Joana Gorjão Henriques, in Público on-line
Entre a hipervisibilidade e a invisibilidade do que é ser negro na Europa, na conferência de rede internacional Afroeuropeans no ISCTE, em Lisboa, estarão dezenas de investigadores, artistas e activistas. A partir desta quinta-feira são três dias com debates, seminários e mesas redondas protagonizadas por afrodescendentes de várias partes do mundo. Entrada é livre.
A conferência Afroeuropeus: in/visibilidades negras contestadas, que começa esta quinta-feira, de manhã, no ISCTE, em Lisboa, é inédita. Não só por ter tanta gente a falar de temas ligados aos afrodescendentes – são três dias com cerca de 200 oradores, seleccionados através de uma open call – como na organização e no “palco” estarão essencialmente “pessoas a debater nos seus próprios termos”, não como objectos de estudo, mas como sujeitos produtores de conhecimento, diz uma das organizadoras, a socióloga Cristina Roldão.
Com mais de um ano de montagem, a conferência foi criada por uma equipa sem “um único grande nome da academia”: todos os membros da comissão organizadora – além de Cristina Roldão, Raquel Lima, Otávio Raposo, Jovita dos Santos Pinto, Mojana Vargas, Pedro Varela, Raquel Lima, Raquel Matias, Apolo de Carvalho e Carla Fernandes – são investigadores em situações precárias, sublinha. “Não temos em Portugal muitas oportunidades de ter uma discussão com este nível de sofisticação, variedade, disponibilidade, profundidade sobre as questões do racismo e do que é ser negro na Europa”, analisa. Vários centros de investigação de universidades portuguesas, do CES de Coimbra ao CIES da Universidade de Lisboa colaboraram na organização.
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A conferência, com entrada livre para quem não precisa de certificado, acontece depois de uma proposta da comissão organizadora à rede internacional Afroeuropeans, que reúne académicos e intelectuais que têm reflectido sobre a presença dos afrodescendentes na Europa (a anterior edição, em 2017, foi na Finlândia).
Justificava-se fazê-lo em Portugal, acredita a socióloga, por várias razões, entre elas os debates sobre o racismo que se tornaram mais intensos no espaço público nos últimos anos: o caso da Esquadra de Alfragide, em 2015, a discussão sobre a criação de uma pergunta sobre a origem étnico-racial no Censos 2021(na qual Cristina Roldão participou), a campanha pela mudança da lei da nacionalidade, a criação do memorial para a escravatura ou a polémica com o Museu dos Descobrimentos são apenas alguns exemplos.
“Uma das razões que nos dá grande entusiasmo em fazer esta conferência é porque Portugal tem um papel central no que é a produção do racismo e na construção de uma diáspora subalternizada dos negros no mundo. É como que um voltar ao sítio onde as coisas começam”, afirma.
“É importante trazer a conferência para Portugal porque há uma falta de espaço, quer em termos da representatividade étnico-racial dos investigadores/professores universitários, quer na possibilidade de uma linha de pesquisa de racial studies ou de black studies. Como não existem nos nossos programas autores negros, esta é uma forma de resistência ao branqueamento e apagamento no palácio de cristal da academia da produção de conhecimento feito pelos sujeitos racializados.”
Um dos objectivos é dar a conhecer o que é a produção dos afrodescendentes em Portugal, as suas preocupações, o que está na sua agenda e conhecer a de outros.
As intervenções começam às 9h30, esta quinta-feira, com o académico Stephen Small, autor de 20 Questions and answers on Black Europe (Decolonizing the mind) a falar sobre racismo institucional, resistência e produção de conhecimento na Europa negra. Ele é um dos oradores principais, assim como Fatima El-Tayeb, da Universidade da Califórnia, que intervém na sexta-feira, também às 9h30, e que faz a articulação entre as questões de raça, de género, queer ou LGBT.
A socióloga explica o título, In/visibilidades Negras Contestadas: “Se em determinados contextos há invisibilidades dos corpos negros, noutros contextos somos híper visíveis ou a imagem é distorcida. Por exemplo, na representação do crime ou em situações de crise humanitária ou em determinados sectores das artes e do desporto estamos hipervisíveis, noutros [como a academia ou política] invisíveis. A ideia é contestar estes dois pesos e duas medidas.”
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Embora tenha no título a palavra afroeuropeus, a conferência não se centrará apenas na questão europeia. No ISCTE estarão “imensos académicos negros” de diferentes países europeus mas não só. Em cima da mesa há também uma particularidade, “a da relação colonial, antiga" de Portugal “que perdura com o Brasil”. “O nosso debate está fortemente articulado com o debate brasileiro, e isso comparativamente ao que se está a fazer em Berlim, com o movimento negro alemão, por exemplo, traz especificidades”, contextualiza. Há também vontade de fazer uma ruptura com o debate das migrações e dos estudos africanos, continua. “Porque estamos na construção de um campo novo de separação dentro da academia.”
O que é, afinal, ser afroeuropeu? “É possível discutir a identidade afroeuropeia mas também podemos chamá-la de posicionalidade. A definição de um nome é em si um terreno de disputa, o nome é cheio de tensões e ainda bem porque permite-nos a discussão Em vez de afroeuropeans podia estar black europeans ou diáspora africana. Quem são os afroeuropeus? Os afroeuropeus do Sul da Europa são os mesmos do Norte? Os afroeuropeus que mantêm uma relação muito próxima com África, como é o caso de Portugal, são os mesmos? Temos que discutir isso”.
Certo é que há uns anos Portugal estava “no estágio menos um” do debate sobre o racismo, afirma. “Íamos a debates e a pergunta era se havia racismo em Portugal”, comenta, ironizando. No ISCTE não se vai evitar usar a palavra raça, tema que está a surgir de novo em discussões públicas em Portugal, mas ela irá ser usada “num sentido critico”. “É obvio que a raça não existe biologicamente, mas existe como construção social, histórica e política e qualquer sujeito racializado sabe que toda a sua vida é marcada por isso. Podemos ter vários posicionamentos teóricos e políticos nesta conferência, mas acho que estamos todos sintonizados sobre não ser possível falar da experiência dos afroeuropeus sem falar de raça, de racismo…”
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Voltando ao programa, a conferência organiza-se em grandes blocos: Europa negra e suas intersecções, artes e media, activismo, resistência e políticas públicas, racialização da vida urbana e segregação, descolonização do conhecimento e, por fim, teorização sobre a negritude. Em cada dia há dezenas de painéis à volta destes temas e há pelo menos três mesas redondas: sobre violência policial, na sexta-feira, às 16h45, sobre resistência com activistas, no sábado, às 11h25, e sobre a rede Afroeuropeans, também no sábado, às 16h45 – todas têm portugueses e estrangeiros a intervir.
Paralelamente há um programa cultural que inclui performance com jantar à volta das memórias esquecidas, pelo artista Isaiah Lopaz, debates e projecções de filmes de realizadoras negras, performance de spoken word, uma representação pelo Grupo de Teatro do Oprimido ou uma visita guiada à Quinta do Mocho. À entrada e dentro do ISCTE estará ainda uma exposição de fotografias de Herberto Smith. “O programa cultural não é entretenimento, pauta-se por questões de representatividade, o que é a experiência negra. Da comida que vamos comer, aos filmes que vamos ver e à música estamos sempre a debater a condição negra na diáspora, pelos próprios”, conclui a socióloga.