Joana Gorjão Henriques, in Público on-line</i>
Aumento da escolaridade em Portugal não eliminou discurso de ódio, diz Francisca Van Dunem. Ministra da Justiça e secretário de Estado das Autarquias defendem que é necessário recolher mais informação sobre como se manifestam fenómenos de discriminação. Relatório preliminar sobre racismo apresentado esta terça-feira no Parlamento.
A ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, afirmou nesta terça-feira, no Parlamento, que o racismo atravessa “transversalmente” todos os estratos da sociedade portuguesa mas que é essencial ter informação para perceber a sua dimensão. “É redutor e pode ser indutor de erros que cada um de nós fundeie a sua opinião em percepções e na análise da realidade limitada que conhece”, disse a deputados, académicos, activistas e membros de organizações não-governamentais que estiveram esta terça-feira no Parlamento.
E deixou um recado para quem nega a sua existência: “O negacionismo, a persistência na desvalorização do fenómeno conduz ao desastre e à radicalização de posições (...) A maior expressão de preconceito racial consiste, precisamente, na negação deste preconceito.”
A ministra encerrou a apresentação do Relatório sobre Racismo, Xenofobia e Discriminação Étnico-Racial em Portugal que identifica as áreas em que é necessário intervir: justiça e segurança, educação, saúde, habitação e trabalho.
O documento é preliminar e a sua relatora, a deputada do PS Catarina Marcelino, ainda irá incorporar sugestões mas para já deixa em cima da mesa o estudo sobre a hipótese de se criar quotas nas universidades para afrodescendentes e ciganos, uma das medidas de “acção positiva” que identifica como necessárias. Na sessão, a proposta de quotas foi rejeitada expressamente apenas por uma intervenção, a do deputado do PSD Duarte Marques, presidente da Comissão para as Diásporas do Conselho da Europa, que defendeu que não resolvem o problema da discriminação.
Na sua intervenção que foi aplaudida de pé por várias pessoas na plateia, Francisca Van Dunem referiu o facto de ter sido “realizados alguns estudos sectorais”, mas não haver “informação ampla e abrangente” que permita “extrair conclusões seguras sobre a realidade”. Enumerou não haver resposta para “perguntas tão simples como as de saber quantos são os membros destas comunidades; que idade têm, quantos nasceram em Portugal; quantos os que não nasceram, há quantos anos aqui residem, onde e como vivem, quanto auferem, que graus de escolaridade detêm, que acesso a empregos, a habitação, a cuidados de saúde ou a bens e serviços lhes são negados”.
A ministra deu ainda o exemplo do artigo de opinião da historiadora Fátima Bonifácio, publicado no PÚBLICO e denunciado por veicular mensagens racistas, para referir a pertinência deste relatório. Afirmou que o grau de escolaridade não elimina estes fenómenos, que a escola não é a única solução: houve um aumento dos níveis de escolaridade em Portugal mas isso não diminuiu o discurso de ódio ou a reacção perante a diferença racial ou étnica, disse. “Pelo contrário, parece ter-se refundado”. Acrescentou: “Um grau de escolaridade mais elevado poderá tornar as reacções mais subtis, menos primárias ou grosseiras, mas não tem a faculdade de as eliminar”. E continuou: “O racismo é o crime perfeito: quem o comete acha sempre que a culpa é da vítima.”
“A maior expressão de preconceito racial consiste na negação deste preconceito”
Aquele artigo foi, aliás, dado como exemplo da pertinência do relatório ao longo das intervenções nos vários painéis, onde participaram mais de uma dezena de pessoas. O secretário de Estado das Autarquias Locais, Carlos Miguel, de manhã, começou a sua intervenção dizendo ser “português de etnia cigana” com “muita honra”. “Se houvesse dúvidas sobre a importância e actualidade do relatório, as más notícias [do dito texto] com incentivos ao ódio, ao racismo, à separação de uns e outros justificavam este debate”.
Carlos Miguel falou de habitação e foi bastante crítico em relação a um dos pontos do 1.º Direito Programa de Apoio ao Acesso à Habitação, ao prever que as autarquias financiem dois terços do orçamento. Dessa forma “não vamos ter habitação social para ninguém”, disse. Como Van Dunem, também falou da necessidade de recolher informação: “É muito importante saber como somos, onde estamos, como vivemos. Um Estado que não responde a estas questões está a discriminar a etnia cigana”, sublinhou.
De seguida, Sérgio Aires, sociólogo e perito em pobreza e exclusão, sublinhou que “são os ciganos que estão a tentar criar a ponte”, afastando as ideias que veiculam o preconceito de que “não se querem integrar”. E reiterou uma pergunta feita de manhã pela académica Iolanda Évora, na plateia: “Para que serve o relatório?” Criticou o facto de o combate à discriminação de ciganos estar sob a alçada do Alto Comissariado para as Migrações (ACM), um “organismo que diz que os ciganos não são portugueses”. Fez ainda a crítica à construção de habitação social com “paredes de sete centímetros” que ao fim de meses estão destruídas devido à falta de qualidade mas depois são responsabilizados os ciganos.
PS quer discriminação positiva para negros e ciganos
Já o advogado José Semedo Fernandes, que esteve no grupo do censos como representante das comunidades afrodescendentes, falou de um tema que o relatório não aborda, a lei da nacionalidade, e questionou o porquê de se ter criado uma medida que permite a reparação histórica da discriminação de judeus permitindo hoje a descendentes de judeus sefarditas obterem a nacionalidade portuguesa — mas deixou-se de fora a geração que nasceu em Portugal entre 1981 e 2006.
Isto porque esta geração foi abrangida por uma lei “mais prejudicial para os filhos de estrangeiros nascidos em Portugal” do que a lei de 1959 publicada durante o salazarismo e que limitava o acesso à nacionalidade a filhos de portugueses nascidos no estrangeiro, afirmou. “A lei da nacionalidade exige que seja feita uma reparação histórica imediata”, afirmou, propondo que se crie um artigo que permita a quem nasceu entre 1981 e 2006 tenha acesso à nacionalidade originária. “Isso ajudaria a que muitos afrodescendentes em Portugal passassem a sentir-se portugueses. Só assim acredito que se fará alguma justiça”.
A relatora acolheu a crítica e referiu que essa questão estará no “relatório final”.
É urgente remodelar escolas de polícia, diz Manuel Morais
Também convidado a intervir, Manuel Morais, agente da PSP que foi forçado a demitir-se do seu cargo como vice-presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Policia por ter referido a existência de racismo na PSP, foi bastante aplaudido durante a sua intervenção. Sublinhou a dificuldade de falar neste tema em alguns meios como o seu. Disse ainda que se sente “revoltado” pelo facto de “a sociedade encolher os ombros” perante os fenómenos de discriminação e pediu que se “arregacem” as “mangas” e se passe “à acção”.
Sugeriu ainda que é “urgente” remodelar o programa das escolas de polícias e enriquecê-las com uma componente de formação em humanismo, elaborado fora da polícia. Reforçou a necessidade de se aplicarem testes psicotécnicos no recrutamento de agentes e de uma monitorização dentro da PSP que permita identificar e filtrar quem “demonstra claramente sentimento de ódio”: “Não merecem a confiança deste povo e não merecem exercer este tipo de funções”, afirmou.
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Da plateia, onde estavam activistas, académicos e representantes de organizações não-governamentais, surgiram algumas críticas e perguntas feitas directamente a alguns dos intervenientes, várias relacionadas com questão da recolha de dados étnico-raciais. Foi também criticada a falta de representatividade de mulheres afrodescendentes na mesa, por exemplo.
O relatório nasceu de uma proposta do PS, feita em Setembro do ano passado, e para o qual foram ouvidas 31 entidades e personalidades, e feitas visitas nas quais se envolveram 28 organizações e 18 deputados de todos os partidos políticos com assento parlamentar. O documento fará recomendações que a deputada Catarina Marcelino espera que sejam incorporadas nos programas dos partidos.