27.8.20

Crianças em perigo retiradas às famílias obrigadas a isolamento de 14 dias, mesmo com teste negativo

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Orientação assinada pela DGS reconhece que medidas podem ser “penalizadoras para uma criança que acaba de ser acolhida”, mas defende que “não as implementar pode atentar contra o interesse das outras crianças e dos profissionais e voluntários que trabalham na instituição”. Esta segunda-feira seguiu queixa para a Provedoria da Justiça assinada pela comissão instaladora da Associação Ajudar.

A orientação foi emitida pela Direcção Geral de Saúde (DGS) no final de Julho e, até agora, o Instituto de Segurança Social (ISS) nada disse em contrário: crianças e jovens retirados às famílias têm de entrar sozinhos nas casas de acolhimento e ficar em isolamento 14 dias, mesmo com teste de covid-19 negativo.

A comissão instaladora da Associação AjudAjudar, que junta profissionais de várias áreas dos direitos das crianças, remeteu esta segunda-feira uma queixa à Provedoria de Justiça. Considera que a orientação da DGS é inconstitucional e coloca “severamente em causa os direitos das crianças”.

Desde o início da pandemia que a DGS equipara crianças e jovens a idosos. “Também nas instituições de acolhimento para crianças e jovens em risco, a coabitação favorece a disseminação da infecção”, lê-se nesta última orientação. “A infecção na criança e no jovem é muitas vezes assintomática e de evolução benigna; no entanto, há que prevenir a transmissão aos cuidadores.”

Seguindo esta orientação, uma criança que tenha acabado de ser resgatada a uma família que a negligencia, violenta ou viola fica separada do resto do mundo. Tem de entrar sozinha. Não pode ser acompanhada por uma avó, uma tia ou outra figura de referência. Nem sequer pelo gestor de caso/equipa (a reunião de acolhimento deve ser feita por telefone ou e-mail). Tem de sujeitar-se a um teste. Mesmo com resultado negativo, não se livra do isolamento de 14 dias.

Até as crianças da mesma família só podem ficar juntas se entrarem no mesmo dia. Quem entra deve ficar num quarto isolado, com o contacto limitado ao essencial. “No caso dos bebés, em que o afastamento social é muito difícil e não há controlo de esfíncteres, para além da máscara cirúrgica, bata e luvas descartáveis, o cuidador deve colocar também um avental impermeável”, pode ler-se.

No documento, a DGS reconhece que “colocar em isolamento uma criança recém-chegada é uma decisão muito difícil”. Admite que as medidas “são extremamente penalizadoras para uma criança que acaba de ser acolhida”. Considera, porém, que “não as implementar pode atentar contra o interesse das outras crianças e dos profissionais e voluntários que trabalham na instituição”.

O Tribunal Constitucional já declarou inconstitucional a quarentena obrigatória de quem chegava aos Açores. Essa decisão é o ponto de partida de uma extensa fundamentação jurídica que ocupa 30 páginas e que nesta segunda-feira seguiu para a Provedoria de Justiça.
Confinamento total para todos

O problema não se levanta apenas na momento da admissão. Seguir a orientação da DGS implica colocar em isolamento pelo período de 14 dias qualquer criança ou jovem que tenha de sair para, por exemplo, ir ao médico ou ao tribunal. Se a saída for por período superior a 24h, tem de voltar a fazer teste. E nem assim fica dispensada da quarentena. Em qualquer circunstância, acabaram-se as actividades lúdicas de grupo e os convívios familiares, à revelia do que fora decidido pelo Tribunal de Família e Menores ou acordado com a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens.

“As outras crianças andam na rua. Estas crianças não são iguais às outras? Têm de ficar presas?”, questiona Sónia Rodrigues, especialista em acolhimento residencial e co-fundadora da AjudAjudar. “Como é que vão fazer o isolamento de quem regressar de férias? As casas têm quartos individuais para todos? E quando começarem as aulas? Estes crianças vão ficar em casa, com ensino à distância?”


Não se quiseram precipitar. “Quisemos perceber o que estava a acontecer nas diferentes casas”, salienta. Desdobraram-se em contactos. E perceberam que a realidade é diversa. Numas casas, as crianças não podem ir à praia nem ao parque, não podem jogar à bola, nem às cartas. Se precisarem de sair, ficam isoladas num quarto 14 dias. “Com sorte, têm um portátil, um tablet ou um telemóvel para se entreter”, diz. E outras continuam a sua vida.

O que se passa? As orientações da DGS costumam chegar às casas através dos centros distritais de Segurança Social que as acompanham. Alguns disseminaram o documento, mas outros preferiram ficar a aguardar que o ISS fizesse um plano ajustado àquela realidade concreta, como já aconteceu antes. Dúvidas teriam de ser esclarecidas com a autoridade de saúde local. “Alguns delegados de saúde compreendem, outros exigem que se cumpra isto à risca”, afirma Sónia Rodrigues.

Durante o Estado de Emergência, decretado a 18 de Março, o país inteiro fechou-se dentro de casa. Suspenderam-se as saídas das crianças e jovens em acolhimento residencial e as visitas, quer as que se faziam dentro de casa, quer as que se faziam fora. Ficaram as crianças e jovens durante dois meses, com ensino à distância, sem qualquer contacto presencial com familiares e outras figuras de referência.

Com o desconfinamento, o país procurou uma certa normalidade. No dia 11 de Maio, a DGS publicou os requisitos para a retoma das visitas em lares de idosos, unidades residenciais de pessoas com deficiência e casas de acolhimento de crianças e jovens. Com fortes restrições, ainda sem saídas. Soaram os alertas de vários quadrantes da sociedade civil. No dia em que as visitas iam começar, o ISS apresentou um plano específico para que crianças e jovens em acolhimento residencial pudessem frequentar a escola ou outras respostas sociais, retomar as visitas presenciais e ir de fins-de-semana ou de férias escolares, como decidido pela Comissão de Protecção de Crianças e Jovens ou o Tribunal de Família e Menores. Já a 23 de Julho, quando muitas estavam de férias, a DGS voltou a colocá-las em total confinamento.

Sónia Rodrigues chama a atenção para o papel delicado dos directores técnicos de casas: “Ou desrespeitam a orientação da DGS ou desrespeitam os direitos das crianças/jovens entregues aos seus cuidados caso optem por seguir as indicações da referida orientação.” Conhece “alguns corajosos que não cumprem”. “Se houver um surto de covid-19, serão responsabilizados.”

Entendendo estar perante uma “violação grosseira dos direitos das crianças e dos jovens mais desprotegidas e por parte de quem tem maior responsabilidade de as proteger – o Estado” –, o grupo que encabeça decidiu avançar com a queixa à Provedoria de Justiça. “Queremos que a DGS passe a emitir orientações específicas para as casas de acolhimento, que deixe de equiparar crianças e jovens a idosos”, remata.

O PÚBLICO questionou o ISS, que tutela a protecção de crianças e jovens. Até à hora do fecho, não obteve qualquer resposta. O mesmo sucedeu com a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens.