Tiago Rodrigues Alves, in Jornal de Notícias
Conversas com Norte, entre José Leite Pereira, director do JN, D. Manuel Clemente, bispo do Porto, e Alberto Castro, economista.
José Leite Pereira (JLP): Inevitavelmente temos de falar da crise. Eu pedia-lhes que tentássemos dar um pouco a volta e que procurássemos apontar qualquer coisa de positivo a que nos agarrar.
D. Manuel Clemente (DMC): O facto de a crise ser política pode ser positivo, desde que seja uma oportunidade de cidadania. Parece-me que há mais gente a intervir, quer de uma maneira multitudinária, como nas manifestações recentes e até inéditas, quer no espaço público, apresentando propostas, às vezes em cima do joelho, outras vezes mais reflectidas. Vejo por todo o lado pronunciamentos que não são apenas de desespero, mas pronunciamentos com alternativas, com hipóteses de seguimento. Isso é positivo. Se este momento tão difícil, complexo e até perplexo for ocasião para mais participação e inscrição na realidade política e social, isso é bom porque não há democracia de outra forma e esta crise não pode ter apenas protagonistas singulares. Agora é com todos nós. Depois, quando vamos às várias realidades sociais, comunitárias, escolares, empresariais ou até outros grupos informais, reparamos que há muita gente que não desiste. Alguns são obrigados a desistir, pelo menos no imediato, porque não têm viabilidade. Mas, muitos não desistem e procuram caminhos. Se quando vencermos isto, como vamos vencer, estivermos um pouco mais à frente em termos de cidadania activa e de participação implicada, é um ganho.
JLP: Quando fala de cidadania activa isso quer dizer também que temos de mudar a nossa forma de participação na vida pública? Isto é, os partidos, por si só, respondem àquilo que necessitamos?
DMC: Os partidos têm um papel muito importante se forem pedagógicos. Isto é, se cada um deles for o rosto e o exercício de uma opinião acerca da vida social e política. Agora, não podem de maneira alguma resumir a cidadania, senão eles próprios acabam por perder muito do seu sentido. Quando a urgência é a que temos actualmente, não há alibi nem recuo, toda a gente é forçada a participar porque é da sua vida que se trata, da sua e dos seus.
JLP: Professor, o que salientaria de positivo neste cenário?
Alberto Castro (AC): Além do que já foi referido, salientaria, desde logo, o prémio Pritzker de Souto Moura que demonstra a valia da arquitectura portuguesa e o seu reconhecimento internacional. Depois, sublinharia a dinâmica das exportações. Por exemplo, traduzida no aumento da produção da Autoeuropa e em mais 300 trabalhadores empregados. E também em muito do nosso tecido empresarial aqui no Norte. Esta pode ser uma oportunidade para, através das exportações, o Norte sarar as suas feridas e passar a desempenhar o papel de motor de desenvolvimento que sempre tem desempenhado em saídas de crise. Até agora tem sido o motor de afundamento.
JLP: Isso não será o seu orgulho nortenho a falar?
AC: É uma questão de análise empírica. Se formos ao calçado, ao vestuário, ao têxtil, à metalomecânica, encontramos uma dinâmica boa. Há empresas a ganharem encomendas, a produzirem mais e, nalguns casos, a terem dificuldades em preencher os seus quadros. É verdade que não se remunera muito bem nessas indústrias, mas elas têm uma concorrência feroz e, neste momento, não podemos estar com esquisitices e confundir desejo com realidade. Gostaríamos todos de ter uma situação completamente diferente daquela que temos, mas temos de partir do concreto.
DMC: Gostava de sublinhar este último ponto, da rectificação das expectativas. Elas estavam muito altas e parecia que ia ser sempre mais e melhor. Mas, muita gente lembrava que não podíamos descolar aqui na Europa sem pensar no resto do mundo, que é quase tudo. Portanto, essas expectativas teriam que ser encaradas de uma maneira mais solidária e conexa com o que acontecia noutras regiões. Agora, é impossível mantê-las.
JLP: Quando fala de expectativas está a referir-se à parte social?
DMC: Àquilo que se chamava de qualidade de vida antes desta necessária rectificção, porque, nalguns casos, mais do que qualidade de vida, falava-se em quantidade de vida, quantidade em extensão e em preenchimento imediato de objectos, de oportunidades, etc. Esta crise leva-nos a rectificar estas expectativas e atender para outros aspectos, esses sim possíveis e urgentes. No campo da economia social, por exemplo. Há quantos anos vem sendo dito que devemos ter em atenção o campo e o mar que são os eternos esquecidos? Isso também são oportunidades. E, tal como o professor, também verifico em muitos núcleos empresariais do Norte expansão, criatividade, inovação, conquista de mercados e às vezes o topo em termos mundiais.
JLP: Esta semana num debate televisivo, alguém dizia que nunca os trabalhadores viram tão atingidos os seus direitos e que estão postas em causa coisas como as férias ou apoios sociais. Podemos continuar a pensar em ter férias pagas, ter a assistência de saúde que tínhamos ou tudo isso tem de ser questionado pela crise que nos caiu em cima?
AC: Como disse o D. Manuel, a certa altura criaram-se expectativas que têm de ser rectificadas. Qualquer um de nós sabe que só pode ter acesso a certas mordomias, bens ou serviços, se as puder pagar ou vir a pagar. Precisa de ter um rendimento ou uma expectativa fundada de vir a ter mais rendimento. O país, a certa altura, criou essa expectativa e, eventualmente, iludiu alguns dos que nos emprestavam dinheiro. Como também acontece com os bancos e os particulares. Nós temos, como dizem os brasileiros, que cair na real. Há um conjunto de direitos que são desejaveis, mas aos quais provalmente temos de dimuir alguma coisa, mas sem os pôr definitivamente em causa.
JLP: O Estado tem aí um papel fundamental.
AC: Certamente. E o Estado tem de salvaguardar mínimos, para não haver um recuo de direitos civilizacionais. Mas há muitos países muito mais desenvolvidos que nós onde não existem coisas que dizemos que são direitos fundamentais. Por exemplo, nos EUA não existe o 13.º ou o 14.º mês e, em muitos casos, as férias nem sequer são remuneradas. Não quer dizer que devamos ir para esse nível. Por exemplo, tenho ouvido patrões dizer que estariam disponíveis para integrar o 13º mês no vencimento regular, permitindo que as pessoas não tivessem picos de rendimento e que pudessem solver dívidas de uma forma mais consentânea com o ritmo da própria divida. Não me parece que aí haja perda de direitos. Há um ponto importante: temos de conciliar esta austeridade com o crescimento. Tem de haver uma economia muito mais solidária, mas tenho visto poucos ricos a assumirem-se como protagonistas deste processo. Vejo-os como críticos do Estado, mas pela negativa. Aí há um desafio que importava ser lançado e respondido.
DMC: Eu sublinhava essa referência ao que o Estado pode e já não pode fazer. Em Portugal, pelo menos desde o século XIX, o Estado assume-se como o empregador universal, o subempregador ou pelo menos muito ligado à garantia de postos de trabalho. O funcionalismo público cresceu pletoricamente no século XIX e daí para o século XX foi tomando conta de muitas coisas que estavam na espontaneidade social. Hoje, o Estado mostra uma grande fragilidade - não só em Portugal mas um pouco por todo o lado - até porque muitas destas decisões passaram das entidades políticas para entidades de tipo económico e claramente internacionais. A médio prazo pode ser positivo se o Estado se assumir cada vez mais em termos subsidiários como aquele que promove e apoia a espontaneidade social e corrige e combate aquilo onde ela não vai, mas que não quer fazer tudo como administração imediata da sociedade. Há uma série de oportunidades que a crise espoleta que não são totalmente negativas se significarem mais solidariedade, rectificação das expectativas, mais empenho social e sermos todos a aparticipar.
JLP: É uma aprendizagem que todos temos de fazer. Aprender a viver com menos e, sobretudo, de uma forma diferente. Os partidos políticos também estarão a aprender alguma coisa? Pode começar uma reaprendizagem da linguagem dos políticos e da própria política?
AC: Confesso que ainda tenho uma remota esperança que o persidente possa decidir não ser o oficiante da missa de corpo presente. Foi colocado perante uma situação complicada, mas pode devolver a complicação aos partidos. Pode não convocar eleições e dizer: vocês tem 15 dias para se entender.
JLP: Mas ele nunca fez isso.
AC: Há sempre uma primeira vez para tudo. Hoje em dia, a responsabilidade de todos é pensar e tentar praticar as coisas de forma dirente. Os que podem, ser um bocadinho mais solidários, ser mais responsáveis perante o ambiente, dar exemplos de frugalidade e mostrar que é possível viver de uma forma diferente. O presidente é uma referência. Podia dar um exemplo moral e, mesmo que tivesse de acabar por convocar eleições, dar um sinal ao povo português. Os partidos querem as eleições, as pessoas não querem as eleições.
JLP: Sou capaz de concordar, mas acho que isso só vai suceder depois das eleições.
AC: A minha dúvida é: se não estaremos a assistir a uma aceleração do tempo, sobretudo deste tempo de crise, de pressão internacional que não é facil de compaginar com dois meses até às eleições. Se pudéssemos resolver isto à moda inglesa: num mês eleições feitas e o governo nomeado... Podemos correr o risco de ter uma situação complicadíssima a nível financeiro para a qual é preciso haver uma solução.
As Conversas com Norte regressam a 7 de Abril com Alexandre Quintanilha e Alberto Castro