6.8.20

Teletrabalho: um privilégio dos que estão melhor e que permitiu trabalhar menos

Victor Ferreira, in Público on-line

Dados do INE expõem diferenças vincadas: os precários ou com formação mais baixa ficaram menos em casa e quem trabalhou na empresa teve jornadas mais longas.

Quase um quarto da população empregada em Portugal esteve em teletrabalho durante o segundo trimestre de 2020. Se fosse possível fazer um retrato robô, baseado na distribuição maioritária por género, origem geográfica, idade, escolaridade e tipo de contrato de trabalho e de funções que exercem, obteríamos a imagem de uma mulher, com 35 anos ou mais e formação superior, que reside na Área Metropolitana de Lisboa e provavelmente trabalha como efectiva numa empresa ou entidade pública do sector dos serviços.

Porém, há muitas nuances nos dados do Inquérito ao Emprego, revelados esta quarta-feira pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) e que dariam a este retrato robô contornos mais indefinido, sobretudo no que toca ao género – é verdade que houve mais mulheres do que homens em teletrabalho, mas a diferença, em valor absoluto, não é assim tão grande.

O que fica, sim, marcado a traço firme é que o teletrabalho foi um privilégio dos que devem considerar-se como tendo melhores condições de vida profissional: têm um lugar no quadro de uma empresa, formação superior e funções ou cargos mais altos, ligados ao conhecimento e aos serviços. Portanto, a pandemia acentuou ainda mais a desigualdade laboral e social no país, expondo ao risco de contraírem a doença em maior grau os mais jovens, os precários, os indiferenciados, os que ganham menos. No fundo, os mesmos que foram mais atingidos também pelo layoff e, sobretudo, pelo desemprego.

Nas contas do INE, entre Abril e Junho de 2020 houve 1.094.000 pessoas a trabalharem a partir de casa. “Destas, 998.500 pessoas (91,2%) indicaram que a razão principal para ter trabalhado em casa se deveu à pandemia”, explica a autoridade estatística portuguesa.

Os cerca de 1,1 milhões representam 23,1% dos trabalhadores 4.731.200 trabalhadores residentes no país e contabilizados pelo INE. A distribuição geográfica foi muito assimétrica: a Área Metropolitana de Lisboa (AML) foi a que teve mais pessoas em teletrabalho, destacando-se a léguas de todas as outras regiões do país.

Com cerca de 1,27 milhões de trabalhadores no total, a AML teve a maior proporção, 458.600 mil pessoas (36%), em teletrabalho. Já na região Norte, que tem a maior quantidade de trabalhadores do país (1,68 milhões), essa percentagem caiu para quase metade: o teletrabalho envolveu 19,8%, ou 333.200 pessoas.

As regiões com menor proporção de teletrabalho foram a do Centro (16,7% de um total de 1,03 milhões de trabalhadores) e, nas ilhas, a dos Açores, com 16,4% de 112 mil trabalhadores.

Estas diferenças podem explicar-se pela preponderância da indústria nas regiões Norte e Centro, em comparação com a AML, assente nos serviços, já que na análise por sector laboral verifica-se que o campo e a indústria tiveram menos hipótese de proteger os seus funcionários através do trabalho a partir de casa.

Nota-se também que onde houve menos teletrabalho, como no Norte, houve mais infecções na primeira fase da pandemia, até porque havia mais trabalhadores em casa na AML, onde passou a haver mais casos novos após o desconfinamento.

Sem surpresa, foi nos serviços (que emprega 3,3 milhões de pessoas) que a percentagem de teletrabalho foi mais elevada: 28,5%. Educação, administração pública, consultoria e informação foram os sectores dos serviços com maior número de empregados em teletrabalho.

Por género, verificou-se que houve mais mulheres (25,2%) do que homens (21,1%) em teletrabalho. O que não é necessariamente melhor para as mulheres: Abril foi um mês de estado de emergência e confinamento, e sem aulas, tal como Maio e Junho para os estudantes do ensino básico. O que significa que muitas dessas mulheres acumularam mais do que os homens o trabalho da esfera doméstica com o de ordem profissional.

Por idades, a preponderância foi para a faixa etária dos 35 em diante. E quanto mais alto o nível de escolaridade, maior tendência houve para o teletrabalho. Entre os que têm escolaridade básica (até ao 3.º ciclo), a percentagem de teletrabalho foi de 4,7%, ao passo que entre trabalhadores com ensino superior essa percentagem disparou para os 53,8%.

Noutros inquéritos ao teletrabalho foram recolhidas opiniões que apontavam para maior carga horária de trabalho. Contudo, segundo o INE, “comparando as horas trabalhadas, não há grande diferença entre trabalhar em casa ou fora de casa”. Aliás, quem ficou em casa trabalhou menos.

“Quem não esteve ausente, e trabalhou fora de casa, trabalhou em média 36 horas nessa semana e quem não esteve ausente, e trabalhou a partir de casa, trabalhou 35 horas”, conclui o INE.

Este inquérito apurou ainda que, durante o período de referência, houve 643.800 pessoas que não trabalharam no emprego principal, nem em casa, nem noutro local, 76,3% (491.500) das quais devido à pandemia. Ao PÚBLICO, o INE explicou que estes são trabalhadores ausentes por férias, doença, licença de maternidade/paternidade e também redução ou falta de trabalho por motivos técnicos ou económicos da empresa (que inclui a suspensão temporária do contrato ou layoff).