28.2.11

Governo português tem discurso "irrealista" sobre a situação do país

Por Ana Rita Faria e Luís Villalobos, in Jornal Público

Fátima Barros defende que as medidas restritivas deviam ter sido tomadas mais cedo. A saída da crise é possível, mas será sempre um processo doloroso

Fátima Barros, directora da Católica-Lisbon School of Business and Economics (ex-Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais da Universidade Católica Portuguesa) desde 2004, foi agora reconduzida para um mandato de três anos. Segundo esta responsável, a actual crise levará a uma reestruturação das empresas, um processo regenerador que não está isento de consequências problemáticas, como o aumento do desemprego. Sobre os actuais estudantes, fala de uma mudança de mentalidade, com mais preocupações sociais e despertos para o empreendedorismo.

Um dos problemas a que se assiste hoje é um crescimento do desemprego entre os recém-licenciados. Este fenómeno também engloba a Católica?

Na nossa escola de gestão e economia temos dados do Observatório do Emprego para 2010 que mostram que 83 por cento dos nossos alunos que terminaram o mestrado no ano passado tinham emprego antes de terminar o curso. E ao fim de três meses 100 por cento estavam empregados. Felizmente não sabemos o que é o problema do desemprego para os nossos alunos. O que é importante não é as áreas de onde vêm os alunos mas sim as escolas. Há escolas reputadas onde o nível de desemprego é baixo ou inexistente.

Como é que vê a crescente dificuldade dos recém-licenciados terem emprego?

Estamos perante uma situação que é comum na maior parte dos países desenvolvidos. Creio que tem a ver com a própria estrutura das nossas economias que não têm neste momento capacidade para absorver todos estes jovens. Aumentámos a esperança de vida e o número de anos que as pessoas ficam no mercado de trabalho e não estamos a gerar emprego a uma taxa suficiente para conseguirmos ir buscar os mais jovens. Em mercados como Portugal em que as gerações mais velhas têm emprego garantido, isso dificulta muito a entrada dos mais jovens.

Quais as repercussões disso?

Tenho tentado mostrar aos jovens como o rendimento ao longo da vida está indexado ao número de anos de educação e de como vale a pena investir. Há quem diga: "Por que é que vou estudar e tirar um curso superior se amanhã posso ser caixa de supermercado?". Mas eu considero que um indivíduo que tenha educação e qualificação terá maior probabilidade de encontrar um emprego. As estatísticas mostram que o tempo de desemprego de um qualificado é menor do que o de um não- qualificado.

Mas há o problema do tipo de emprego, que muitas vezes não coincide com formação...

Mas se eu for para caixa de supermercado com um determinado nível de educação, mais facilmente conseguirei progredir. A educação não é só aprendermos utensílios. Fomos treinados para pensar por nós próprios e trabalhar com autonomia. Isso faz de nós indivíduos que vão reagir de forma diferente nas organizações, de forma mais eficiente e organizada. E isso faz com que as pessoas se distingam no mercado de trabalho.

Portugal tem um grande número de licenciados. Será que as qualificações são as certas para o mercado de trabalho actual?

Essa é a pergunta relevante. O nosso sistema educativo massificou-se a partir do 25 de Abril, a qualidade do ensino deteriorou-se. Tivemos professores maus, que não estavam preparados, que foram para essa profissão porque não conseguiram fazer outra coisa na vida. E isso tem reflexo nos alunos. Uma das áreas onde há muitos anos sofremos é na Matemática. Ao longo dos anos, vimos gerações de jovens afastarem-se de todas as áreas que exigiam o ensino da Matemática que, se não for bem ensinada, pode ser uma coisa terrível. Temos em Portugal falta de pessoas na área da tecnologia, na qual precisávamos de investir mais para nos tornarmos uma economia mais competitiva.

Uma das apostas que a Católica tem feito é na área da inovação e empreendedorismo. Sente que há alguma mudança nos estudantes actuais?

Encontramos uma grande diferença em relação às perspectivas dos mesmos jovens há uns anos. Os nossos alunos chegavam à fase de entrar no mercado de trabalho e pensavam: onde é que eu vou ganhar dinheiro mais depressa? O objectivo era uma carreira de sucesso, rápida. Hoje, estes jovens têm preocupações diferentes. Quando entram para a universidade, já há muitos jovens que participaram em programas de voluntariado. E depois todos eles se interessam por este tipo de actividades. Mas há mais sinais. A disciplina de empreendedorismo social tem grande procura. E temos alunos que, à entrada, têm ideia de montar a sua própria empresa. Há uns anos toda a gente queria um emprego numa multinacional, que lhe desse estabilidade e notoriedade. Hoje, o paradigma mudou, toda a gente já percebeu que já não há empregos para a vida.

Então é um misto de reacção e de mudança de mentalidade?

Acho que sim. Muitos destes miúdos já cresceram num país em crise, porque a nossa crise tem dez anos. Já perceberam o risco do emprego e que há esta cultura do empreendedorismo, de as pessoas lançarem as suas próprias empresas porque o tecido empresarial em Portugal não está a crescer e a ter capacidade para albergar todos estes jovens. Na faculdade temos desenvolvido muito a nossa estratégia neste eixo de inovação e empreendedorismo, porque temos um conjunto de docentes que fazem investigação nesta área, em ligação, por exemplo, ao MIT. Por outro lado, estamos conscientes que a situação em que está o país é dramática. A competitividade das empresas é baixíssima e nunca mais voltaremos a poder competir no mercado com baixos salários. Só há uma forma de as empresas ganharem competitividade: inovação.

Como transformar a inovação em negócios?

Vamos criar o Innovation Lab, uma plataforma para discutir interesses comuns relacionados com a inovação. A ideia é fazer uma coisa semelhante à do MIT, pondo as empresas e os académicos a trabalhar em conjunto.

Que empresas?

O objectivo fundamental é trazer empresas que já existem e que são parte financiadora deste Innovation Lab. Parte de uma alteração do paradigma. A inovação era entendida como uma ideia que alguém desenvolvia e tentava levar para o mercado. Hoje está a surgir uma corrente que pensa por que é que há ideias que têm sucesso e outras não. Von Hippel, do MIT, concluiu que a maior parte das ideias que têm sucesso têm origem em utilizadores. Alguém que começou por resolver um problema e encontrou uma solução. Mas é preciso que se perceba que esta solução se pode aplicar a muitas coisas. Muitas vezes o indivíduo que inovou não tem consciência que está ali um potencial enorme. A user innovation é isto: a inovação que tem origem no utilizador e que por isso acaba por ter mais sucesso.

O Governo é o único que ainda mantém uma perspectiva de crescimento para este ano, de 0,2 por cento. O Núcleo de Estudos de Conjuntura da Católica é um dos muitos organismos que prevêem uma recessão. Como vê esta situação?

Ao longo do tempo tem havido esta perspectiva demasiado optimista por parte do Governo. Primeiro não havia crise, e até se subiram os salários da função pública em 2009. Quando recentemente o governador do Banco de Portugal veio dizer que o país já está em recessão, de facto, tudo aponta para isso. Já sabíamos que as medidas restritivas iram ter impacto no crescimento e partíamos de um crescimento zero, portanto, a possibilidade de entrar em recessão era muito grande. O consumo das famílias diminuiu drasticamente. A ameaça do desemprego é uma constante, o corte dos salários também faz com que as pessoas reduzam os seus gastos. E, apesar de as exportações terem aumentado, continuamos numa situação muito difícil, com as taxas de juro a subir.

Disse que o Governo tem tido um discurso optimista... onde é que acaba o discurso optimista e começa o discurso irrealista?

Já entrámos no discurso irrealista há muito tempo. Quando disse demasiado optimista estava a ser politicamente correcta. Há muitos anos que se está a escamotear os problemas e enganar toda a gente, e agora estamos a pagar as consequências. Quando alguém dizia que estávamos a caminho de uma situação muito complicada, o Governo dizia que era um discurso pessimista, mas isso só nos conduziu a uma situação muito pior. Porque em vez de começarmos a tomar as medidas restritivas quando era necessário e, se calhar, evitar este descalabro, fizemos disparates cada vez maiores, avançámos nos projectos de grandes obras públicas, em vez de os termos parado. Eu assinei o primeiro manifesto em 2005, onde pedíamos estudos de custo-benefício. E o aumento dos salários em 2009, ano eleitoral, foi uma medida desonesta.

Considera que a recuperação é possível? Vai ser dolorosa?

Acho que vai ser dolorosa mas os portugueses sempre foram melhores a reagir em dificuldades do que a aproveitar as situações mais favoráveis. Quero acreditar que surjam novos ventos. Os jovens têm um posicionamento diferente. As empresas vão ganhar consciência de que já não vão ser os Governos que as vão sustentar. Isso não é dramático. O que foi mau até agora foi quando sucessivos Governos injectaram muito dinheiro a sustentar empresas más, quando deviam tê-las deixado morrer e usar esse dinheiro para fazer nascer empresas boas. Haverá uma reestruturação que, de outra forma, poderia não haver. Por outro lado, vai aumentar ainda mais o desemprego. Isso vai ser muito doloroso. Temos de dar dignidade a essas pessoas, dando-lhes forma de se ocuparem, até em termos de voluntariado.

Acha que o desemprego se pode tornar um problema social grave?

Acho. E vai ser grave até a prazo. Sou por natureza optimista e creio que vamos encontrar formas de sair desta crise. Mas são formas dolorosas.

E vamos sair sozinhos?

Preferia que saíssemos sozinhos. Não sei se conseguiremos sair sozinhos com este Governo.