7.8.20

Nunca consumimos tantos antidepressivos. São precisos psicólogos no SNS

Alexandra Campos, in Público on-line

Na última década, consumo de antidepressivos quase duplicou e, desde 2000, mais do que triplicou. Há desigualdades sociais “elevadíssimas” em Portugal, que é “um país de gente endividada”. E ter dívidas “massacra as pessoas do ponto de vista da saúde mental”, explica o psiquiatra Miguel Xavier.

Numa década apenas, o consumo de antidepressivos quase duplicou em Portugal, enquanto o de ansiolíticos e hipnóticos desceu ligeiramente e nos últimos anos estabilizou. Entre Janeiro e Maio deste ano, que inclui já três meses sob o efeito da pandemia e o período do confinamento, as vendas de antidepressivos voltaram a aumentar. Foram compradas mais 248 mil embalagens de antidepressivos nas farmácias nos cinco primeiros meses de 2019, em comparação com o mesmo período de 2019, para um total superior a quatro milhões de caixas. Será este aumento uma consequência da pandemia na saúde mental dos portugueses? Ninguém consegue responder a esta pergunta, até porque as vendas de ansiolíticos diminuíram neste período.

O disparar do consumo de antidepressivos entre 2010 e 2019 (de 64 doses diárias por mil habitantes para 118, patente numa análise sobre o consumo de psicofármacos na última década que foi publicada na última edição da revista da Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde (Infarmed), é interpretado pelos especialistas como uma boa notícia por revelar um maior acesso e diagnóstico de doentes a cuidados de saúde mental no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e uma melhor prescrição dos médicos. Porquê? Porque estes fármacos são cada vez mais usados para tratar problemas de ansiedade por gerarem menos habituação do que as benzodiazepinas (designação científica que inclui ansiolíticos, hipnóticos e sedativos).
Mas os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO sublinham igualmente que é a falta gritante de alternativas às terapêuticas farmacológicas em Portugal – sobretudo o reduzido número de psicólogos nos centros de saúde - que muitas vezes obriga os clínicos a medicar doentes que, com outro tipo de apoio - psicológico, social e mesmo económico - não necessitariam de ser tratados com comprimidos.

O fenómeno da elevada prescrição de psicofármacos em Portugal está diagnosticado há muito tempo. No final do ano passado, num relatório dedicado inteiramente à saúde mental e sugestivamente intitulado “Sem mais tempo a perder: Saúde Mental em Portugal - Um desafio para a próxima década”, o Conselho Nacional de Saúde, órgão de consulta do Governo para a definição das políticas nesta área, destacava que Portugal estava na quinta posição quanto ao consumo de antidepressivos nos países da OCDE em 2017, “com mais do dobro da taxa registada em países como a Holanda, Itália ou Eslováquia”.

Só na Islândia, no Canadá, na Austrália e no Reino Unido se consumiam mais antidepressivos do que em Portugal. E se na média da OCDE a utilização deste tipo de fármacos duplicou entre 2000 e 2017, quase duas décadas, neste período mais do que triplicou em Portugal

“Ter dívidas massacra as pessoas”

Mas o indicador mais preocupante é o do consumo de ansiolíticos que, apesar de ter estabilizado, ainda é muito elevado. Os autores do último relatório do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (2019) citam, aliás, os dados referidos no Health at a Glance da OCDE relativos a 2017 que indicam que Portugal estaria então em primeiro lugar no que se refere apenas a consumo de ansiolíticos. E lembram que, no caso das benzodiazepinas e de outros medicamentos semelhantes, estão “bem documentados os riscos de reacções adversas, nomeadamente confusão, fadiga e vertigens”.

“O nosso ponto de partida não era igual ao de outros países. Nós tínhamos uma taxa de consumo baixa porque tínhamos pouco acesso [a cuidados de saúde mental]. O número de consultas psiquiátricas duplicou, entretanto. E a prevalência de perturbações psiquiátricas em Portugal é muito elevada, estamos na segunda posição, a seguir à Irlanda do Norte”, argumenta o director do Programa Nacional de Saúde Mental da Direcção-Geral da Saúde, Miguel Xavier.

Mas por que razão é que os portugueses têm uma prevalência tão elevada de perturbações psiquiátricas, mais de 20%, muito superior à de outros países do Sul da Europa, como Espanha e de Itália, onde não chega a 10%? “As desigualdades sociais em Portugal são elevadíssimas. Não é apenas uma questão de pobreza. Na Nigéria, onde todos são pobres, a taxa de depressão é muito inferior à nossa. Um CEO pode ter, em Portugal, um salário 200 ou 300 vezes superior ao dos trabalhadores da sua empresa”, enfatiza o psiquiatra.

“A dívida é igualmente um factor determinante. Somos um país de gente endividada. Ter dívidas massacra as pessoas do ponto de vista da saúde mental e isto não se resolve com comprimidos. É sobretudo no factor económico que temos que trabalhar”, recomenda. Nesta equação entra ainda a “questão temperamental, somos mais tristonhos, mais resignados, tivemos 50 anos de ditadura”.

Miguel Xavier sublinha que medicar as perturbações ansiosas com antidepressivos significa que os médicos “estão a receitar melhor” e é um “bom sinal”, porque é “uma boa prática deixar de dar benzodiazepinas”. Mas admite que em muitos casos não é fácil retirar estes fármacos porque “há pessoas que se habituaram a tomá-los cronicamente”. Lembra igualmente que “os antidepressivos são utilizados em muitas circunstâncias além das psiquiátricas, nomeadamente para a dor crónica e a fibromialgia”.

Por outro lado, como não há-de o país ter estas taxas de tratamento farmacológico se não se investe nos recursos humanos, sobretudo na contratação de psicólogos, mas também de assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, psicomotricistas, questiona.

“O problema só se resolve quando houver tratamentos não farmacológicos nos cuidados de saúde primários. Ando há anos a dizer isto”, lamenta. Miguel Xavier dá o exemplo de Londres que, com uma população semelhante a Portugal, tem cerca de cinco mil terapeutas, enquanto por cá os psicólogos nos centros de saúde e os terapeutas ocupacionais “são pouquíssimos, a única classe profissional que tem aumentado nesta área são os médicos”. “Os assistentes sociais também são cruciais”. Mas pede: “Não vamos entrar em dramatismos. Se não tivesse acontecido a pandemia, 2020 ia ser um ano de investimento expressivo na saúde mental”.
Muito “sofrimento psíquico”?

As “três grandes razões” para a elevada prescrição de psicofármacos em Portugal passam, em primeiro lugar, pela falta de psicólogos no SNS, corrobora o bastonário da Ordem dos Psicólogos, Francisco Miranda Rodrigues. Também contribuem, e muito, para este fenómeno, “a falta de literacia em saúde” da população e “as determinantes”, nomeadamente as económicas: “Se um país for pobre, a probabilidade de perturbações mentais é naturalmente maior”.

Nos centros de saúde em Portugal haverá actualmente cerca de 250 a 260 psicólogos, calcula o bastonário. Em 2018 o Ministério da Saúde lançou um concurso para admissão de 40 e mais de dois mil candidatos foram admitidos a concurso. Resultado? Dois anos depois, o processo continua por concluir.

É um “desperdício”, frisa. Os psicólogos poderiam “fazer intervenções breves, ajudar as pessoas em processos de reacção adaptativa” depressiva ou de ansiedade mas que ainda “não configuram perturbações psiquiátricas” propriamente ditas. “Estaríamos a poupar muito em termos de sofrimento mas também em recursos económicos”.

A despesa total com psicofármacos é elevada: só nos primeiros seis meses deste ano, ultrapassou 93 milhões de euros, de acordo com os dados fornecidos ao PÚBLICO pela consultora Iqvia, que tem acesso aos dados das vendas nas farmácias.

O disparar do consumo de antidepressivos ao longo da última década também não surpreende o presidente do Conselho Nacional de Saúde Mental, o psiquiatra António Leuschner. “É cada vez maior a tendência para a utilização de antidepressivos como resposta terapêutica para tudo o que seja ansiedade. As benzodiazepinas criam dependência”, justifica.

Quanto ao elevado número de portugueses que estão a ser tratados com psicofármacos, diz que não se sabe “se há muito consumo porque há muito sofrimento psíquico”. “A resposta instrumental tem sido a de que os medicamentos são uma resposta muito fácil, na ponta da esferográfica. E há diferenças assinaláveis entre o litoral e o interior do país”.

Os dados da análise do consumo de psicofármacos na última década realizada pelo Infarmed provam isso mesmo: é em distritos do interior do país que o consumo, tanto de ansiolíticos como de antidepressivos, é mais elevado. No primeiro caso, surgem à cabeça os distritos de Coimbra, de Castelo Branco e Guarda, enquanto, no que toca aos antidepressivos, os distritos de Évora, de Coimbra e de Portalegre estão no topo da lista.

Ainda é cedo para avaliar o impacto da pandemia no consumo de psicofármacos, mas, no primeiro semestre deste ano, venderam-se mais 248 mil embalagens de antidepressivos do que no mesmo período de 2019, um crescimento de 6,5%. Em simultâneo, diminuiu a compra de embalagens de ansiolíticos, hipnóticos e sedativos (menos 159 mil entre Janeiro e Maio, uma redução de 3,7%), indicam os dados da Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed).

Os dados fornecidos ao PÚBLICO pela consultora Iqvia, que tem acesso aos números das vendas em farmácias, apontam no mesmo sentido, mas, como abrangem também o mês de Junho e incluem os medicamentos estabilizadores de humor, apontam para um crescimento mais significativo dos e antidepressivos no primeiro semestre deste ano - mais 417 mil embalagens.

Os especialistas sustentam que vai ser necessário deixar passar mais tempo para interpretar estes dados, mas já têm uma certeza: a pandemia vai seguramente ter um impacto na saúde mental. “Nós não saímos exactamente iguais das crises”, enfatiza o director do Programa Nacional para a Saúde Mental da Direcção-Geral da Saúde (DGS). “A nova normalidade é muito diferente da vida que tínhamos antes”. Sobre o aumento das vendas de antidepressivos, admite que poderá “haver aqui um efeito do confinamento”, mas defende que será necessária “uma série mais longa”, eventualmente um ano, para se interpretar estes dados com rigor.

Quanto ao futuro, Miguel Xavier não arrisca fazer previsões. “Tudo vai depender da magnitude da ‘pancada’ económica, quando esta chegar em força”. Mas avisa desde logo que, “se a pandemia leva ao desemprego e o desemprego leva à depressão, o tratamento não se faz com antidepressivos, mas sim com empregos”. O que poderá ajudar a desanuviar este cenário negro será “o surgimento de uma vacina, que funcionará como uma luz ao fundo do túnel”. Pelo menos é essa a sua “esperança”.

O impacto da pandemia na economia “vai obviamente ter repercussões na saúde mental”, corrobora o presidente do Conselho Nacional de Saúde, António Leuschner. Mas o psiquiatra não deixa de sublinhar que” a percepção do bem-estar é um conceito que se vai ajustando às expectativas”. Porquê? Porque “as pessoas vão criando reservas, uma outra capacidade de luta e há mudanças de hábitos que até acabam por se traduzir em melhorias noutras áreas”.

Para o bastonário da Ordem dos Psicólogos, o que merece destaque em primeiro lugar é o apoio que tem sido proporcionado durante a pandemia: “Fizeram-se 30 mil chamadas para as linhas de apoio e aconselhamento desde 1 de Abril e estas linhas foram montadas à pressa”. E frisa um aspecto positivo que decorre do turbilhão em que a covid-19 nos mergulhou. Está “a ajudar à diminuição do tabu e do estigma” associados às perturbações e doenças mentais. Miguel Xavier concorda: “A pandemia pôs a saúde mental na linha da frente, sem preconceitos”. Quem precisar de apoio pode recorrer ao site criado na página da DGS para esta área - https://saudemental.covid19.min-saude.pt/. Aqui encontrará os contactos disponíveis nos centros de saúde de cada região e nos serviços de saúde mental dos hospitais e alguns até disponibilizam números de telemóvel, o que ainda é raro em Portugal.