Andreia Sanches, in Público on-line
É, para já, apenas um regime provisório de visitas à casa da progenitora. E mais uma etapa num longo processo que já levou Portugal a ser condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
12 de Junho de 2012: a polícia cercou o prédio de Liliana Melo, em Mem Martins. Tinha um mandado para cumprir: retirar-lhe as crianças. E, desde então, os filhos vivem longe, seis dos quais repartidos por três instituições de acolhimento. O processo judicial que se arrastou desde então, recurso após recurso, impediu a adopção dos menores por outras famílias. E, há menos de dois meses, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) deu razão a Liliana, declarando nulas todas as decisões tomadas no âmbito deste caso. Agora, o tribunal de Sintra determinou que as crianças podem voltar a ver a mãe, em casa dela. No final de cada visita, regressam às instituições. Pelo menos por agora.
Esta é mais uma etapa de um longo e mediático processo em torno da cabo-verdiana que há mais de 20 anos vive em Portugal e a quem chegou a ser pedido pelos serviços sociais que provasse que estava a ser acompanhada pelo hospital, tendo em vista a laqueação de trompas, algo que sempre se recusou a fazer. O processo da família Melo já custou, de resto, ao Estado português uma condenação no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que, em Fevereiro passado, considerou que a colocação das crianças em instituições “não foi apropriada”, tendo em conta “a ausência de condutas violentas [na família], a existência de fortes laços afectivos e o falhanço dos serviços sociais em mitigar a privação material vivida pela senhora Soares de Melo”. O Estado não recorreu.
Questionada pelo PÚBLICO, Rosa Vasconcelos, a juíza presidente do tribunal da Comarca de Lisboa Oeste, que inclui o município de Sintra, faz agora saber, por email, que o processo de Liliana Melo “desceu do Supremo Tribunal de Justiça, a título definitivo, em 6 de Junho de 2016” e que “a 30 de Junho de 2016 foi proferida decisão provisória autorizando o convívio da mãe com os menores, nalguns dos casos, na residência desta”.
Depois da audição da mãe, dos técnicos das instituições de acolhimento, bem como da Equipa de Crianças e Jovens de Sintra, que apoia o tribunal, “será estabelecido o regime tendencialmente definitivo que melhor se ajustar à situação”, diz ainda Rosa Vasconcelos.
A mais nova das crianças tem hoje quatro anos, o mais velho vai fazer 12. A instituição onde, desde os seis meses de vida, vive a mais nova já fez saber que a menina se encontra numa situação de “perigo emocional” por não estar integrada numa família, biológica ou outra.
Depois de todo o sofrimento que este processo acarretou para as crianças congratulamo-nos que lhes seja dada a oportunidade de conviver num espaço de liberdade com a mãe, e esperamos que se criem também condições para esse convívio entre irmãos.
Maria Clotilde de Almeida
Pode não haver novo julgamento
Há uns meses, o Tribunal Constitucional declarou que uma norma da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada em 1999, e que vigorava em 2012, quando Liliana Melo foi julgada, era inconstitucional. Isto porque permitia que em processos deste tipo não fosse obrigatória “a constituição de advogado aos progenitores das crianças ou jovens”. Em 2015, a lei mudou e a obrigação de representação por advogado passou a estar contemplada sempre que há a possibilidade de retirada de menores.
Após esta decisão do Constitucional, o Supremo declarou nulo o processo de Liliana, porque ela não estava, de facto, representada por advogado em 2012. E partiu-se do pressuposto que haveria uma repetição de julgamento. Mas pode não ser assim. Diz Rosa Vasconcelos: “A decisão a tomar [no processo de Liliana Melo] pode ser resultado de um acordo ou de um julgamento. No presente, não é ainda possível avançar qual das vias a seguir.”
Questionada sobre este ponto, uma das advogadas que representa pro bono Liliana Melo, Maria Clotilde de Almeida, diz ao PÚBLICO que não se quer pronunciar, já que não tem qualquer informação do tribunal. Já sobre a possibilidade que agora se abre de as crianças poderem visitar a mãe em casa dela, diz que se trata de algo “fundamental”.
“Só gostaria que o tempo da Justiça fosse outro”, afirma Maria Clotilde de Almeida. “Mas depois de todo o sofrimento que este processo acarretou para as crianças congratulamo-nos que lhes seja dada a oportunidade de conviver num espaço de liberdade com a mãe, e esperamos que se criem também condições para esse convívio entre irmãos.”
Numa primeira fase, as visitas dos menores à mãe serão alternadas — uns dias uns, outros dias outros — pelo que os irmãos não estarão todos juntos com ela.
Mãe visita filhos há mais de um ano
Entre Junho de 2102 e início de 2015 Liliana Melo esteve impedida de ver os filhos, como acontece em todos os casos de retirada das crianças aos pais tendo em vista a adopção. Em Fevereiro de 2015, o Tribunal Europeu considerou que o Estado português tinha de criar condições para que a mãe pudesse visitar as crianças nas instituições e também para que os vários irmãos separados pudessem contactar uns com os outros — até que o processo judicial tivesse um desfecho. Liliana Melo passou então a visitar regularmente os filhos nas diferentes instituições — com uma avaliação positiva dos técnicos que a acompanham.
Liliana Melo tem 10 filhos. A mais velha já estava autonomizada quando em 2012 o tribunal decidiu intervir pela primeira vez. Outras duas, de 16 e dez anos, puderam ficar a viver com Liliana. Em relação aos restantes sete entendeu o tribunal que estavam em perigo e deviam ser entregues para adopção. Um acabou por ficar a viver com outros familiares. Seis, os mais novos, foram para instituições.
No acórdão em que isso é decidido enumeram-se os vários problemas encontrados desde que em 2007 a família passara a receber a atenção da Comissão de Protecção de Crianças: Liliana não tinha emprego na altura; havia falta de higiene; vacinas em atraso; nem todas as crianças andavam no infantário; os miúdos tomavam conta uns dos outros, desde muito pequenos; Liliana não vigiava as suas gravidezes; uma das meninas engravidara aos 13 anos; a alimentação era garantida pelo Banco Alimentar; os progenitores não se inscreviam no Rendimento Social de Inserção e M’Baba Djabula, o marido guineense, era casado, no âmbito da religião muçulmana, com mais duas mulheres, uma na Amadora, outra na Guiné e só ia a casa de Liliana duas vezes por semana.
Liliana sempre alegou que passara de facto uma fase de maior desorganização, mas que entretanto arranjara emprego — ainda hoje tem — e organizara a casa, pelo que não havia nenhuma razão para lhe tirarem os filhos.
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem acabou por apontar uma série de falhas no processo e considerou que as decisões da Justiça foram contrárias "aos melhores interesses” dos irmãos. Recomendou às autoridades do país que reexaminassem o caso para que “o superior interesse das crianças” fosse respeitado. E sublinhou ainda que "o recurso à esterilização nunca pode ser uma condição para [alguém] conservar os seus direitos parentais".