24.2.11

"A mais séria crise do Estado dos séculos XX e XXI"

por Maria de Lurdes Vale, in Diário de Notícias

O livro de Grande Investigação do DN, 'O Estado a Que o Estado Chegou', é lançado hoje, às 18.30, no Corte Inglés, e será apresentado pelo presidente do Tribunal de Contas, Guilherme Oliveira Martins.

Presidente da Fundação Manuel dos Santos, responsável pela maior base de dados 'online' sobre Portugal Contemporâneo - a Pordata -, António Barreto conversou com o DN a propósito do lançamento do livro 'O Estado a Que o Estado Chegou' e que resultou de uma investigação publicada no jornal entre os dias 7 e 14 de Janeiro. A percepção que os portugueses têm do Estado deu o mote...

Como analisa esta investigação do DN sobre o Estado?

Foi um trabalho formidável com várias vantagens. A primeira é a do carácter pioneiro. Foi a primeira vez que um órgão de informação, ou qualquer outro, tentou apanhar o Estado ou os seus mais vastos contornos e não foi uma coisa especializada só na política, na economia, nas finanças ou na coisa pública, foi uma coisa muitíssimo mais larga, nunca tinha sido feita assim. Em segundo lugar, o facto de ter sido num jornal diário que não é o que se espera. Os jornais afunilam cada vez mais em coisas muito efémeras, passageiras, têm o mau gosto de ficar muitas vezes pela espuma das coisas... Neste caso, não foi assim. Foi feito um esforço em profundidade, vagaroso, que exigiu, penso eu, enorme investigação, recursos. O terceiro ponto tem que ver com o tema em si. O Estado transformou-se talvez no assunto mais polémico da política e da sociedade portuguesas. Já não se fala de esquerda e de direita como se falava há quase 40 anos, hoje fala-se de a direita ser contra o Estado e querer utilizá-lo de uma maneira e de a esquerda ser a favor do Estado e de querer utilizá-lo de outra. E parece que todos os debates sobre o que é público como a saúde, o emprego, a educação e a Segurança Social devem obrigatoriamente passar sempre por esta dicotomia: supostamente a esquerda quer utilizar o Estado por dentro e a direita quer fazê-lo por fora. Isto é uma espécie de resumo do debate político português que faz com que as pessoas dispensem saber o que é o Estado.

Tem, na realidade, essa noção de que os portugueses não sabem o que é o Estado?

Não, não sabem. O Estado são eles. Volta-se ao velho tique linguístico do antigamente que é do eles são o Estado. Mesmo os políticos profissionais, os deputados, os membros do Governo, os directores-gerais, os presidentes de institutos, as pessoas que profissionalmente trabalham na vida pública, eles próprios utilizam o termo Estado sem qualquer rigor - o Estado são as regras, as multas, as decisões camarárias, monopólios ou regulação das actividades económicas. E as pessoas não distinguem, não sabem. Portanto, o serviço que o DN prestou ao debate público é essencial, agora existem os instrumentos necessários para se saber do que se fala quando se fala do Estado. E de uma forma simples e clara que é normalmente o mais difícil.

Mas passaram quase 37 anos desde o 25 de Abril... É pouco tempo para que os portugueses aprendam a exigir mais transparência e rigor do Estado para o qual contribuem?

Se eu falar com os meus desejos, diria que já passou muito tempo e ainda não conseguimos muito. Se falar com uma visão mais ponderada pela história acho que passou pouco tempo. O hábito político e cultural do português não é o de se dirigir ao Estado, é o de se considerar ele próprio dentro do Estado ou sobre a sua protecção. Isso qualquer historiador explicará melhor do que eu. Mas Portugal fez-se contra... contra os espanhóis, no essencial, e contra as forças centrífugas do nosso território. Fazer um país, fazer Portugal, que era uma manta de retalhos, tinha louros e morenos, pretos e amarelos, que falavam dez ou doze línguas, foi complicado. E isto até finais do século XIX não se dizia. O primeiro a tentar dizê-lo foi talvez o Alexandre Herculano. Depois dele, é preciso consultar o Orlando Ribeiro e o José Matoso para dizer: não senhor, nós vimos de uma manta de retalhos, de farrapos, nós somos essencialmente mestiços.

Mas somos um país com 800 anos!

O Estado português criou a unidade nacional há 800 anos contra Espanha e contra o mundo. Quase não se pode dizer que o Estado português saiu da sociedade, mas foi sim esta sociedade nacional que saiu do Estado. É uma coisa que se mantém muito fortemente na nossa maneira de pensar. As correntes liberais do século XIX, por exemplo, eram politicamente liberais, nalguns casos economicamente liberais, queriam menos proteccionismo e mais livre comércio, mas depois quando faziam política em Portugal estavam associadas ao Estado. A nova aristocracia e a burguesia liberais do século XIX rapidamente se associaram ao Estado e queriam era governar através do Estado. Isto para não falar dos grandes revolucionários e reformadores que a primeira coisa que faziam era apoderar-se do Estado para depois o reformar. Só talvez a partir dos anos 60/70, primeiro com uma ajuda da EFTA, depois com o Mercado Comum e a democracia, começaram a surgir algumas ideias que hoje são infelizmente condenadas - um dos grandes insultos da vida política portuguesa é o de chamar a alguém liberal ou neoliberal -, o que é uma coisa terrível porque o essencial do liberal é a liberdade individual contra os outros e contra o Estado. Se reparar, quando hoje se fala da sociedade civil, nota-se, por exemplo, que os defensores da sociedade civil identificam-na muito com as empresas, com os capitalistas, a burguesia... mas a sociedade civil é muito mais do que isso. Aliás, há 150 anos, os filósofos que cunharam a sociedade civil - como o Hegel - estavam a falar do Estado. Era o Estado organizado fora da Igreja e das forças militares.

E pensar na organização do Estado de outra maneira? Consegue identificar alguém que tenha tido um impulso reformador?

Fez-se muito pouco. Houve indivíduos, um ou outro... Emagrecer o Estado não é o principal desígnio. Há funções que o Estado deveria desempenhar de uma maneira totalmente diferente ou não desempenhar de todo. Tenho para mim que há três ou quatro funções do Estado que não se deve abrir mão delas, como a polícia, a justiça - já se perdeu a moeda - saúde e educação, apesar de nestas duas não ter qualquer dúvida de que o que está feito está errado. Ando com muita atenção ao que se faz na educação nos países escandinavos e nalguns estados americanos em que o Estado continua a fornecer meios financeiros, mas a organização, por exemplo, das escolas é comunitária. Vejam-se a Dinamarca e a Suécia.

Mas, nos países nórdicos, o protestantismo teve um papel determinante...

Pois, o catolicismo é muito importante em Portugal, mas os portugueses são muito fortemente anticlericais. Hei-de fazer um estudo...

O que se passa é que os canais institucionais da luta de classes em Portugal - estou a dizer um palavrão de propósito - passam pelo Estado. Raramente se vê um debate, uma discussão, uma luta, um confronto entre patrões e sindicatos, que é o combate bilateral que devia existir e não há - tem sempre de estar o Estado dentro. Nem os patrões querem estar sozinhos com os trabalhadores, nem vice-versa. Não é que nenhum deles peça a arbitragem - o que ambos querem é captar o Estado para os seus interesses. Fez-se uma revolução em 74/75 que se destinou à liberdade e a primeira grande medida tomada pela revolução foi a da unicidade sindical. A Constituição está recheada de direitos só para trabalhadores, o que é estranho porque a maior parte dos direitos que a Constituição devia consagrar deviam ser os direitos para os cidadãos. Assim, o princípio da cidadania na nossa Constituição quase que perde relativamente aos princípios corporativos de atribuição de direitos.

Assistimos então a uma crise do próprio Estado...

É talvez a mais séria crise do Estado. E o trabalho do DN sai na altura certa porque esta é a mais séria crise do Estado dos séculos XX e XXI. Ou seja, o Estado chegou a tal dimensão - e não falo só na dimensão humana de funcionários, mas também na financeira e, de repente, percebe que do ponto de vista financeiro, por via das ineficiências, do desperdício ou da fraude; ou porque há grupos que conseguem captar um pouco de mais--valia ou do esforço financeiro, que não há proporção nessa dimensão financeira à dimensão institucional, à dimensão humana. Depois há dimensão política e os poderes. Existem quatro dimensões do Estado, e Portugal infelizmente está gordo demais em qualquer das quatro. E repito que as quatro são a humana, institucional, financeira e política - esta última inclui os poderes regulamentares do Estado. O Simplex melhorou muito as coisas, mas a maioria ainda se mantém em estado obsoleto. E o pior é que tudo é considerado normal.

Sim, o cidadão considera quase normal estar horas numa urgência para ser atendido, reclama pouco...

Temos em Portugal um Serviço Nacional de Saúde que eu apoio. Apesar de deficiências, a saúde fez melhor nos últimos 30 anos do que a justiça e a educação. Quando se discute a saúde no Parlamento, discute-se o SNS versus saúde privada. É isto que se discute. Alguma vez se viu a direita ou esquerda, ou os próprios governantes, discutirem porque é que as pessoas ficam horas à espera numa urgência?

Os políticos afastaram-se dos cidadãos, ou foi o contrário?

O horizonte da vida política em Portugal nos últimos anos quando não é semanas ou meses é por um ano ou dois. Não se estuda, nem se prepara nada. Em Inglaterra, na biblioteca do Governo podem-se consultar milhares de trabalhos sobre qualquer assunto, trabalhos que resultaram de estudos a longo prazo sobre qualquer tema ou área da vida. Há uma parte sábia do Estado que nós não temos, que nos falta. O que conhecemos sobre o TGV, a Ota, etc., foi feito em cima da hora... É preciso trabalho sério e público.

No trabalho que o DN publicou é notória uma grande desorientação nas contas públicas. Muitos especialistas defendem a necessidade de partir do zero. Qual é a sua opinião?

Há muitos anos que se fala na necessidade de fazer um orçamento zero. É trabalhoso, mas valia a pena avançar gradualmente. Podia-se fazer nos primeiros dois ou três anos em 100 administrações, 50 câmaras, e três ou quatro ministérios. Fazê-lo aos poucos. Nas repartições públicas ainda existem os orçamentos verdadeiros e os martelados... acho incrível que exista o martelado.

Uma das minhas maiores amarguras é verificar que em Portugal há poucas oportunidades fora do Estado. Quem quer fazer uma qualquer actividade produtiva, ter clientes, ter mercado ou o que quer que seja, fora do Estado é difícil. Desde sempre. Os grandes grupos económicos, partidos, corporações, perceberam que para desenvolver as suas vidas fora do Estado, a primeira coisa a fazer é ter influência dentro do Estado, no mínimo, porque, no máximo, o que pretendem é capturar o Estado.