de o arguido ter sido condenado, há a possibilidade de a vítima ir ao tribunal e dizer quanto foi afectada por aquele crime. E porque o crime de ódio tem estes efeitos a sugestão é que os líderes — sejam imãs, líderes de grupos LGBT+ ou outros — possam ir a tribunal dizer quais os efeitos na comunidade. Isso é o reconhecimento de que o crime de ódio é mais do que um ataque individual, tem este impacto maior na comunidade.
Diz que enquanto ser vítima de um crime causa danos psicológicos, ser vítima de um crime de ódio leva a maiores níveis de stress. Isto, porque os crimes de ódio têm como alvo as identidades decisivas das pessoas e fazem-nas saber que não são toleradas. Pode explicar como isto afecta a saúde mental e pode levar à internalização do preconceito?
Ser vítima de um crime afecta a nossa autonomia, e sentimentos de segurança e isso já é mau de mais — mesmo que seja uma ofensa verbal (por exemplo, as mulheres estão constantemente a ser vítimas de ofensas). Quando se é atacado, porque se é muçulmano, ou gay, ou negro ou judeu, o agressor ataca não apenas o sentimento de autonomia e individualidade e a vítima sente que a sua identidade, a sua identidade social como gay ou muçulmano está sob ameaça — “Se calhar não são apenas estes, mas há outros que nos odeiam”, pensam. É o “nós” e não apenas o “eu”. Para muitos membros destas comunidades, este aspecto é central à sua identidade — nem sempre — e pode ser sublinhada pelo ataque, mas é uma identidade que está sob ameaça, porque podia ser qualquer um da comunidade o alvo do ataque. Isso faz com que o crime de ódio seja duplamente duro e que o trauma seja mais duradouro por não ser apenas a identidade pessoal que está ameaçada, mas a identidade social mais vasta.
Há alguns exemplos extremos em que a pessoa mais comum pode cometer estes actos horrendos, mas diria que em tempos normais têm de existir estes padrões de predisposição
Os efeitos no grupo são similares?
Não vou dizer que a vítima indirecta sofre o mesmo que a vítima directa — ser-se agredido na rua não se pode comparar a ter-se visto alguém ser agredido. Mas o que é interessante na nossa pesquisa, quando conseguimos localizar pessoas que foram atacadas e pessoas que nunca foram atacadas mas souberam de quem foi e perguntamos sobre os seus sentimentos, é que é difícil fazer uma distinção entre os dois grupos quanto aos níveis de zanga e medo que sentiam. Pelo menos psicologicamente tem efeitos semelhantes; e quando percebemos como se sentiam e as atitudes em relação à polícia ou ao governo ou o que pretendem fazer no futuro — andar livremente na rua, depois de anoitecer, ou dar as mãos ao parceiro —, sentimos semelhanças entre as vítimas indirectas e directas. Constatámos isto ao longo do tempo.
E o apoio psicológico deve ser o mesmo?
É difícil, porque, se pensarmos em vítimas indirectas, podem existir milhões — por exemplo, no assassinato de Stephen Lawrence houve um efeito na família brutal —, mas como pode dar-se apoio psicológico aos milhões de outras pessoas negras?
Quando alguém de um grupo maioritário comete um crime, é descrito como um indivíduo; quando é de um grupo minoritário, passa a ser o seu grupo. Porque é que isso acontece?
Boa pergunta, não tenho a certeza. Acho que tem que ver com a segurança de se estar numa posição de poder e de vantagem — a identidade como membro da maioria não é questionada, nem trazida para o debate, a não ser em determinadas circunstâncias. Como indivíduos de um grupo maioritário, não somos forçados a confrontar-nos com a nossa identidade maior.
Diz que as pessoas que cometem crimes de ódio não precisam de ser fanáticas. E lista quatro motivações para os comportamentos de ódio: a excitação com a ofensa, a reacção ao que encaram como defesa de território, a retaliação e, em menor número, uma missão ideológica de repulsa. As pessoas normais podem ser agressoras com base no ódio?
Em algumas circunstâncias não habituais, sim — e o exemplo óbvio é a Alemanha nazi, quando muitos milhões de alemães, que não eram de maneira nenhuma monstros psicopatas, estavam rodeados de um regime opressivo. Passou a ser completamente normalizado que os membros da comunidade judaica, pessoas com problemas mentais, e outras fossem vistas como não-pessoas. Houve um debate histórico sobre a extensão do envolvimento de alemães comuns nas atrocidades nazis, mas não há dúvida de que muitos alemães cometeram crimes. Há outros exemplos, como no Ruanda.
Há alguns exemplos extremos, em que a pessoa mais comum pode cometer estes actos horrendos, mas diria que em tempos normais têm de existir estes padrões de predisposição. Por exemplo, os que procuram a excitação: nem todos os jovens brancos vão cometer estes actos; mas sabemos que há pessoas que gostam de cometer estes actos por excitação e se combinarmos isto com outros factores, como o sentimento de que têm que defender o seu território… Depois há a minoria dos que professam a ideologia de ódio, mas que, infelizmente, têm uma influência maior do que o seu número, porque os meios para propagar o ódio estão tão disponíveis para tanta gente nas redes sociais... Um dos projectos que temos é o de olhar para os tweets de ódio, e vemos os altos e baixos de acordo com os acontecimentos. Por exemplo, depois dos ataques em Paris, houve uma subida enorme dos tweets de ódio a muçulmanos. Embora [estes ideólogos] sejam uma pequena fracção dos perpetradores de crimes de ódio, a sua capacidade para criar um clima hostil pode ter muita influência. Agora com as redes sociais há este efeito acelerador de autopropagação em que as pessoas depois se sentem legitimadas.
As emoções dominantes são a raiva que sentem as pessoas que são atacadas por mais nenhuma razão do que pertencer a um grupo (e isto é válido para quem é vítima directa ou indirecta); a outra é o medo
Como é que nesse aspecto a análise do crime de ódio teve de se ajustar à maior difusão do discurso de pessoas que se escondem atrás de falsos perfis?
Complexifica a análise. Fizemos um projecto em que tivemos de correlacionar o número de tweets depois de um evento específico com a proporção de tweets de ódio e parecia haver conexão; também correlacionámos isso com os registos pela polícia de crimes de ódio. Não é implausível pensar que a propagação deste discurso online de ódio leva a incidentes reais, mas é muito complicado perceber o que vem primeiro.
Refere que as emoções e comportamentos podem ser um reflexo da natureza hierárquica da sociedade e que os grupos dominantes em posição de poder vão defender aquilo que acreditam ser o modo adequado de estar em sociedade contra os valores de quem percepcionam como diferentes. O sentimento de superioridade numa esfera — ser branco, por exemplo — é suficiente para desencadear estas emoções? Há pessoas brancas e pobres que se podem sentir superiores a uma pessoa negra e rica.
É uma questão interessante. Há algum debate sobre o que chamamos “identidades sobrepostas” ou “transversais” e torna-se complicado. Diria que em geral, quando se tem identidades sobrepostas, há possibilidade de alianças — por exemplo, há mais crimes contra mulheres negras do que brancas, mas há a possibilidade de que as mulheres brancas formem uma aliança com as mulheres negras, porque têm a categoria partilhada de serem mulheres e poderem ser também alvo de misoginia. Também pode ir em sentido contrário — os homens brancos podem ser duplamente discriminatórios em relação a mulheres negras, porque não partilham nenhuma das características de género e raciais. Em situações especialmente perigosas, há essa possibilidade de dupla exclusão.
É complicado, às vezes, ir apenas à pertença de grupo. Por exemplo, a
ministra do Interior britânica, Suella Braverman, é de origem minoritária, podemos celebrar isso, mas, quando fez o seu discurso ao Partido Conservador, usou esta frase de Martin Luther King: “Tenho um sonho.” O sonho era o de que todos os imigrantes ilegais fossem postos num avião para o Ruanda... Neste caso, a sua ideologia política assumiu muito mais importância do que a cor da sua pele.
As pessoas reagem de formas diferentes aos abusos — pode descrever as mais comuns?
As emoções dominantes são a raiva que sentem as pessoas que são atacadas por mais nenhuma razão do que pertencer a um grupo (e isto é válido para quem é vítima directa ou indirecta); a outra é o medo e, dependendo da situação, pode sentir mais medo do que raiva, pois a pessoa sabe que está em minoria e pode reagir a esse medo fechando-se, escondendo a sua identidade de grupo. A raiva conecta-se com o que se sente ser possível fazer de positivo, como contestar, pertencer a grupos activistas, ou juntar-se a aulas de autodefesa.
O que é que a comunidade maioritária deveria fazer para reparar os efeitos do crime de ódio?
É complicado. Para usar um exemplo histórico de culpa colectiva, e de como pode gerar movimentos colectivos para reparação e restituição: Portugal, como o Reino Unido, foi um país que escravizou, os dois foram colonizadores, abusaram. Atrocidades foram cometidas. Hoje em dia, a maioria das pessoas reconhece os horrores do comércio de escravos e muitas aceitam que há motivos para fazer algumas restituições a descendentes de escravos, que muitas das desvantagens prolongaram-se ao longo da história. O argumento mais complicado, que tem tido resistência dos governos, porque reconhecem as dificuldades financeiras e de tensão, é dizer que algumas comunidades deveriam ter vantagens económicas para as compensar de muitas injustiças.
Como maioria podemos sentir a culpa colectiva que faz com que pressionemos os legisladores e os agentes de autoridade e outros a criarem um ambiente em que existam menos crimes de ódio, mas não temos uma poção mágica.