Carolina Pescada, in Público on-line
Decreto-lei 163/2006 diz que estabelecimentos comerciais e hoteleiros com menos de 150 m² não têm de ser acessíveis. Houve 700 queixas em 2019. Associação Portuguesa dos Deficientes e Associação Salvador querem mudar a lei.
O Decreto-lei 163/2006, que estabelece a obrigatoriedade da acessibilidade aos edifícios públicos e aos privados que recebem público e aos edifícios com licença para habitação aplica-se apenas a estabelecimentos comerciais e hoteleiros “cuja superfície de acesso ao público ultrapasse 150m²”. Para esta medição, é contabilizada apenas a área a que o cliente tem acesso.
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A app +Acesso para Todos, da Associação Salvador, recebeu ao longo de 2019, 695 reclamações da falta de acessibilidade de estabelecimentos públicos e de acesso público. Depois de recebidas, as queixas foram enviadas para o Instituto Nacional de Reabilitação (INR) e para as câmaras municipais a que diziam respeito - as entidades responsáveis pela fiscalização do cumprimento da Lei das Acessibilidades.
“Algumas reclamações foram alvo de fiscalização e conseguimos concluir que, na sua maioria, são excepções à lei (informações fornecidas por câmaras municipais). A maioria destes espaços tem menos de 150 m², o que os isenta da obrigação de serem acessíveis”, explica Mariana Lopes da Costa, directora geral da Associação Salvador.
Apesar de não estarem em incumprimento da Lei da Acessibilidade, a Associação Salvador afirma que estes estabelecimentos “violam a Lei da Não Discriminação”, que pune “a discriminação em razão da deficiência e da existência de risco agravado de saúde”, como se pode ler no decreto-lei 46/2006. Por isto, diz a Associação, também estão em incumprimento.
“A ASAE tem competência para actuar relativamente à Lei da Não Discriminação, mas tem referido que exclui da sua competência as denúncias relacionadas com acessibilidades (mesmo que invoquem a Lei da Não Discriminação)”, relata a Associação Salvador, “encaminhando para as respectivas câmaras municipais”, que, por sua vez, dizem que a competência é da ASAE. “Vão encaminhando de uns para outros e as situações vão-se arrastando”, conclui a associação.
Alguns exemplos de estabelecimentos com menos de 150 m²sobre os quais foram apresentadas queixas à Associação Salvador são o Café Luso, no Porto, o Páteo do Petisco, em Cascais, e o restaurante 100 Maneiras, em Lisboa. Joana Gorgueira, gestora de projectos da Associação Salvador, explicita que na maior parte dos casos o obstáculo à mobilidade é apenas um degrau à entrada.
No dia 10 de Outubro, Dia das Acessibilidades criado pela associação, a Associação Salvador distribuiu por Lisboa mais de 100 postais com a mensagem “Para si um Degrau, para mim uma porta fechada”. “Sendo este o único obstáculo, por que razão não é obrigatório que seja acessível?”, questiona ainda a Associação Salvador, num esclarecimento adicional enviado ao PÚBLICO.
Grupo de trabalho e reunião com Governo
No mesmo esclarecimento, a Associação Salvador refere ainda que em Setembro reuniu com a secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes, e foi informada da intenção do Governo de “criar um grupo de trabalho para discutir a legislação e estudar propostas de alteração” à Lei das Acessibilidades. A Associação Salvador mostrou-se desde logo disponível para integrar esses trabalhos, mas até à data ainda não foi contactada para tal.
O PÚBLICO questionou na manhã de terça-feira a Secretaria de Estado de Inclusão das Pessoas com Deficiência sobre a receptividade a alterações à Lei das Acessibilidades, mas até ao momento da publicação deste artigo não obteve nenhuma resposta.
A Associação Salvador diz também saber que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) não está a realizar fiscalização. O PÚBLICO tentou contactar a CML para confirmar a informação, mas até ao momento não obteve resposta. A Câmara Municipal do Porto, questionada pelo PÚBLICO, adiantou por escrito que “das 43 reclamações recebidas da Associação Salvador, 31 são para arquivo directo”, por os espaços em questão terem menos de 150 m² e, por isso, não serem visados pelo decreto-lei 163/2006.
Ana Sezudo, presidente da Associação Portuguesa dos Deficientes (APD), concorda que esta é uma lacuna do decreto-lei 163/2006, e que é preciso alterar a Lei das Acessibilidades. “Qualquer cidadão é cidadão de direito e, portanto, tem direito a poder usufruir de todo o tipo de serviços que sejam colocados ao público”.
A história da legislação da acessibilidade em Portugal é longa. Estes 150 m² já constavam do decreto-lei 125/97, o primeiro a decretar um prazo para a adaptação da via pública e de edifícios e estabelecimentos públicos. Em 2004, o prazo chegou ao fim e Portugal ainda não garantia acessibilidade a todos. É então criado o decreto-lei 163/2006, que acrescenta um novo prazo, desta vez de dez anos, para a adaptação destes edifícios e dos edifícios com licença para habitação; prazo esse que não foi cumprido. Em 2017 é publicado um novo decreto, dizendo que subsistia um expressivo conjunto de edifícios, espaços e instalações que ainda não satisfaziam condições de acessibilidade, devido a um “desinvestimento na área”, motivado pela crise financeira que Portugal atravessara nos anos anteriores.
“Quando [o decreto-lei 163/2006] cumpriu o prazo, ficámos com algum receio de que houvesse um retrocesso e de que de facto houvesse uma revogação daquele decreto, como tinha acontecido dez anos antes”, conta Ana Sezudo, presidente da APD. “Mas aquilo que aconteceu foi uma alteração na legislação relativamente à entidade que faria a fiscalização”. Juntamente com esta alteração, foi decretada ainda a constituição de uma comissão, que teria como objectivo apresentar um relatório “dos pontos negros do Estado”, as áreas em que era preciso intervir, explica. “O pouco que é feito é realmente muito pouco, se pensarmos nos anos que já temos de legislação e no grau de sensibilidade que os nossos decisores políticos já deviam ter neste momento”, lamenta a presidente da Associação Portuguesa dos Deficientes.