Por Ana Rita Faria, in Jornal Público
O FMI e as agências de rating andam em cima dos EUA, do Japão e do Reino Unido. A palavra de ordem é reduzir os défices e as dívidas públicas gigantes
Nos últimos meses, a crise da dívida pública na zona euro tem dominado as atenções mundiais. A Grécia e a Irlanda tiveram mesmo de pedir ajuda à União Europeia (UE) e ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e os receios de que outros países sigam o mesmo caminho - como Portugal e Espanha - continuam no ar. Mas terá sido a zona euro apenas uma entrada apetitosa de um faustoso jantar? Será que os pratos principais ainda estão a ser preparados e trazem consigo algumas das maiores economias mundiais, como o Japão, os Estados Unidos e o Reino Unido? O que até há pouco tempo parecia completamente improvável deixou de o ser.
No dia 25 de Janeiro, chegou o primeiro grande aviso, pela mão do próprio FMI. Numa actualização ao seu relatório sobre a estabilidade financeira mundial, a organização avisava que os EUA e o Japão poderiam começar a ter problemas de dívida. Os EUA estão atrasados em definir "uma estratégia credível de consolidação orçamental de médio prazo" e o Japão tem de fazer mais para "reduzir os elevados níveis de dívida". Caso contrário, os juros que os investidores exigem para comprar obrigações do Tesouro destes países poderão começar a aumentar, "o que teria um efeito disruptivo nos mercados financeiros internacionais e na economia mundial".
"Quase todos os países desenvolvidos têm de controlar as despesas de reforma e saúde para reequilibrar as contas públicas", diz ao PÚBLICO o economista Sérgio Rebelo, que é professor na Kellogg School of Management, nos EUA. Mas se antes se pensava que teriam duas décadas para o fazer, agora, "com a crise financeira, a situação agravou-se em todo o mundo e tornou-se mais urgente fazer ajustamentos orçamentais", acrescenta o antigo consultor do Banco Mundial e do FMI, justificando assim a crescente vigilância dos mercados em relação à dívida pública.
Em entrevista ao PÚBLICO por email, Ricardo Reis, professor na Universidade de Columbia, admite mesmo que há a possibilidade de contágio da crise da dívida europeia a grandes economias como o Japão ou os EUA. Mas avisa: "Não estamos todos no mesmo saco" e os problemas de Portugal "são muito piores".
Agências voltam à acção
Outro sinal de que os mercados passaram a estar mais atentos às economias mais desenvolvidas veio das agências de rating. A Moody"s avisou os EUA de que a possibilidade de vir a colocar a sua notação financeira com um outlook negativo está a aumentar. Isto tornaria mais provável um corte do seu rating triplo A, o nível máximo, só atribuído a países com grande capacidade de respeitar os seus compromissos, como os EUA, o Reino Unido, a Alemanha ou a França. No caso do Japão, o rating já não está no nível máximo há alguns anos mas, no mês passado, a Standard & Poor"s (S&P) voltou a cortá-lo para AA-, o quarto nível mais alto, e apenas uma nota abaixo das da Moody"s e da Fitch.
O economista Ricardo Reis desvaloriza a acção das agências, dizendo que as suas avaliações "valem muito pouco", pois são mais uma reacção ao mercado do que uma antecipação. Já para José Castro Caldas, investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, trata-se de uma questão de coerência. "As agências de rating sempre fecharam os olhos às grandes economias" e, se agora estão a agir sobre elas, é "por uma questão de coerência e defesa de credibilidade, e não tanto por uma percepção do aumento do risco", defende.
Mas há quem tenha perspectivas mais radicais. Para Kevin Hassett, director de estudos de política económica do American Enterprise Institute, as agências deveriam "agir de forma responsável" e reduzir já o rating dos EUA, sob pena de conduzirem os mercados a uma nova crise. "Se os EUA não fizerem qualquer progresso orçamental, bastarão seis anos para atingir um nível de dívida de 135 por cento do PIB, o mesmo que o Japão tinha em 2000, antes de a S&P lhe descer o rating máximo de AAA", escrevia na semana passada na Bloomberg o antigo conselheiro de John McCain.
Três problemas diferentes
Mas, afinal, há ou não razões para as agências de rating e para o próprio FMI estarem a olhar para grandes economias como o Japão, os EUA e o Reino Unido? Segundo Ricardo Reis, os três países "têm problemas de finanças públicas que têm de resolver", mas em níveis diferentes.
Começando pela maior economia mundial, "o défice parece imparável e há um Governo dividido entre o Presidente e o Congresso, sendo que nenhum dos dois está disposto a colaborar nalguma solução conjunta para o problema das finanças públicas", avalia o professor da Universidade de Columbia. Nas eleições intercalares de Novembro, o Partido Democrata de Barack Obama perdeu a maioria na Câmara dos Representantes, embora mantenha o controlo do Senado. A pressão dos republicanos para uma redução do défice é cada vez maior, mas o Governo ainda não abandonou os estímulos à economia, receoso de que uma onda de austeridade comprometa a recuperação.
No Reino Unido, passa-se exactamente o contrário. O Governo britânico pôs em marcha um ambicioso plano de austeridade, destinado a cortar cerca de 95 mil milhões de euros até 2015. Isto levou as agências de rating a não retirarem o triplo A ao país, embora admitam que a consolidação orçamental pode ter um impacto negativo no crescimento. Para José Castro Caldas, este é o maior risco, não só no Reino Unido, mas também nos EUA. "Só nos faltava que a economia norte-americana seguisse o caminho [de austeridade] que a Europa está a seguir. Tudo junto, iria produzir um efeito ainda mais recessivo na economia mundial, com ricochete nos países emergentes", concluiu.
Mas o Reino Unido enfrenta ainda o problema do sistema bancário britânico. "Teme-se que o Governo britânico tenha um comportamento semelhante ao da Irlanda, apoiando o sistema bancário em qualquer circunstância e, assim, garantindo com dívida pública a enorme dívida privada do sistema financeiro", salienta Ricardo Reis.
Já o Japão é um caso à parte. Ao contrário dos países periféricos do euro, e mesmo dos EUA e do Reino Unido, o Japão é inteiramente auto-financiável graças à elevada taxa de poupança interna. A dívida pública, que ultrapassa os 200 por cento do PIB, é detida em 95 por cento por nacionais e o país tem reservas de ouro e moeda estrangeira superiores a um bilião de euros, só ultrapassadas pelas da China. Além disso, o défice do Governo não foi alimentado tanto pelos gastos do Governo, mas pela forte erosão da base contributiva devido a décadas de deflação.
O ministro da Economia, Kaoru Yosano, admitiu ao Financial Times que o Japão está "num ponto crítico", em que pode perder a confiança dos investidores se os políticos não chegarem a acordo quanto à necessidade de reduzir a dívida e o défice. "Vivemos com o pesadelo de que, um dia, as taxas de juro venham a subir", admitiu.
Até agora, os custos da dívida japonesa e norte-americana têm-se mantido baixos nos mercados, à semelhança do que foi habitual em crises anteriores. Resta saber até quando a imagem de grandes potências mundiais será suficiente para que os mercados continuem a desvalorizar défices e dívidas que, em muitos casos, são piores do que os dos chamados países periféricos do euro.