21.8.20

“Deus queira que daqui a um mês ou dois já não precise desta ajuda. Isto não é vida”

Ana Cristina Pereira (texto) e Miguel Feraso Cabral (ilustração), in Público on-line

Foram surpreendidos pela pandemia a ganhar a sobrevivência na economia informal. São dois novos beneficiários de Rendimento Social de Inserção, mas anseiam por deixar de o ser. Dão a voz, não a cara. Para que o estigma não se lhes cole.

Temeram que a resposta tardasse. Vivem no Porto, distrito com mais processos de Rendimento Social de Inserção (RSI). Para solicitar esta prestação social é preciso estar inscrito no Centro de Emprego. Quer o Instituto de Emprego, quer os Serviços de Atendimento da Segurança Social, onde há que entregar o requerimento, atendem por marcação. No confinamento, para evitar prolongar a aflição de quem precisa de socorro, abriram-se circuitos internos. António Azevedo e Carla Cruz passaram por um deles. Foram bater à porta da Junta de Freguesia de Campanhã, que ajudava a preencher e dava a assinar os documentos, digitalizava-os e encaminhava-os por email para o Serviço de Atendimento e Acompanhamento Social de Bonfim e Campanhã, que as faziam chegar às entidades competentes. Tornaram-se beneficiários de RSI.

Sem trabalho, sem mãe e com casa a prazo

Quando a pandemia chegou, António trabalhava há pouco mais de três meses na copa de um restaurante. “Trabalhei sempre nesta área”, afiança. Foi passando de restaurante para restaurante. “Antes trabalhei numa casa com um contrato de seis meses. Não renovaram, vim-me embora. Arranjei para esta casa. Comecei em Novembro.” Já não estava à experiência. “Gostavam do meu trabalho. Sempre pedi para fazer descontos, mas a situação prolongou-se. Saltava de mês para mês. Nunca assinei contrato.”

No dia 14 de Março, morreu-lhe a mãe. Foi para casa. “Ao fim do segundo dia, depois de termos feito o necessário, fui trabalhar. Liquidaram-me metade do mês e mandaram-me para casa.” A Organização Mundial de Saúde declarara pandemia. Fora accionado o Estado de alerta. O país fechava-se num longo confinamento e isso incluía o restaurante. “Quando precisassem, chamavam. Até hoje.”

Sozinho, entre aquelas paredes que partilhara com a mãe durante 60 anos, fazia contas impossíveis. Sem direito a lay-off nem a subsídio de desemprego, apenas com uma pequena poupança para uma doença, foi à Junta de Freguesia de Campanhã pedir ajuda à assistente social Carla Carvalho para requerer RSI. “Tive sorte. Arranjaram-me a documentação. Assinei. Meteram-me a documentação toda.”

Com o desconfinamento, António tenta regressar ao trabalho. “De vez em quando telefono [para o restaurante]. Dizem-me que têm pouco trabalho.” A idade não atrai empregadores. Acaba de completar 65 anos. “Estou a pensar se devo pedir reforma antecipada ou não.” Sabe que a idade da reforma é 66 anos e cinco meses. Não sabe o tamanho da penalização. "Se não tiver alternativa, tenho que meter.”

Para já, aguenta-se com os 189,66 euros de RSI. “Não me posso meter em habilidades, em aventuras. O dinheiro não estica. É para o mínimo. Água, luz, telefone. Sobra muito pouco.” Se tivesse de comprar alimentos para fazer pequeno-almoço, almoço, lanche e jantar, não dava. Vai almoçar e jantar a casa de uma tia, que é viúva. Sempre lhe faz alguma companhia, como antes à mãe.

Tem outro problema pendente. “A casa onde vivo é de uma sobrinha. Para já, não tenho de pagar renda, mas também tenho de resolver essa situação. Não posso ficar muito tempo. A minha mãe é que era a arrendatária. A minha sobrinha não está interessada em fazer um contrato de arrendamento. A ideia dela é vender.” António Azevedo compreende. A casa valorizou muito nos últimos anos. A sobrinha pode fazer um bom negócio. Ele é que não. Só vê uma saída: habitação social. E vagas?

Sem trabalho, com duas filhas e medo de perder a casa

Quando a pandemia chegou, Carla tinha 700 euros no banco. O suficiente para pagar dois meses de prestação da casa. “Paguei Abril e Maio e já não tinha para Junho. Não dá para juntar dinheiro com duas filhas.” A de 22 anos está a acabar o mestrado em Psicologia e a de 15 no secundário. As despesas aumentaram. Mais refeições para servir. E um serviço de Internet para pagar, para que pudessem continuar a estudar.

Já tiveram uma boa vida, Carla e o marido. Ele trabalhava em artes gráficas e ela na venda de utensílios domésticos. Foi assim que conseguiram comprar um apartamento e mobilá-lo. Pediram um crédito para pagar ao longo de trinta anos. Faltam nove. “Quem me dera pagar até ao fim”, suspira. Esteve quase a falhar. “Com seguros e tudo, 320 euros. Para quem não tem nenhum, é complicado.”

É um lugar espinhoso para estar na meia-idade. O marido, de 49 anos, faz biscates no sector da construção civil e deixou de ter serviço. “Quando isto passar”, diziam-lhe. Ela, de 40, cuidava e uma idosa. “Logo em Março, a filha disse que ia levá-la para a beira dela, que não havia necessidade de eu ir mais, que ela também ia ficar em casa, que ela tinha medo, que a mãe é uma senhora de risco.”


Aquele trabalho dava-lhe jeito. Ia lá de manhã ajudar a senhora a tomar o banho e o pequeno-almoço. Havendo algum descuido, mudava-lhe a roupa da cama. Tornava a casa para preparar o almoço para a família. Voltava para lhe servir o almoço e o lanche. A filha, vinda do trabalho, tratava do jantar, deixando-a sentada na sala, a ver televisão. E Carla tornava, mais tarde, para a pôr na cama. “Podia fazer a minha vida em casa”, diz. E os 300 euros ajudavam a compor o orçamento familiar.

“Em Maio, já não havia quase para comer. Já nem havia para a água e a luz. Já era com ajuda da minha mãe e do meu pai”, conta. Os irmãos também ajudaram. Perante aquele descalabro, a assistente social requereu apoio em géneros alimentares e apoio financeiro para assegurara algumas despesas fixas. E ajudou-a a tratar do requerimento de RSI. “Recebemos o mês passado. A doutora Carla ajudou-me a tratar de tudo. A gente não podia ir aos locais pedir certidões, nem isto, nem aquilo.”

Talvez tudo esteja a encaminhar-se. Em Julho, o marido foi operado a uma hérnia. “Tem de ficar um mês ou dois em recuperação. E pôr cinta e trabalhar, porque isto não é vida.” Carla vislumbra uma nova oportunidade. “Fui ao centro de emprego. A senhora disse que iam começar a dar uma formação de cabeleireiro. Que em Setembro me iam chamar, que sou nova, que tenho um futuro pela frente.” Sentiu que tem. “Deus queira que daqui a um mês ou dois eu já não precise desta ajuda. O que peço a Deus é força para não precisar disto. Isto não é vida.”