Ana Cristina Pereira, in Público on-line
O manifesto das auto-intituladas “Mães de Bragança” fez José Machado Pais mergulhar num estudo que lhe levou uma dúzia de anos a concluir. O enfoque não tem de estar nas “mães” ou nas “putas”, pode estar nos maridos-clientes, prisioneiros na relação de submissão a que sujeitam as suas mulheres.
Lembra-se do movimento das “Mães de Bragança”? Absolviam os maridos. Perdoavam-lhes os desvarios, porque eles, “coitados”, eram “amarrados” pelas “sedutoras”, “macumbeiras”, “pecadoras” vindas de além-mar. As “brasileiras” valiam-se de “falinhas mansas”, “drogas”, “feitiços”, “rezas”, “mezinhas”, “bruxarias”, “pétalas de rosa”, “raízes de amor-perfeito” para os deixar “de cabeça perdida”.
Muito se escreveu sobre o assunto nos jornais e na Net. E aí a culpa era quase sempre das mulheres que eles tinham em casa. Era como se elas os empurrassem. “A maior parte das críticas partia das hostes masculinas”, afiança o sociólogo José Machado Pais. “Reivindicavam uma ‘entrega sexual mais activa’ por parte das mulheres, o ‘fim dos tabus sexuais’ e o abandono da ‘moral caduca’.”
Os homens nem precisavam de se redimir. As “danadas”, nota José Machado Pais, eram sempre as mulheres: ou se excediam na sedução e no fervor sexual ou, pelo contrário, ficavam muito aquém do desejado.
Até os homens se viam como vítimas. Eram uns machos. E “como entre os desejos sexuais e a sua satisfação se interpunham as persistentes dores de cabeça das mulheres, coitados, viam-se obrigados a satisfazer os défices sexuais noutro lado”. Estavam “carentes, confusos, necessitados”.
Capa do álbum "Espacial Popular Mix", do Duo Abelhudos
“Estas narrativas, dominantes no universo masculino, surgem em muitos CD de música popular”, explica o investigador. “Na feira de Bragança, mesmo ao lado do mercado, ouvi muitas dessas músicas, alusivas a carências sexuais. Por exemplo: ‘Ó Maria dá-me o bife/ Dá-me o bifinho agora/ Se me não deres o bife/ Maria vou jantar fora’.”
José Machado Pais chamou-lhe Enredos sexuais, tradição e mudança: as mães, os zecas e as sedutoras de além-mar. Não é um livro sobre trabalho sexual, imigração clandestina ou tráfico de pessoas, este que acaba de ser editado pela Imprensa de Ciências Sociais. É “um debate sobre os valores e as representações sociais que encapotam a sexualidade”. É que “a prostituição diz muito sobre a sociedade”.
O movimento “Mães de Bragança” começou quando duas mulheres descobriram que os maridos “padeciam de semelhante maleita”: chegavam a casa tarde, com desculpas duvidosas e restos de perfume. “A solidariedade feminina permitiu um trabalho de espionagem em rede”, diz o sociólogo José Machado Pais
Sexualidade reprimida
Em Outubro de 2003, quando Bragança fez capa da revista Time, o investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa sentiu uma “enorme tentação” de viajar até lá. Os amigos avisaram-no: “Não te metas nesses terrenos”; “arriscas-te a ser perseguido por mães, maridos, proprietários de casas de alterne, putas, polícias, bispos e até pela tua mulher.” Nada o impediu de fazer várias viagens de 400 quilómetros para, ao longo de 12 anos, observar, conversar com trabalhadoras do sexo, clientes, mulheres de clientes, donos de bares de alterne e de cafés, barbeiros, cabeleireiras, agentes imobiliários, e vasculhar arquivos de jornais. Queria “desvendar os mecanismos sociais de produção de estereótipos associados quer às trabalhadoras do sexo (tratadas por putas, brasileiras ou macumbeiras), quer às mães (apelidadas de beatas ou papa-hóstias)”.
Havia muita sexualidade reprimida por esse país fora. Não convém esquecer que, “entre 1926 e 1974, Portugal viveu numa ditadura conservadora que impunha uma forte moral de contenção sobre a sexualidade”. As mentalidades iam-se abrindo à força do desenvolvimento — indissociável da emigração e da adesão à União Europeia — e Bragança era um exemplo disso mesmo. Em 30 anos, o número de habitantes dedicados ao sector primário passara de 70% para 10%. A área urbana triplicara. O sector do comércio e serviços expandira-se. Na cidade reproduziam-se bares de alterne e cafés “de subir”, isto é, com quartos no piso superior que podiam ser arrendados à hora.
Em Outubro de 2003, Bragança fez capa da revista “Time”
Desde o desembarque das caravelas no Brasil, as brasileiras povoam as fantasias dos portugueses. Primeiro, eram as índias sedutoras. Depois, também as mulatas. Esse imaginário persiste “como uma herança colonial”. E, com o movimento das “Mães de Bragança”, ganhou força o estereótipo da brasileira como mulher acessível, disponível, erótica e sensual
Não era só o aumento do poder de compra. “A euforia masculina em torno dos bares de alterne foi também nutrida por uma espécie de mobilização sexual não de todo alheia à crescente influência dos media”, escreve José Machado Pais. O cinema e a televisão “concorriam com os sermões da paróquia no que às moralidades quotidianas dizia respeito”. Perante o afrouxar da ordem moralista ou repressiva, muitos homens deixavam-se levar pelos impulsos sexuais. Iam às casas de alterne para “beber um copo”, “lavar a vista”, “desenferrujar os zecas”.
O movimento “Mães de Bragança” começou quando duas mulheres descobriram que os maridos “padeciam de semelhante maleita”: chegavam a casa tarde, com desculpas duvidosas e restos de perfume. “A solidariedade feminina permitiu um trabalho de espionagem em rede.” Revoltadas, redigiram um manifesto e entregaram-no ao presidente da câmara, ao governador civil, ao comandante da polícia. Com isso, despertaram a atenção de meios de comunicação social dentro e fora do país. Bragança entrou na rota do turismo sexual. “Curiosos vindos de Espanha, mas também de outros países europeus, passaram a frequentar a pequena cidade e a desfrutar dos prazeres do alterne”, recorda o investigador. Apesar da fama, “nada se passava de diferente de outras regiões do país”.
As “meninas” do Brasil
Haveria 80 a 100 trabalhadoras do sexo, a maior parte oriundas do Brasil. Os clientes e os empresários da noite, mas também os comerciantes e os taxistas que com elas ganhavam dinheiro, chamavam-lhes “meninas”. As mulheres dos clientes, auto-intitulando-se “mães”, chamavam-lhes “putas”. Recatadas, fieis, trabalhadoras, sentiam-se “ultrajadas no seu estatuto de mães”, “desvalorizadas, traídas, trocadas”. Tinham medo de “perder os maridos, a estabilidade económica, a reputação”. E queriam recuperar o seu “estatuto fragilizado” e intimidar as trabalhadoras do sexo, expulsá-las.
As “Mães de Bragança”, na opinião de José Machado Pais, constituíram um movimento social. Havia nelas uma revolta que era um “reflexo de uma conquista de liberdade”, ainda que uma “liberdade não liberta das pendências do passado, como as idas à bruxa para quebrarem o feitiço do chá”.
“O meu marido estava cheio de porcarias dentro dele”, afiançou uma delas a José Machado Pais. “Pretos e brasileiros em bruxarias são terríveis”, disse-lhe ainda. “Elas também usam um chá de amarração.” Como livrou o marido disso tudo?, perguntou ele. “Através da oração”, respondeu ela.
Nada está como antes da capa da Time que indiciava a tomada de Bragança por trabalhadoras do sexo. Com o alarido que se seguiu ao manifesto, o despontar da crise económica, a intensificação das rusgas feitas pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, muitas trabalhadoras do sexo instalaram-se do outro lado da fronteira
Quando um homem casado vai ao bar de alterne é sinal de quebra de estabilidade conjugal, diz o investigador. “Ou a crise desemboca em divórcio ou se busca o restabelecimento da ordem danificada.” Em vez de se revoltarem contra os maridos, de reconhecerem as suas escolhas, as mulheres acusam as trabalhadoras do sexo, dizem que elas lhos roubarem através de meios ilícitos. “A desculpabilização dos homens alimenta a esperança de se salvar o casamento.”
Desde o desembarque das caravelas no Brasil, as brasileiras povoam as fantasias dos portugueses. Primeiro, eram as índias sedutoras. Depois, também as mulatas. Esse imaginário persiste “como uma herança colonial”. E, com o movimento das “Mães de Bragança”, ganhou força o estereótipo da brasileira como mulher acessível, disponível, erótica e sensual. “Elas passaram a constituir uma figura dramática compósita, fonte de desejo e de maldição, de prazer e de dor”, menciona o investigador. Do outro lado do Atlântico também existem estereótipos sobre os portugueses. Os brasileiros vêem os portugueses como ingénuos, “burros”, avaros, exploradores, donos de incontornáveis apetites sexuais, a quem as mulheres poderiam dar a volta.
Cristo imóvel na cruz
Para muitos homens, em Trás-os-Montes, “‘ir às putas’ é um sinal de virilidade, uma marca de masculinidade”. Alguns até parecem ignorar que as trabalhadoras do sexo vendem ilusões, “fingem excitação para excitar os clientes”, despachar o serviço mais depressa, ganhar mais dinheiro.
No entender do investigador, “a sexualidade da mulher representada como ‘um Cristo imóvel na cruz’ revela muito mais do que uma rotina sexual. Representa, sobretudo, para muitas mulheres, uma rotina de vida, de uma vida sacrificada, que a crucifica nas suas labutas quotidianas”. “A dignidade conferida ao estatuto de esposa e de mãe exige a prática de uma sexualidade dominada”
Pelo que contaram trabalhadoras do sexo ao investigador, alguns não seriam capazes de grande desempenho. Por vezes, os “zecas” enferrujavam mesmo. Elas serviam-se então de todas as suas habilidades e estratégias, incluindo o uso de acessórios, como vibradores. Só que muitos dos que gostavam de ter novas experiências sexuais não aceitavam que as suas mulheres as tivessem.
José Machado pais dá o exemplo de um homem que se queixou que a sua mulher, na cama, parecia “um Cristo imóvel na cruz”. Ele lamentava-se, desse modo, “do carácter rotineiro e roteirizado da sexualidade, isto é, de um script sexual de natureza cultural, o sexo à ‘missionário’ ou à ‘papai-mamãe’”. Ora, quando os homens recorriam à prostituição era também porque se sentiam prisioneiros de si próprios na relação de submissão a que sujeitavam as suas mulheres, analisa.
No entender do investigador, “a sexualidade da mulher representada como ‘um Cristo imóvel na cruz’ revela muito mais do que uma rotina sexual. Representa, sobretudo, para muitas mulheres, uma rotina de vida, de uma vida sacrificada, que a crucifica nas suas labutas quotidianas”. “A dignidade conferida ao estatuto de esposa e de mãe exige a prática de uma sexualidade dominada”, nota. “Às mulheres exige-se abnegação, sacrifício, esquecimento de si mesmas.” Sobrecarregadas com tarefas, são “acusadas de histerismos, maus humores, feitios ruins”. “Alguns casais pouco mais partilham do que as rabugices, o rolo de papel higiénico e o leito conjugal.”
Nada está como antes da capa da Time que indiciava a tomada de Bragança por trabalhadoras do sexo. Com o alarido que se seguiu ao manifesto, o despontar da crise económica, a intensificação das rusgas feitas pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, muitas trabalhadoras do sexo instalaram-se do outro lado da fronteira. Quando deixaram de valer “as malbaratadas justificações das voltinhas a Espanha para atestar o depósito de gasolina, algumas meninas montaram apartamentos em Bragança e redondezas”. Queixam-se de quebra de clientela.
Não será só falta de dinheiro. Algumas mulheres “começaram a deixar esturricar a comida, a tolerar os buracos nas meias dos maridos, a desleixar-se nas tarefas domésticas”, garante o sociólogo. Arranjaram tempo para frequentar salões de beleza, cuidar mais da sua imagem. E “a estabilidade matrimonial começou a ceder à influência de novas correntes socioculturais, propensas à valorização dos enlaces efectivos eróticos e não apenas à dos vínculos patrimoniais”.