João Fraga de Oliveira, in Público on-line
Numa economia que tantos economistas e políticos garantem estar “em franco crescimento”, o que esta tendência de agravamento das desigualdades sociais indicia é que, afinal, a “crise” é-lhes mais instrumento do que causa das desigualdades sociais.
“E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infância, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?”
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Apesar de não se ser “economista político” nem “moralista”, há poucos dias, aquando de uma das viagens na minha biblioteca, veio-me à memória esta pergunta de matemática (e não só) que, há muitos anos, fixei ao reler um dos meus livros preferidos.
Nunca consegui acertar com a resposta a esta pergunta. Se bem que tivesse perdido dias e noites às voltas com aritmética, álgebra, logaritmos, probabilidades, funções, equações e conjuntos, errei sempre. Por defeito.
Ora, tal complexa pergunta veio-me agora à memória ao ler um relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), divulgado há poucos dias (em 4/7/2019), sobre a “distribuição e partilha do rendimento global do trabalho” [1].
Este estudo, abrangendo 189 países e o período de 2004 a 2017, mostra como, nestes 14 anos, veio a ser partilhada e distribuída aos trabalhadores a riqueza produzida. Ou melhor, dito de forma mais concreta, como veio a ser feita a partilha e distribuição da riqueza entre os representantes e interessados (directos ou indirectos) da detenção do capital e quem o trabalho consubstancia, isto é, as pessoas que o realizam, os trabalhadores propriamente ditos.
No que respeita a Portugal, este relatório da OIT demonstra uma situação especialmente negativa. Em 2004, a porção de riqueza produzida que cabia aos trabalhadores portugueses era de 65,8%. Em 2017, foi de 54,5% [2]. Mesmo com o aumento do “salário mínimo”, a partir de 2016, esta quebra relativa de rendimento dos trabalhadores portugueses foi a maior da União Europeia. Aliás, este estudo da OIT vem, no que respeita a Portugal, confirmar dados ainda mais recentes do Ministério do Trabalho e da Segurança Social (também referentes a 2017 mas divulgados em 10/7/2019 [3]).
Segundo estes dados oficiais, as remunerações dos quase dois terços (1.300.000) dos cerca de 2.100.000 trabalhadores portugueses por conta de outrem não chegavam aos mil euros por mês, mesmo quando somados salário-base, prémios, subsídios e outros complementos. A grande maioria dos portugueses recebe salários entre os 600 e os 750 euros mensais. A exiguidade dos salários cresce no interior (por exemplo, nos distritos de Bragança, Viseu e Guarda), relativamente ao litoral.
No trabalho, do ponto de vista do que este contribui para a produção de riqueza, cada vez mais desigualdade(s). Importa relevar que resumir a concepção de desigualdade do rendimento dos trabalhadores (só) à ponderação do salário nominal, é escamotear o que de mais real e substantivamente desigual encerra essa abstracção numérica. E que decorre do quanto, com a tendência de privatizações e de objectivo retrocesso (porque não acompanhando proporcionalmente as inerentes necessidades financeiras, técnicas, organizacionais) de investimento nos serviços públicos (e, no caso do interior, mesmo de encerramento de alguns destes), tendencialmente (quase) só o salário garante saúde, educação, justiça, habitação, transportes. Enfim, (quase) só o salário é meio de “ganhar (a) vida”.
Não é que este estudo da OIT surpreenda. O agravamento das desigualdades na distribuição da riqueza, aumentando o património (e, daí, o poder) dos detentores (ou seus representantes) de(o) capital e reduzindo os rendimentos (e, daí, o poder de reivindicação, ainda que “só” da concretização dos direitos legais já existentes) dos apenas detentores da sua capacidade de trabalho, dos trabalhadores propriamente ditos, é uma tendência das últimas dezenas de anos. Como o têm comprovado insuspeitas organizações nacionais e internacionais [4] e especialistas insuspeitos e reconhecidos [5].
Acresce que a fragilização da posição dos trabalhadores nas relações de trabalho por esta via económica, das remunerações (tudo “aceitando” nos locais de trabalho para “compor” o salário ou, pelo menos, para não comprometer com ele o diário único “ganho da vida”, ainda que insuficiente...) não pode ser dissociada, porque a potencia, da fragilização induzida pela desregulamentação de direitos dos trabalhadores implicada pelas sucessivas alterações à legislação laboral (e, especialmente, as promovidas pelo anterior Governo de 2011 a 2014 – mormente em 2012 [6] – e que este Governo não reverteu [7]), nomeadamente no domínio da crescente precarização e individualização das relações de trabalho, facilitação objectiva dos despedimentos, bloqueamento da contratação colectiva e, mesmo, redução real e até literal das remunerações [8].
Dir-se-á que é ainda um efeito da “crise”, da real e da que para tudo é pretexto. Contudo, numa economia que tantos economistas e políticos garantem estar “em franco crescimento”, o que esta tendência de agravamento das desigualdades sociais indicia é que, afinal, a “crise”, se bem que também das desigualdades seja consequência para muitos (99%), para alguns, poucos (1%), é-lhes mais instrumento do que causa das desigualdades sociais. Que, objectivamente, como este relatório evidencia, lhes convêm.
Nada surpreendente. Afinal, “os pobres são pobres porque os ricos são ricos”, como dizia o professor Alfredo Bruto da Costa [9].
Dir-se-á também que é um “efeito colateral”, um defeito, uma imperfeição do funcionamento do mercado, que este resvalou pontualmente para a promoção de desigualdades sociais crescentes, porque, como escreveu Adam Smith [10], foi “levado como que por mão invisível a promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções”.
Contudo, esta hipótese não colhe, porque numa economia de mercado cada vez mais liberalizada (portanto, mais “perfeita”), é de supor, ter a certeza, de que este objectivo de promoção das desigualdades não se deve a qualquer imperfeição do mercado, a qualquer empurrãozinho malandro e fortuito da (tal) “mão invisível”, mas, antes, faz mesmo parte das intenções estruturais, da estratégia do mercado. Mais concretamente, de quem do capital do mercado é detentor (ou representante deste) e dele mais se aproveita.
Porventura, alguém também virá pôr em causa este estudo duvidando da credibilidade da OIT, apesar de esta ser uma entidade centenária [11] e mundialmente reconhecida do ponto de vista humano e social [12].
É certo que, sob certo ponto de vista, há razões para duvidar da credibilidade da OIT. Mas não no de pôr em causa a fiabilidade deste e de outros estudos idênticos. O que há razões para duvidar, sim – muito mais importante do que isso – é de que a OIT consiga (não o tem conseguido devidamente) ter efectiva aceitação, com efectiva possibilidade de nelas ter uma intervenção consequente, nas decisões das organizações regionais, internacionais e globais do mercado e da finança (por exemplo, a Comissão Europeia, a Organização Mundial do Comércio, o FMI, o G7, o G20 e outras). No sentido de estas integrarem nas suas decisões, procedimentos e práticas as posições (nomeadamente, convenções e recomendações) da OIT em coerência com este e outros estudos, bem como com outras referências fundamentais da Constituição, missão e acção da OIT, como são, por exemplo, a de que “o trabalho não é uma mercadoria” [13] e a promoção do “trabalho digno” [14].
De resto, este estudo é fiabilíssimo, não apenas por ser da autoria da OIT mas, também – muito importante –, porque já foi validado pelos accionistas e CEO da Jerónimo Martins, da EDP, da GALP, do BCP e de todas as empresas do PSI-20, nas quais, como se sabe [15], os rendimentos destes têm sido cada vez mais desproporcionadamente desiguais (na ordem das muitas dezenas e, nalguns casos, até mais de uma centena e meia de vezes) em relação aos salários médios dos trabalhadores das empresas de que são proprietários, gestores ou administradores de topo.
De qualquer modo, para os “economistas políticos” e para os “moralistas” portugueses, há uma vantagem matemática no prosseguimento deste caminho de desigualdades no trabalho. É que, assim, já podem responder à tal pergunta expressa por Almeida Garrett em Viagens na Minha Terra (1846) sobre “o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização... à penúria absoluta para produzir um rico”.
Sim, com este estudo, os “economistas políticos” e os “moralistas” já podem fazer melhor os seus cálculos e responder com convicção ao nosso grande escritor sobre (parafraseando-o) quantos trabalhadores é preciso condenar (pelo menos) à penúria e ao trabalho desproporcionado durante muitos anos para produzir certos accionistas e CEO, desproporcionadamente remunerados, das empresas onde eles próprios, trabalhadores, trabalham.
Pelos vistos, a resposta, matematicamente segura, é: cada vez mais.
[1] The global labour income share and distribuition https://www.ilo.org/global/about-the-ilo/newsroom/news/WCMS_712261/lang--es/index.htm
[2] Dados recolhidos no mapa Excel que faz parte do relatório e a que este dá acesso, por link.
[3] https://observador.pt/2019/07/08/maioria-dos-trabalhadores-por-conta-de-outrem-ganha-menos-de-mil-euros/
[4] OCDE, Oxfam e outras
[5] Por exemplo, Joseph Stiglitz, Amartya Sem, Thomas Piketty e outros
[6] Lei 23/2012, de 25 de Junho
[7] Bem pelo contrário, manteve – vai manter – no essencial, como resultou da inerente votação na generalidade em 19/7/2019, na Assembleia da República.
[8] “Futuro do trabalho e qualidade do emprego: trabalhar mais para ganhar menos e ganhar menos para trabalhar mais?” – PÚBLICO, 15/6/2019 - https://www.publico.pt/2019/06/15/economia/opiniao/futuro-trabalho-qualidade-emprego-trabalhar-ganhar-menos-ganhar-menos-trabalhar-1876519
[9] Entrevista ao DN Madeira em 30/10/2010 (https://www.dnoticias.pt/multimedia/videos/233541-entrevista-a-bruto-da-costa-DLDN233541#). Alfredo Bruto da Costa (Goa, ex-Índia portuguesa, 5/8/1938 – Lisboa, 11/11/2016), engenheiro, professor universitário, foi ministro dos Assuntos Sociais (V Governo Constitucional), conselheiro de Estado, presidente da Comissão Nacional de Justiça e Paz e um dos maiores especialistas e interventor cívico e político em pobreza, desigualdades e exclusões sociais
[10] Adam Smith (Escócia, actual Reino Unido, 5/7/1723-17/71790), em A Riqueza das Nações (1776)
[11] A Organização Internacional do Trabalho foi fundada em 1919, em Genebra (Suíça), no âmbito da Liga das Nações (hoje ONU), na sequência do Tratado de Versalhes que pôs fim à I Guerra Mundial.
[12] É cinquentenária da atribuição do Prémio Nobel da Paz, em 1969
[13] Primeiro princípio da Constituição da OIT, introduzido pela Declaração de Filadélfia, em 10/5/1944
[14] “Trabalho digno” (formulação portuguesa da versão original – decent work) é um conceito adoptado há 20 anos (1999) pela OIT e que mais tem balizado a sua missão e acção internacional no mundo do trabalho. A definição assenta, essencialmente, em quatro componentes: oportunidades de emprego, efectivação de direitos a condições de trabalho e salário dignos, protecção social e diálogo e participação social
[15] “Desejo de menos desigualdade é generalizado, também entre os portugueses” – PÚBLICO, 25/9/2018. https://www.publico.pt/2018/09/25/economia/noticia/desejo-de-menos-desigualdade-e-generalizado-e-tambem-existe-entre-os-portugueses-1845122