Por António Marujo, in Jornal Público
Resposta à sucessão de escândalos em vários países pode representar uma oportunidade de mudança
Frentes de uma polémica
A Igreja Católica atravessa a mais profunda crise do último século, com as acusações de abusos sexuais de menores por membros do clero. Para encontrar algo semelhante, devemos recuar até início do séc. XX, com o antimodernismo do Papa Pio X. Mas esta crise atinge um catolicismo universal, e há um século era uma realidade pouco mais do que europeia. Será Bento XVI, um Papa académico, capaz de afrontar um dos mais graves problemas pastorais da Igreja? Ratzinger é um teólogo notável no diálogo cultural, mesmo com filósofos não-crentes como Habermas ou Paolo Flores d"Arcais. Eleito para um pontificado de transição, cuja marca seria afirmar o facto cristão no diálogo multicultural contemporâneo, tem o desafio de "limpar a Igreja" da sua sujidade, como afirmou na Sexta-Feira Santa de 2005.
Esta crise pode ser uma oportunidade de mudança. A começar pela relação entre catolicismo e sexualidade - que o teólogo Hans Küng definiu como "crispada". Não para dizer que o celibato é a causa da pedofilia. O celibato como opção voluntária pode ser dedicação a uma comunidade. Como disciplina obrigatória (que já tem excepções), poderá ser revisto. É certo que a esmagadora maioria de abusos se dá com familiares das crianças. Como escrevia o Papa na carta aos irlandeses, a pedofilia não se restringe àquele país ou à Igreja Católica. Pelo contrário. Mas encarar a questão será afrontar a formação nos seminários, tantas vezes castradora de afectos, causa profunda da pedofilia no clero.
Geração de hipocrisias
A Igreja tem, na Bíblia, uma fonte harmónica e integral que séculos de moralismo esconderam. Ao contrário do que diz Saramago, a Bíblia não é um manual de maus costumes. Mas, ao contrário do que pensam e dizem muitos católicos, tão-pouco é um manual de bons costumes. A Bíblia é sobretudo uma proposta de relação - do ser humano com Deus e entre os seres humanos como imagem de Deus.
Aqui reside uma primeira dificuldade: muitos responsáveis católicos insistem na abordagem dualista, legalista e pecaminosa da sexualidade. O que tem sido gerador de hipocrisias.
A crispada relação com a sexualidade reflecte-se também no modo como a doutrina católica olha a contracepção. Há quatro décadas, a encíclica Humanae Vitae interditou os métodos "artificiais" de planeamento familiar, porque alguns cardeais não aceitavam a mudança proposta por uma vasta comissão de médicos, teólogos e casais. Se o Papa Paulo VI não tivesse cedido à pressão da Cúria, o preservativo não seria hoje um tabu (mesmo se distribuído aos milhares por freiras e padres na luta contra a sida). E o catolicismo das últimas décadas teria sido bem diferente.
Esta relação difícil com a sexualidade tem manifestações como os abusos sexuais cometidos por padres sobre religiosas, em África, conhecidos há uma década; ou o padre mexicano Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, que teve filhos de várias mulheres às quais ocultava a sua identidade; foi pedófilo, incestuoso e toxicodependente. A instituição por ele fundada é exemplo dos grupos que hoje, na Igreja, insistem na perspectiva moralista. Não é de estranhar que mais se condene quem mais moralismo apregoa. Com uma agravante: as pessoas que confiavam os filhos a responsáveis da Igreja eram membros da comunidade. Para elas, o sentimento de traição é esmagador.
A acusação de encobrimento atinge agora o próprio Papa. Na carta aos irlandeses, há oito dias, Bento XVI acusa vários bispos de terem falhado "por vezes gravemente". Seria estranho que o tivesse escrito, se tivesse telhados de vidro. De outra forma, estaria sem autoridade perante os seus "irmãos bispos". Como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), Ratzinger conhecia vários casos. Pode ser forçado dizer que os encobriu. O mais emblemático, noticiado pelo New York Times esta semana, revela que nem os poderes públicos agiram sobre o padre que abusou de 200 crianças - tal como aconteceu na Irlanda. E que Ratzinger só duas décadas depois conheceu os factos.
O célebre documento de 1962 (que Ratzinger, então um padre com 35 anos, não escreveu), que defendia o secretismo, foi substituído em 2001, dando um passo em frente: obrigou os bispos a comunicar os casos de pedofilia ao Vaticano. Só nessa ocasião Ratzinger e a CDF passam a tomar conta destes casos. Só o total esclarecimento do papel do Papa em cada caso poderá aclarar a sua responsabilidade.
Opinião pública
O encobrimento e a tolerância social da pedofilia era a atitude normal até há três ou quatro décadas - o caso Polanski reapareceu a recordá-lo.
Também sabemos que a comunicação social é mais severa com a Igreja Católica do que com outros. E dá sempre mais dimensão aos escândalos do que aos caminhos de solução e omite factos como os números aparecidos na Alemanha serem resultado do trabalho da Conferência Episcopal.
Mas desde 1990 há uma avalancha de casos. O que se passou na Irlanda, que durou até há poucos anos, mostra que não se atalhou o problema logo. Em 1993, um documento dos bispos do Canadá fazia propostas de solução que tiveram sucesso. O caminho deveria ter sido seguido por outros.
Por isso não se entende a infeliz declaração do cardeal Saraiva Martins: a Igreja é pela "tolerância zero", mas não lava a "roupa suja" em público. Há mais de 60 anos, o Papa Pio XII dizia que a opinião pública é "vital" para a Igreja. A lavagem de roupa suja mais não é que uma desafortunada expressão para referir o debate interno, que está na matriz genética do cristianismo. E foi pela falta de tolerância zero que se chegou aqui.
A mês e meio da viagem de Bento XVI a Portugal, percebe-se que haverá mais casos e que há interessados em atingir a credibilidade da Igreja. Esta tem de ser a primeira a reflectir no porquê dessa aversão e a procurar razões no seu interior - uma atitude própria da Semana Santa que os cristãos hoje começam. O cerco à volta de Ratzinger também continuará. Será um Papa ferido que virá a Portugal. Talvez rodeado por grupos interessados prioritariamente em defender a instituição dos "ataques" - já correm textos na Internet...
Convém não esquecer que foi a preocupação pela defesa da instituição que levou ao actual estado de coisas. Só uma atitude purificadora e aberta à mudança permitirá à Igreja recuperar a credibilidade perdida. Os cristãos chamam a isso ressurreição.