Ana Cristina Pereira, in Público on-line
À cantina da Obra Diocesana do Lagarteiro, no Porto, vão muitas famílias aflitas com as dívidas – de água, de luz, de mercearia, de agiotas.
É um dia especial. Maria Madalena faz 55 anos. Como em qualquer dia, ao meio-dia, vai à cantina social levantar o almoço para ela e para o companheiro. Hoje, duas doses de raia frita, com batata e vagens, duas sopas, dois pães, quatro peças de fruta. “Guardo a sopa para a noite, mas é raro comer…”
Almoça, devolve os recipientes, torna a casa. Muitas vezes, não tarda a aninhar-se. “Eu de manhã faço tudo. Podem ir a minha casa. Abro a porta seja a quem for. Está tudo limpo. Chegando ao fim da tarde, morri. Tomo uns calmantes e durmo. Não tenho aquela força de vontade….”
Desperta de madrugada. Hoje, acordou às 3h45. “Não fico na cama. Ando de um lado para o outro. Junto roupa, estendo roupa, dobro roupa. Não sei se faço barulho ou não. Tiro o aparelho [auditivo]. Os outros sabem se faço barulho ou não. Eu não ouço. Faço de conta que não faço.”
“Era uma mulher cheia de vida”, suspira. “Tenho desgosto por não poder trabalhar. Eu não era assim. Eu ia trabalhar. Pimba, pimba, pimba. Sempre com o meu tacão. Agora, se tiver de ir à Baixa levo chinelos e tenho medo de os perder…. Vou a falar, já me esqueço. Até do fogão ligado me esqueço…”
Maria Madalena começou a trabalhar aos 14 anos e parou há cinco ou seis. Parecendo que não, são uns 35 anos de actividade. Foi tecedeira, copeira, empregada de limpeza. “Onde trabalhei mais tempo foi no Estádio das Antas, que agora chamam Estádio do Dragão. Fazia limpeza. Ruas, bancadas, tudo. Debaixo de chuva, debaixo de calor, tudo. Foi lá que dei cabo da minha saúde. Tenho osteoporose. Já tirei um cancro. Sou diabética. Já fui internada em psiquiatria.”
Contava 15 anos quando se juntou ao companheiro, que mal sai de casa, afundado que está. Ele contava 20 anos. Criaram três filhos. Viram nascer cinco netos – dois ainda embalam, pequeninos que são. A filha, que teve um bebé há nove meses, também vai buscar o almoço à cantina social.
Todos os dias, 25 refeições são entregues a famílias carenciadas residentes ali mesmo, no bairro do Lagarteiro, na zona Oriental do Porto. “Temos em conta os rendimentos e as despesas”, diz a directora técnica da Obra Diocesana do Lagarteiro, no Porto, Luísa Preto. Sobram famílias aflitas com os baixos rendimentos e as muitas dívidas – de água, de luz, de mercearia, de agiotas.
“Devia ir ao psiquiatra”, torna a suspirar a mulher, de pernas finas, enegrecidas. “Faltei à consulta. Faltei à consulta porque não tinha dinheiro para transporte. Já não tenho saúde de levar as pernas a nenhum lado. A vida não é como a gente quer. Tem de se pagar as coisas. O dinheiro não chega…”
Recebem 243 euros de rendimento social de inserção (RSI). Maria Madalena assume que 200 são para o marido e 43 euros para ela. Nem para a farmácia lhe chega. “Tomo muita medicação. Não tenho tomado tudo. Tenho de ir ao assistente social pedir para pagar a medicação que estou a precisar. Tenho de levar umas declarações, como todos os anos, mas não tenho tido dinheiro para transportes.… E andar… já nem à loja do cidadão consigo ir. Uma vergonha. Uma mulher que andava, pimba, pimba, pimba, bancada a bancada, de galochas, ao sol, à chuva…”
Todos os dias, caminha até casa com as marmitas. Amiúde, vai a pensar que só tem quatro dentes, dois em baixo, dois em cima, todos eles enegrecidos, a abanar. “Parto tudo aos bocadinhos. Não mastigo. Deixo amaciar, depois engulo. Nem sinto bem o paladar da comida. Não consigo mastigar. É engraçado que o meu marido não tem dentes há muito e come bem. Tem as gengivas calejadas! Se for massa com frango ele chucha. Eu não consigo. Tenho de rapar o frango com a faca….”
Maria Madalena faz 55 anos hoje e, por fazer 55 anos hoje e lhe parecer uma prenda ter à sua frente um par de jornalistas, diz isto: “Gostava que os meus netos me vissem ainda com os dentes. Gostava. É o maior desgosto que tenho, além de ter tido o cancro. Gostava de, antes de morrer, olhar para o espelho e dizer assim: tenho uns dentes. Já não me importava de morrer…”
Há quem, explicou Luísa Preto, preferisse receber dinheiro ou géneros para cozinhar, mas também quem prefira levar a comida já pronta para casa – pessoas doentes, homens sozinhos, que nunca aprenderam a cozinhar, por exemplo. Maria Madalena é uma dessas. “Melhor levar a comida feita”, diz ela. “Para aquilo que eu era, não tenho capacidade.” Não era cozinhar que lhe iria mudar a vida. “Só queria um bocadinho de alegria até à hora da minha morte. Era eu dizer: olha, como, mastigo.”