Francisco Louça, in Público on-line
Há dias, numa nota publicada neste blog, apresentei duas críticas à proposta de Rendimento Básico Incondicional (RBI), que tem sido tema de debate na sociedade portuguesa e noutras paragens e que agora foi adoptada por um partido político. As minhas críticas foram estas: é estranhamente injusto, porque paga o mesmo ao pobre e ao rico, e é mal fundamentado, porque não propõe qualquer forma consistente de pagar a conta.
O texto provocou uma celeuma de que não estava à espera mas que acho encantadora. Embora, como se vê na lista de comentários desse post, muitos dos defensores da ideia tenham reagido com argumentos sólidos, com exemplos interessantes, com enunciados claros e até com atitudes cooperantes, remetendo-me cordialmente para outros textos e fontes deste debate, com os quais vim a aprender muito, os dirigentes oficiais do movimento condenaram-me à fogueira com um fulgurante vigor religioso. Roberto Merril, porta-voz da campanha pelo RBI, escreveu lapidarmente que eu sou um “gajo de direita”, assunto arrumado. André Barata, dirigente do Livre, fulminou-me comparando-se modestamente a um Lincoln pelejando pela abolição da escravatura, fazendo presumir que os ignaros como eu são os esclavagistas dos tempos modernos.
José Neves, que defende a ideia mas que se dispensa destes enlevos místicos, preferiu o sarcasmo amigável, ralhando-me por “recusar a uma ideia o direito à cidade apenas e só porque essa mesma ideia não passa pelo crivo do Técnico Oficial de Contas”. Ora, ao contrário, prezo tanto o direito à cidade desta ideia, como de outras, que cá estou a discuti-la.
Em diálogo com os que admitem reflectir entre pontos de vista diferentes e em homenagem aos que não o toleram, volto então ao assunto como prometi, tratando agora três temas: o intuito utópico da proposta, a sua justiça e a sua viabilidade.
Primeiro, o sentido utópico do RBI
Segundo o citado Roberto Merril (o que despreza o “gajo de direita”) e que se inspira no “pensamento liberal igualitário”, o RBI “elimina a armadilha da pobreza”. Não é um pequeno objectivo e é certamente meritório: é por si só um programa para a urgência dos nossos dias.
Num texto em que desenvolve o fundamento filosófico da proposta, Merril reconhece que a medida pode criar injustiças relativas, que uma parte dos beneficiários pode explorar a outra e portanto tingir o princípio da reciprocidade na sociedade, mas argumenta que, ainda assim, a a virtude supera o risco e o benefício certo vence o custo eventual, porque deixaria de haver pobreza e a vida seria melhor.
António Dores resume estas vantagens em dois princípios: além da “abolição da pobreza”, o RBI pretende assegurar a “vida digna”. Embora ele próprio proponha a discriminação das crianças, ao arrepio do enunciado da campanha pelo RBI, a ideia essencial será esta: a criação de um mínimo social, sendo independente do trabalho ou da condição de cada um, garante a vida autónoma de todos e todas.
Estes dois princípios são valores fundamentais. Concordo com eles. Se um rendimento assegurado fosse pago por cada criança (pobre), a pobreza infantil certamente poderia deixar de ser a certeza que afecta uma em cada três delas. O fim da pobreza infantil vale todo o esforço que se possa fazer. No mesmo sentido, os actuais subsídio de desemprego, subsídio social de desemprego, Rendimento Social de Inserção e Complemento Solidário para Idosos são insuficientes tanto para cobrir todos os casos de empobrecimento no desemprego ou na velhice como para assegurar uma vida digna.
Mais ainda, como os defensores do RBI não se cansam de dizer, a experiência dos pobres passa muitas vezes pelo estigma social, pelo labirinto burocrático, pela arrogância, pelo paternalismo ou pelo desprezo com que são frequentemente tratados no aparelho de Estado. Dispensar ou alterar essa intermediação, que é uma forma de poder tutelar, seria um alívio para boa parte destas pessoas.
Não quero portanto fazer debates falsos nem opor-me a quem partilha os mesmos valores e inquietações. A utopia do combate à pobreza precisa de passar a ser uma política concreta para o dia de hoje e não para amanhã e, se o RBI trouxer uma resposta suficiente, deve merecer todo o apoio.
Permitam-me no entanto argumentar que estes valores exigem – e não dispensam – que a proposta seja muito concreta. Pois se o objectivo é tão importante e tão urgente, como pode ser considerado irrelevante ou até desagradável que se pergunte como, quanto e para quem? Não deveria ser condenado quem simplesmente pede que a proposta seja realista: pois se é um compromisso que deve passar a caber ao Estado e a ser pago por todos, então o mínimo neste debate é avaliarmos a exequibilidade, os custos, os efeitos e os modos de proceder.
Alguns dos meus correspondentes e comentadores do post anterior garantiram-me que está para ser publicado um estudo que responderá a todas estas questões. Aguardo com expectativa. Entretanto, fico com o que tenho, o que foi publicado pela campanha oficial e os textos dos seus promotores.
Segundo, a justiça da igualdade na desigualdade
Ora, quando se começa a verificar como estes bons valores são aplicados, a proposta parece mais polémica. Conforme a iniciativa para a petição europeia, uma das respostas do RBI seria simplificar os sistemas de segurança social. Como se viu atrás, há nisto uma intenção de reforçar a autonomia das pessoas e deixar de as submeter a uma tutela do Estado, mas a forma de o fazer também tem impactos sobre todos. Um dos choques é este: se o subsídio de desemprego é substituído pelo RBI, então alguns dos desempregados vão perder uma parte do seu rendimento (porque o subsídio ainda toma em consideração o valor dos salários sobre os quais se faziam os descontos e pode ser superior ao RBI). A ambição da troika era precisamente nivelar todos os subsídios impondo-lhes um limite baixo, e para lá caminhamos. Os trabalhadores protestaram e com razão. Com essa medida – e imaginemos para já que o RBI são 420 euros – alguns dos desempregados deixariam imediatamente de poder pagar as despesas que têm, na compra da casa ou na educação dos filhos, ficando sem tempo de readaptação, porque o RBI seria inferior ao subsídio a que teriam direito. Nestes casos, o RBI não combate a pobreza, contribui para ela.
O mesmo não se aplica quanto às outras prestações, que são todas inferiores ao RBI, mas não deixa de fazer pensar se é útil propor uma medida sem cuidar de antecipar os seus resultados.
Adriano Campos e Ricardo Moreira discutiram outro aspecto do RBI, a renúncia ao objectivo do pleno emprego. Esse abandono é consistente com a filosofia subjacente, o tal “pensamento liberal igualitário”, e exprime-se radicalmente na ideia de que todos recebem incondicionalmente o mesmo, qualquer que seja a sua condição. Ou seja, o objectivo não é simplesmente combater a pobreza, porque a medida não é só para os pobres; o que pretende é afirmar um modelo do mundo em que não se reconhecem as classes sociais nem se aceitam as políticas direccionadas para reduzir a desigualdade, e se associa a incondicionalidade do subsídio à natureza da cidadania. Nesse plano, o rico e o pobre deveriam receber o mesmo rendimento incondicional, porque são iguais.
Este princípio parece-me dificilmente aceitável, pouco práctico na condução da política, susceptível das maiores revoltas e enigmático no seu propósito. É certo que os defensores do RBI atenuam esta crítica dizendo: pois é, o rico recebe o mesmo que o pobre, mas o rico vai ter de pagar mais impostos e o pobre não. Concedo o argumento e verifico com gosto que, afinal, o técnico oficial de contas é chamado à colação. Mas então se se dá e tira ao rico, para quê a manigância? Se é para uma demonstração social que afirma que todos são iguais e tratados como iguais, então é isso mesmo que eu combato. Porque não são iguais, não vão ficar a ser iguais e pretender que serão iguais por esta via é uma forma de desarmar a luta social entre os que têm o poder e outros. Se é só para combater a pobreza, então a escolha mais lógica é uma política condicionada à redução da pobreza.
Terceiro, pode-se fazer o que não se consegue pagar?
O meu argumento, então, é que não há volta a dar, se promete tem mesmo de pagar. Vou presumir que os polemistas que me criticaram aceitam tal exigência: se é para combater a pobreza e outros males, se é para resolver um problema, tem mesmo de se pagar. E, como o RBI é uma obrigação contraída em nome do Orçamento de Estado (é o Estado que paga), o tal técnico oficial de contas faz muito bem em entrar na sala.
Na sua página portuguesa, o movimento pelo RBI responde de forma bastante ligeira à questão sobre como financiar: “Em primeiro lugar o custo vai depender da quantia do rendimento, que não será certamente muito elevado, mantendo-se no entanto que esta deve ser suficiente para garantir condições de vida decentes de acordo com os padrões sociais e culturais dos países onde for implementada. Em segundo lugar, admitir que o financiamento dum RBI é possível e benéfico para a sociedade no seu todo não implica que não seja incontroverso em termos políticos, pois isso é o preço de qualquer decisão política significativa. No entanto, o facto de muitos economistas, incluindo cinco prémios Nobel, serem a favor da implementação dum RBI sugere que o seu financiamento é exequível. E de facto existe um conjunto de estudos mostrando diferentes formas de financiar um RBI.”
A convocação dos “cinco prémios Nobel” é enternecedora e certamente “sugere que o seu financiamento é exequível”. Por via das dúvidas, somos ainda informados de que há um “conjunto de estudos”. Mas a única proposta que é citada nesse texto dedicado a explicar aos cépticos como se resolve o problema do pagamento é este: “Para que o financiamento em Portugal dum RBI seja exequível devemos salientar que o financiamento teria de ser em parte europeu, como por exemplo sugere Philippe Van Parijs na sua recente proposta de financiamento dum euro dividendo”. Ora, a proposta de Van Parijs corresponde a 100 euros por pessoa, nas suas próprias contas. E, para isso, tem que se admitir que a Europa paga a cada pessoa esse valor, sendo a decisão tomada em tempo na União, na mesma Europa que nos costuma tirar mais do que dar. Em qualquer caso, mesmo com o milagre europeu, fica por pagar o resto: segundo António Dores, o RBI deveria ser entre 420 e 750 euros e, portanto, a maior parte do valor tem mesmo de ser paga pelo técnico oficial de contas que é o Estado.
Há resposta para esta questão nos textos dos promotores do RBI. Na verdade, até há muitas respostas. E muitas delas indicam formas interessantes de financiamento de políticas sociais. Para dar exemplos com que concordo: o imposto sobre as grandes fortunas, a tributação das heranças, a taxação das mais valias urbanísticas, taxas sobre indústrias extractivas e outros impostos verdes, o fim de isenções e benefícios injustificados, a redução da evasão fiscal, tudo isso assegura receitas fiscais e melhora a justiça dos impostos.
Outras propostas criam o efeito inverso, na minha opinião: Dores sugere um IRS plano de 20% para todos os contribuintes – e isso seria um colossal aumento de impostos para a maior parte das pessoas, precisamente aquelas que têm rendimentos menores, e uma maravilhosa redução de impostos para os mais ricos, uma ideia que faria Maria Luís Albuquerque corar de vergonha.
O problema é que, exceptuando a última e radical proposta, o melhor resultado de todos os outros impostos e medidas nem de longe nem de perto se aproxima do valor necessário para pagar o RBI. Mesmo que aumentassem espectacularmente a receita fiscal, não bastaria. Façamos então as contas do que pode ser avaliado.
Em 2013, a população de Portugal era de 10562178 almas. A receberem todos 420 euros por mês, catorze meses no ano, o custo da medida é de aproximadamente 61700 milhões de euros. Noto desde já que este valor é muito reduzido para cada pessoa, abaixo do salário mínimo nacional, e dificilmente pode ser defendido como garantindo uma “vida digna”, precisamente porque corresponde ao limiar de pobreza. Compararei por isso os resultados com os de outros dois valores para o RBI (700 euros, um pouco abaixo do salário médio em Portugal, e 1000 euros, um pouco acima). Nestes casos, o custo directo da medida seria de 103 mil milhões e de 147 mil milhões de euros por ano, respectivamente.
Nos três casos, há que abater os gastos que deixariam de ser feitos pelo Estado: pensões não contributivas, RSI, CSI, subsídio de desemprego e outros. O total dos gastos públicos nestas rubricas será de cerca de 9500 milhões (1700 em acção social, 2000 em subsídio de desemprego, 391 em subsídio de doença, 639 em abono de família, 200 em CSI, 300 em RSI, 3500 em pensões de sobrevivência e invalidez, etc.), que seriam poupados quando se pagasse o RSI.
Ora, é previsto que o total da receita fiscal em Portugal seja de 38874 milhões em 2015. Não é a única receita do Estado (este valor não inclui outros rendimentos nem as receitas da segurança social) mas com este dinheiro são pagos os técnicos que tratam da reparação de pontes, os médicos, enfermeiras, polícias, juízes, militares, professoras e funcionários das escolas e noutras funções. E ainda se paga a construção das escolas e dos hospitais ou outros edifícios e muito mais. Dito por outras palavras, a não ser que o Estado deixe de pagar aos seus trabalhadores, os despeça e abandone as suas funções, é preciso conseguir mais cerca de 50 mil milhões para pagar o novo compromisso do RBI a 420 euros por pessoa. Para isso, é forçoso mais do duplicar a cobrança de impostos, que teria que passar de 22% do PIB para 53% (no caso de RBI a 700 euros os impostos teriam que passar a ser 76% do PIB, ou seja, teriam que quadruplicar, e no caso do RBI a 1000 euros o Estado teria que cobrar em impostos 102% do PIB, o que é evidentemente ilógico e impossível).
Entretanto, alguns defensores do RBI sugerem que se aumente o IVA para obter receita para tapar o buraco. Pode ser. Mas o IVA teria que passar a ser de 92%, mais ou menos quatro vezes o valor actual que já provoca tanto protesto, porque é o imposto mais injusto sobre os mais pobres. Toda a medalha tem o seu reverso e atrevo-me a imaginar que ninguém sustentará esta ideia salvífica do IVA ligeiramente exorbitante se tiver que mostrar o talão da conta.
Portanto, não pense, caro leitor, que a coisa pode ser simples. Tem mesmo que se pagar. E, para se pagar, a maior parte das pessoas tem de pagar muito mais impostos. Os ricos ficam a perder (o seu aumento de impostos seria muito maior do que os 420 que arrecadam) e os médios também seriam afectados mas, sobretudo, a factura assusta o mais timorato técnico oficial de contas. O efeito seria que o “pensamento liberal” da proposta conduziria a um Estado cobrador como jamais alguém o imaginou.
A pergunta então é esta: em vez deste imbróglio para demonstrar que são todos iguais, não seria melhor simplesmente pagar o Complemento Solidário para que os idosos não fiquem com pensões muito baixas, aumentar o tempo do subsídio de desemprego e gastar dinheiro do Orçamento na criação de emprego? Perdíamos o interessante debate filosófico, esforçávamo-nos por melhorar a cobrança fiscal contra a evasão e os truques, ganhávamos respostas à pobreza e usávamos dinheiro que há ou que pode haver sem prometer o que não há.
É certo que, no texto que já citei, Dores apresenta ainda outras ideias, como a “abolição de serviços de controlo social do Estado”, ou seja, o fim dos “serviços sociais, (…) as polícias, a justiça criminal e a justiça administrativa”.
Despede-se essa gente toda, funcionários da segurança social, psicólogos, juízes, ministério público, pessoal das cantinas e transportes e quejandos e espera-se que a população crie serviços democráticos que substituam a justiça criminal e administrativa e que resolvam os problemas dos serviços sociais. Pode ser, se a democracia for o que nunca tem sido. No entanto, apesar da boa vontade, podem sobrar problemas. Será que a justiça criminal dispensa os especialistas? Por exemplo, no combate à corrupção, ao branqueamento de capitais ou à fraude, podemos dispensar os técnicos de informática, os especialistas em técnica bancária, os magistrados conhecedores do tema? Na defesa das vítimas da violência doméstica, o crime que mais mata em Portugal, podemos poupar o acompanhamento dos técnicos do tribunal ou as casas-abrigo? Adivinho que seja difícil encontrar um domínio da “justiça criminal” que possa garantir a democracia sem pagar salários a estes técnicos e especialistas. Mas mais uma vez pergunto: se a solidez da proposta do RBI depender desta política de despedimentos, é mesmo para ser interpretada como um combate realizável e generoso contra a pobreza ou em defesa da vida digna?
O meu ponto é este: propor uma política social pela vida melhor é uma responsabilidade que só pode beneficiar de ideias novas. Precisa de generosidade e criatividade. Deve pôr em causa ideias feitas. E tem de ser concreta, realizável e mobilizadora. Como não há nada mais desmobilizador do que uma ilusão, espero que os defensores do RBI possam dar o seu contributo para uma solução praticável que resolva e para uma luta realizável que vença.