Texto de Mariana Correia Pinto, in Público on-line
Projecto de voluntariado nascido na Universidade do Porto ajuda famílias com carências económicas a ter acesso a medicamentos. Associação Cura + apoia 20 famílias por mês e até ao fim do ano quer chegar às 60. Depois, alargar a outras cidades, por "um país com mais saúde"
Aprendem tudo sobre o corpo humano e medicamentos, lidam com investigação, quilos de livros e 1001 termos científicos. Mas, nas salas de aulas do mestrado integrado em Ciências Farmacêuticas, ninguém lhes fala da “realidade”. Das muitas pessoas que entram nas farmácias e pedem "fiado" — porque ou pagam o medicamento ou a alimentação dos filhos. Daquelas que, por vergonha, deixam de ir e põem em causa a sua saúde. Das listas de devedores a crescer. Desse mundo, Teresa Couto, Nuno Azevedo e Ivan Silva aperceberam-se ao tornarem-se voluntários no “Porto com + Saúde”, um projecto piloto da associação Cura + que apoia quem não tem capacidades financeiras para comprar medicação. Ajudam 20 agregados familiares por mês e em Julho aumentam a lista para 30. O objectivo está para lá dos muros da cidade: “Queremos um país com mais saúde.”
Teresa Couto, do quarto ano do curso na Universidade do Porto, onde o projecto nasceu, tem o discurso bem ensaiado. Quando ouviu falar da Cura + percebeu imediatamente que era um projecto inovador e necessário — tanto para a sociedade como para ela enquanto estudante de Ciências Farmacêuticas. “O nosso contacto com a farmácia e com os utentes é muito escasso ao longo do curso. Apercebermo-nos de que há quem não possa pagar os medicamentos foi um confronto muito grande”, contou ao P3.
A Cura + começou a esboçar-se no final de 2014. Durante um estágio, a finalista Joana Carvalho apercebeu-se do grande número de pessoas a pedir “fiado” na farmácia. “Nunca tinha pensado nesse assunto”, admite: “Haver gente que não tem dinheiro para pagar medicamentos sujeitos a receita médica, medicamentos sem os quais não conseguem viver. Não me passava pela cabeça.” Com essa nova realidade em mente, foi em busca de um projecto de voluntariado centrado nesta problemática, onde pudesse ajudar a fazer a diferença — mas não o encontrou. “Não existia, nem dentro da universidade nem fora”. Joana, 22 anos, decidiu agir: o que estava ali em falta era um projecto dois em um: ajuda para populações financeiramente precárias e formação para futuros profissionais de farmácia. Em pouco tempo, o projecto começava a ganhar forma.
Para fazer a máquina funcionar, foi preciso criar uma rede — primeiro dentro da faculdade dela, depois noutras, como Economia, Belas-Artes e ainda a Universidade Fernando Pessoa. São já 80 os voluntários e 20 os coordenadores envolvidos. Desde que o projecto piloto arrancou, em Março de 2016, foram doados 200 medicamentos. E, se tudo correr bem, dos 20 agregados familiares que ajudam actualmente por mês devem passar, até ao fim do ano, para os 60.
Para concretizar a ideia, os estudantes assinaram uma parceria com o Centro Social e Paroquial Nossa Senhora da Vitória, uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) da freguesia da Vitória, no Porto. É desse centro que sai a lista de famílias carenciadas a precisar de medicamentos sujeitos a receita médica. E é a partir dela que todo o processo se desenrola.
Em três farmácias do Porto — a Lemos, a Aliança e a Vitália —, três dias por semana, os estudantes apresentam a associação a quem vai à farmácia e, com uma lista de medicamentos e respectivos preços à frente, pedem donativos. Tanto podem ser doados medicamentos específicos como se pode ajudar com 50 cêntimos, um euro, dois. “Qualquer ajuda é bem-vinda”, sublinha Ivan Silva, estudante do segundo ano do mestrado em Ciências Farmacêuticas.
Um voluntariado para entender o mundo
Ao saber da existência da associação, Ivan, 19 anos, candidatou-se imediatamente a um lugar. Sempre quis fazer voluntariado e aquele juntava o melhor de dois mundos: ajudar e, ao mesmo tempo, adaptar-se a um mundo que um dia será o dele — o das farmácias. A aprendizagem é constante. Guarda na memória um episódio ocorrido durante uma das acções, quando se dirigiu a uma senhora para lhe pedir que fizesse um donativo e ela lhe deu uma resposta desarmante.
- Eu também não consigo pagar os meus medicamentos.
Ivan perdeu a reacção por uns segundos. Depois atalhou conversa. Sugeriu à senhora que contactasse a IPSS parceira do projecto: talvez eles pudessem ajudá-la também. “Se no 5º ano, quando fosse estagiar, me aparecesse uma pessoa a dizer que não podia pagar porque não tinha dinheiro, não saberia o que dizer”, admite. “Este voluntariado prepara-me para o mundo.”
Para Nuno Azevedo, finalista do mestrado, o “choque” não foi menor. Quando começou a fazer o estágio, não imaginava que o número de pessoas incapaz de pagar os medicamentos fosse tão grande. Por isso, quando Joana Carvalho lhe falou da ideia da Associação Cura+ quis envolver-se de imediato e integrou a direcção da associação, onde assume o papel de tesoureiro. “Já tinha feito voluntariado, mas nenhum como este. Além de tudo, valoriza a nossa profissão.” É “uma questão ética”, resume Teresa Couto. Se uma pessoa diz a um farmacêutico que não consegue pagar o medicamento ou que, se o pagar, não vai comer nesse dia, o que se faz o profissional? “Olhamos para o lado? Ignoramos?”, questiona-se. “Isso não é solução.”
A associação sobrevive sobretudo dos donativos recolhidos nas farmácias. Mas a acção destes estudantes já mereceu alguns prémios, como o da Associação Nacional de Farmácias, e conseguiu patrocínios de algumas entidades públicas e empresariais. O último foi o da Fundação Manuel António da Mota. O projecto piloto termina em Março de 2017, mas a continuidade já está garantida. Em Setembro vão alargar o projecto a mais farmácias do Porto e depois querem crescer para outras cidades, privilegiando locais onde há cursos de Ciências Farmacêuticas, como a Covilhã, Coimbra, Lisboa e Algarve.