in Diário de Notícias
Apesar da carga fiscal, Vieira da Silva, ministro da Segurança Social, reitera que a página da austeridade está a ser virada
Fez uma profunda reforma na Segurança Social em 2007, mas confessa-se pouco adepto de mudanças radicais e profundas que procuram resolver todos os problemas. Prefere antes uma gestão reformista e é aqui que inclui o novo modelo de pensões antecipadas, que está a preparar, e a busca por fontes de receita alternativas da Segurança Social. Não se revê na tese de que este governo está a reverter tudo o que vem do passado, assinalando que a diferença está nos objetivos e nos compromissos. "Não mudámos nada apenas por mudar", garante.
Reconhece, contudo, que nem todos os compromissos estão a avançar como inicialmente previsto. Lamenta, por isso, que não tenha sido possível avançar já neste ano com a descida da taxa contributiva dos que ganham até 600 euros. A medida, garante, não está esquecida e até poderá ser retomada na discussão do Orçamento do Estado (OE) de 2016, se houver capacidade e imaginação suficientes para a trocar por uma outra, sem beliscar as metas orçamentais. Vieira da Silva, que fez ontem 63 anos, sabe que deu mais um passo na direção da idade legal da reforma, mas não se vê a deixar a vida ativa.
Este Orçamento do Estado agrava os impostos indiretos, revê o crescimento em baixa e deixa cair algumas medidas de devolução de rendimento. Pode falar-se no virar da página da austeridade?
Sinceramente, acho que sim. Se compararmos com a alternativa que existia a este Orçamento para 2016 - que era a da antiga coligação do PSD com o CDS -, previa-se um corte de 600 milhões nas pensões. As pessoas agora já estão esquecidas, mas no Programa de Estabilidade que em 2015 foi enviado para Bruxelas previa-se que em 2016 fosse necessário um corte nas pensões ou uma medida semelhante daquele valor.
O programa do PS também falava numa poupança de 1020 milhões de euros em prestações sociais.
Isso seria em quatro anos. Não tem que ver com isto. A proposta da coligação de direita não era de poupanças, mas de um corte nas pensões em pagamento ou de um aumento de impostos que, articulado com esse corte, desse um valor de 600 milhões de euros. Ora, quando existe um Orçamento que não só não faz isso como repõe parte das pensões que tinham sido cortadas, que repõe progressivamente, durante um ano, os salários da administração pública, que eleva todos os valores das prestações sociais de combate à pobreza e quando há um aumento do salário mínimo, podemos dizer que estamos perante um Orçamento de viragem.
Mas não se pode dizer que a austeridade acabou...
Podemos dizer que o modelo de política económica da austeridade foi substituído por uma outra política económica. Se me perguntar se é uma política económica claramente expansionista, de grande estímulo à economia pública e privada, ao investimento, obviamente que as condições não nos permitem fazer esse tipo de opção. É um Orçamento que tem uma dose de prudência significativa. É uma verdade, julgo eu, indiscutível, que as opções deste Orçamento foram, em primeiro lugar, de cumprir compromissos. E quando a conjuntura exigiu que tivéssemos algumas medidas no sentido do aumento de impostos, a opção foi a de escolher os que têm menos impacto na vida das famílias e que têm um impacto menos recessivo do que os tradicionais cortes nos salários e nas pensões, aumento do IRS, aumento do IVA. Se isto não é um Orçamento de mudança, é difícil compreender o que o é. Mas é óbvio que não é uma rutura radical num outro caminho.
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Isso era mais o cenário do esboço que foi entregue em Bruxelas?
Não, o esboço era mais ambicioso do ponto de vista da retoma económica e cumpria igualmente os grandes constrangimentos macroeconómicos que são impostos à economia portuguesa e ao Estado por fazermos parte da União Europeia e da zona euro, e queremos continuar a fazer. Cumpria-os, mas as negociações são como são e foi negociado que esse cumprimento tivesse um grau de segurança mais forte, ou seja, que o défice estivesse mais longe dos 3% do que estava no esboço. Isso tem, obviamente, consequências no crescimento um pouco mais contido do que aquilo que era a nossa ambição.
Os mercados têm reagido mal a este caminho de reversão. O ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, não se tem poupado em alertas de que é preciso manter o rumo anterior. Como é que vão conseguir agradar aos parceiros europeus e aos aliados internos que viabilizaram este governo?
Há duas dimensões fundamentais: cumprir compromissos e garantir resultados. Quando se fala do sucesso do caminho anterior, esse sucesso só pode ser entendido quando se está a olhar apenas para uma parte da fotografia. Um país que sofreu, nos últimos quatro anos, o abandono de centenas de milhares de cidadãos para outros países não pode ser considerado um país de sucesso. É certo que houve variáveis na economia portuguesa que melhoraram, sem dúvida, mas a que custo, para a sociedade portuguesa, que viu agravar-se o nível de conflito? Aquilo que tem enervado algumas pessoas ou que tem tornado menos calma alguma reação interna é que havia muita gente que duvidava de que fosse possível ter o acordo da União Europeia para um caminho que é efetivamente diferente. Obviamente que todos estamos preocupados com a situação que se vive. Mas é claramente muito excessivo associar os problemas que estão a assolar a Europa, nomeadamente no setor financeiro, às mudanças de governo. Não temos assim tanta importância no mundo como se calhar gostaríamos de ter.
Não é isso que diz o ministro Schäuble...
Quando existe um agravamento da conjuntura internacional - e o ministro Schäuble também tem problemas em casa e está a lidar com eles -, quem tem uma situação mais frágil no plano internacional corre mais riscos se esses problemas se fizerem sentir de forma mais intensa. No caso português isso é uma possibilidade. Agora, também temos de os enquadrar devidamente e não sermos nós a fazer crescer de forma artificial os problemas que existem. Estamos preocupados com o crescimento da dívida, mas também temos de levar em linha de conta o contexto em que isso acontece. Estou a falar, naturalmente, dos juros. Espero que uma resposta sólida da União Europeia (UE) aos problemas e às instabilidades que têm atravessado de forma mais intensa nos últimos dias a UE possa contribuir para rapidamente repor uma situação de maior normalidade.
Não é um caminho arriscado, tendo em conta a reação dos mercados e de alguns parceiros europeus?
Eu podia responder-lhe com uma pergunta: não acha que o caminho que seguimos foi arriscado quando ele teve as consequências para o país de perda de mais de 10% do rendimento disponível das famílias, de perda de quase meio milhão de postos de trabalho, de centenas de milhares de pessoas que abandonaram o país? Esse é um risco tremendo para o nosso presente e, principalmente, para o nosso futuro. Era imperioso que fosse seguido um caminho diferente, mantendo um grande rigor. Se olharmos com atenção o Orçamento e as políticas económicas que o governo apoiado pelo Partido Socialista e por outras forças políticas tem apresentado aos portugueses, vemos que não é um programa radical nem aventureiro. É um programa que em muitas dimensões é, até, por alguns considerado muito prudente no cenário macroeconómico. Portanto, não vejo que estejamos a percorrer um caminho de aventura, estamos a fazer aquilo que é preciso ser feito.
Que avaliação é que faz do comportamento dos parceiros que viabilizaram este governo?
Só posso dizer que faço uma avaliação positiva. Todos sabemos que este não é um típico governo de coligação: é um governo do Partido Socialista que teve o apoio parlamentar do Bloco de Esquerda, do Partido Comunista Português e do Partido Ecologista "Os Verdes" e julgo que todos sabemos que há diferenças entre estas famílias políticas em várias questões. Mas, no essencial, têm mostrado uma sintonia muito significativa, e os acordos celebrados têm vindo a ser cumpridos. Uns gostariam eventualmente que fosse de uma forma mais rápida ou mais acentuada ou mais profunda. Julgo que não há razões para, hoje, estarmos menos otimistas do que estávamos no momento em que foi iniciado este processo. Bem pelo contrário.
Fala-se muito do risco de colapso da Segurança Social. O que é que mudou desde a reforma de 2007, em que nos asseguraram que a sustentabilidade do sistema estava mais ou menos garantida até 2050?
Na Segurança Social não mudou muito. Mudou foi na envolvente da Segurança Social, que é um sistema dirigido às pessoas e que depende da economia. Tínhamos, no pico do emprego em Portugal, qualquer coisa como 5 100 000 pessoas a trabalhar. Hoje, temos pouco mais de 4 500 000. Em qualquer economia, uma queda desta dimensão, quase 10% da população empregada, com salários mais baixos em muitos casos, tem efeitos que, com empresas com mais dificuldade em assegurar os seus compromissos, são muito poderosos na Segurança Social.
E foi para controlar danos maiores que o governo decidiu deixar cair a descida da taxa social única (TSU) das empresas e dos trabalhadores?
São duas situações diferentes. A baixa das contribuições nas empresas estava integrada numa alteração qualitativa e também quantitativa na forma de financiamento da Segurança Social em que a baixa da TSU seria compensada por receitas de impostos, nomeadamente do IRC. Não se pretendia ter mais ou menos receita, mas sim garantir mais estabilidade na receita diversificando as suas fontes, para estas não estarem apenas dependentes dos salários. Essa mudança fazia parte do programa eleitoral do Partido Socialista, mas foi colocada num segundo plano. É algo que discutiremos na concertação social. Já a descida da TSU, do lado dos trabalhadores, era um incentivo ao rendimento dos trabalhadores com salários mais baixos. Infelizmente, não foi possível neste Orçamento concretizar essa baixa, em virtude da conjuntura negocial que tivemos de defrontar. O programa do governo é para quatro anos e eu gostaria que, por exemplo, em meados deste ano se dessem passos nesse sentido. Estou confiante de que seja possível já em 2017 voltar a colocar essa medida em cima da mesa.
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Ao adiá-la para 2017 não tem nada para oferecer às pessoas que estão naquela franja entre o salário mínimo e os 600 euros. Estas não terão qualquer reposição de rendimentos neste ano.
A grande maioria dos salários mais baixos em Portugal, mais de 85% deles, teve um crescimento significativo com o aumento do salário mínimo. Há de facto uma franja significativa que não beneficiou desse aumento - mas há um efeito de arrastamento muitas vezes nas empresas e iremos acompanhar isso - e que também não beneficiou das diminuições da sobretaxa ou da reposição dos cortes salariais na administração pública. Iremos trabalhar para encontrar soluções, porque obviamente há algumas dimensões de apoio a essas famílias. Agora, identificou uma consequência negativa de termos tido a necessidade de adiar esta medida política e é também por isso que o cenário final não é exatamente igual ao cenário de partida. Mas, ainda assim, o conjunto de instrumentos que foram mobilizados para acrescer o rendimento das famílias faz que, pela primeira vez desde há cinco anos, haja o primeiro crescimento neste rendimento disponível. Ele caiu mais de 10% e neste ano vai crescer 2,5%, o que quer dizer que as famílias vão ter, em geral, um pouco mais de rendimento e que há uma viragem indiscutível.
Os deputados do PS querem recuperar esta medida da TSU para a discussão do OE. Há alguma folga para a acomodar ou está completamente fora de questão?
Os deputados são os responsáveis pela aprovação do Orçamento e respeito muito o seu poder. Agora, também existe um compromisso dos deputados, nomeadamente do Partido Socialista, relativamente às matérias orçamentais. Se existe margem de manobra ou não, isso depende da discussão. Eu acredito sempre em soluções imaginativas, e se houver alguém que tiver a capacidade, sem pôr em causa os grandes compromissos em matéria de equilíbrio orçamental, de encontrar soluções para este ou aquele problema, que venham essas soluções. Mas não é fácil. Se fosse, não tínhamos adiado a medida.
Disse que não foi a Segurança Social que mudou de 2007 para cá, mas a envolvente económica. Vai ser necessária uma nova reforma?
Prefiro pensar na Segurança Social como uma área em que é preciso mais uma gestão reformista do que grandes acontecimentos de reforma. Não sou muito adepto dessa ideia de reformas estruturais profundas que resolvem todos os problemas. Raramente isso acontece e, quando se tenta, por vezes os resultados são muito menos produtivos do que os de uma gestão ambiciosa, permanentemente reformista. Nesse sentido, julgo que há áreas que têm de ser melhoradas e aprofundadas. Principalmente, tem de se fazer de novo uma caracterização rigorosa da situação do setor, porque mudaram muitas coisas. Hoje podemos estar a viver um paradoxo, que é termos um desemprego ainda alto e já haver empresas que começam a sentir dificuldades em recrutar pessoas com as qualificações adequadas, porque muitas delas emigraram. Não estou no ministério com a missão de fazer uma grande reforma da Segurança Social. A economia portuguesa e a sociedade portuguesa precisam de estabilizar, precisam de que não se esteja permanentemente a mudar todas as regras.
Não deixa de ser curioso que diga isso sendo ministro de um governo que está a mudar quase tudo aquilo que foi feito até aqui.
Isso é uma ilusão. Não ponho em causa nem me afastarei das mudanças que estão a ser feitas. Mas se formos um pouco rigorosos vamos verificar que essas mudanças correspondem a compromissos. Não são mudar por mudar. Posso dar um exemplo relativamente ao passado: quando o governo anterior dinamitou um instrumento como eram as Novas Oportunidades, foi mudar por mudar. Não saiu nada de novo, nada de alternativo a um sistema que podia ter os seus erros, podia ser corrigido, mas que desempenhava um papel positivo. Não encontrará nas mudanças que o Partido Socialista - pode haver erros - tem vindo a introduzir esse tipo de opção. Eu, que tenho responsabilidades em áreas críticas, também não tenho como opção repor o que estava antes do governo anterior. Isso seria irresponsável.
Está a preparar um novo regime de reformas antecipadas e tem dito que vai valorizar as carreiras mais longas. Isso significa que quem descontou 50 anos vai ser tratado de forma diferente de quem descontou 40 anos?
A reentrada em vigor do regime das reformas antecipadas tinha um risco de cortar - e isto nunca é demais repetir - excessivamente o valor das reformas. Tive oportunidade de divulgar alguns números: pessoas com 55 anos que pediram a reforma antecipada ficariam com uma pensão à volta de 170 euros, em média, abaixo das pensões mínimas e sem direito à pensão mínima. Há aqui uma recomendação de prudência e, por isso, resolvemos suspender essa possibilidade, mantendo em vigor aquela que já existia, da reforma antecipada aos 60 anos. Aquilo que iremos fazer, e rapidamente, é um sistema renovado.
Mas com que contornos?
Ainda não estou em condições de dizer a partir de que idade é que as pessoas poderão ter acesso à reforma antecipada nesse novo sistema. Quase nenhum país europeu tem regimes de reformas antecipadas abaixo dos 60 anos e esta é uma realidade que temos de levar em linha de conta. Mas também poucos países têm, como nós temos agora, um pico de pessoas que começaram a descontar para a Segurança Social aos 12 e aos 13 anos e que chegarão aos 60 e poucos anos com mais de 50 anos de carreira. A minha ideia é que as pessoas com carreiras contributivas longas, que vão bem para além do que é uma carreira média ou completa, sejam compensadas. O novo sistema de reformas antecipadas irá obviamente tratar de uma forma mais favorável essas pessoas. É só o que lhe posso dizer.
Ou seja, quem tem mais de 50 anos de descontos...
Eu não quero, porque seria precipitado da minha parte, estar a fixar barreiras, fronteiras, se é os 50, se é os 48. Repare: 45 anos de carreira contributiva já é uma carreira muito longa.
A questão é também se quem tem uma carreira contributiva dessas deve ou não deve ser penalizado.
Aí temos de equilibrar duas coisas: os direitos que as pessoas ganham e também a visão de conjunto do sistema de Segurança Social. É certo que quando uma pessoa começou a trabalhar muito cedo e tem uma carreira muito longa, isso deve ser levado em linha de conta de uma forma mais intensa do que está a ser levado agora na fórmula de cálculo das pensões antecipadas. Mas é óbvio que também é difícil deixarmos de considerar que essas pessoas têm pela frente uma vida ainda longa como pensionistas. O meu compromisso é apenas no sentido de evitar estes cortes, que são brutais nalgumas reformas, e isso pode fazer-se de duas formas. Eventualmente com uma correção na idade em que se pode ter acesso, não sendo tão flexível como admitindo uma reforma aos 55 anos como a lei permite hoje e, ao mesmo tempo, tendo um sistema que progressivamente valorize as carreiras mais longas. Há uma ideia que eu gostava de deixar aqui e que é o nosso desafio: quando uma pessoa passa dos 45 anos de carreira contributiva para os 46, não é o mesmo que passar dos 40 para os 41. Estamos a falar de um nível de esforço e de uma exigência superiores, e acho que a lei devia ter capacidade de considerar essa modulação. Vamos estudar para que possamos fazer que essas pessoas que têm longuíssimas carreiras contributivas, muitas delas com uma guerra pelo meio, tenham de facto um acesso mais favorável sem pôr em causa os equilíbrios financeiros da Segurança Social.
Esse tratamento diferenciado conforme a carreira contributiva também irá aplicar-se aos funcionários públicos que descontam para a Caixa Geral de Aposentações?
O governo está a caminhar para uma unificação tão perfeita quanto possível dos dois sistemas. A minha ambição é que eles sejam tendencialmente idênticos. É um ponto do nosso programa de governo que não foi ainda concretizado, mas será ao longo da legislatura. É certo que a situação é diferente: no regime geral da Segurança Social são as empresas maioritariamente privadas que pagam o salário e depois, quando as pessoas passam à reforma, é o sistema de Segurança Social. Na função pública, o Estado paga o salário e continua a pagar depois como pensionista. Há aqui uma diferença que tem impacto nas contas públicas e isso tem de ser levado em linha de conta.
Acredita mesmo que o salário mínimo vai chegar aos 600 euros em 2019?
Acredito que esse objetivo está inscrito nos compromissos que foram assumidos entre o PS e os outros partidos e no programa do governo. Obviamente que temos de acompanhar sempre a evolução da economia. Nós, na concertação social, tomámos a decisão de seguir com rigor o que está a acontecer - essas decisões tomam-se sempre e depois não se concretizam - mas nós vamos seguir a cada três meses o que se passa no sistema de emprego, no mercado de trabalho e com as pessoas com o salário mínimo e verificar se esta evolução está a causar algum problema ou se está a ser assumida e absorvida pela economia com naturalidade.
Ou seja, a conjuntura não é indiferente para a obtenção desta medida?
Nunca pode ser indiferente. Em política económica, e na política, salvo raríssimas exceções, temos de considerar sempre qual é a conjuntura.
Pode acontecer que cheguemos a 2019 e não seja possível chegar...
Eu não prevejo isso. Fizemos um trajeto que foi um caminho muito significativo. Ainda não há muito, podíamos ouvir nos debates da concertação social alguns parceiros do lado empregador que achavam que o salário mínimo era uma má ideia e que não devia sequer existir. Não digo que não haja ainda quem pense isso, mas hoje o que ouvimos da generalidade dos parceiros é a consideração de que o salário mínimo é baixo. Depois dizem também que é difícil que ele aumente. Se conseguirmos criar as condições que tornem mais fácil que o salário mínimo aumente, acredito que seja possível atingir esses valores. É certo que hoje, em Portugal, há já muita gente com o salário mínimo, mas isso tem que ver com a natureza da nossa economia e com o facto de termos vivido um período de recessão e de estagnação muito prolongado.
As empresas têm condições para fazer face a essas alterações remuneratórias?
Acho que a generalidade das empresas tem condições, não quer dizer que não haja problemas nalguns segmentos. Hoje, para muitas empresas é mais fácil - e isto pode parecer um pouco um paradoxo - suportar nos seus custos um acréscimo maior a nível salarial do que era há cinco ou seis anos. E porquê? Porque as empresas, sujeitas a uma pressão tremenda da retração da procura interna, da necessidade de ganhar competitividade externa, foram capazes de encontrar outras modalidades de promoção da competitividade e isso torna-as mais aptas a encaixar na sua estrutura um custo salarial um pouco mais alto. Todas as análises identificam fatores negativos e positivos, o negativo é o risco de haver menos emprego, os positivos são a vantagem de haver mais poder de compra, mais procura e também um vínculo mais forte entre as empresas e os seus trabalhadores. Esse balanço é aquilo que nós iremos acompanhar ao longo destes anos.
Porque é que o governo deixou cair o contrato único e o regime conciliatório? Não eram mecanismos de estímulo à criação de emprego indispensáveis?
O contrato único nunca esteve verdadeiramente em cima da mesa, da parte do governo nunca foi discutido. Essas mudanças têm de ser feitas com um grau elevado de consenso e o governo já tem muitas matérias de inovação, nos domínios sociais, laborais e de política económica. Por vezes a ambição de desenvolver todas as ideias e todos os instrumentos é inimiga do equilíbrio entre os vários setores, os vários interesses, as várias dinâmicas que se cruzam numa economia e numa sociedade. Muitas outras ideias poderiam ser desenvolvidas, mas é preciso também ir aprendendo com aquilo que vamos introduzindo.
Limitar o combate à precariedade à intenção de penalizar as empresas que promovem o excesso de rotação de trabalhadores não é fazer muito pouco?
Talvez não seja. Porque quando nós falamos - e eu já falei várias vezes - com pessoas que sofrem na pele alguns dos problemas da chamada precariedade, ou com especialistas, técnicos ou investigadores que estudam, muitas vezes ouvimos que o nosso enquadramento legislativo é razoavelmente bom. Portanto, está relativamente limitada a capacidade de melhorar muito a lei. Assim, temos de passar a outro tipo de estímulos e de instrumentos. Eu recordo, aliás, que há alguns anos chegou a ser aprovado na concertação social um acréscimo nas contribuições dos contratos a termo compensando com uma diminuição nas contribuições dos contratos sem termo, 3% a mais para um lado e 1% a menos para o outro. Não houve depois possibilidades de concretizar porque era uma mudança difícil no contexto de crise. Portanto, mesmo na própria concertação social havia uma certa compreensão do abuso de situações das chamadas formas atípicas de trabalho, os contratos a tempo certo que às vezes são dominantes nalgumas empresas, os falsos recibos verdes, os estágios...
Por isso perguntava se não era demasiado curto...
Sim, mas não é o único instrumento. Nós, no domínio dos recibos verdes, estamos a estudar essa situação, mas há aqui uma dimensão crucial, que é a da fiscalização. Sem um modelo de fiscalização e um sistema de justiça que responda com rapidez não há nenhuma lei que resolva o problema. Aquilo que dizem muitos analistas e pessoas que trabalham nesta área é que desse ponto de vista, por exemplo, a nossa lei é adequada, mas falta mais fiscalização, mais rapidez na ação e faltam também instrumentos para que a perceção social de que o excesso de flexibilidade é uma fragilidade e não uma vantagem. As empresas, muitas vezes, entendem que quanto mais flexível for o regime laboral melhor: "Eu contrato, despeço, faço o que bem entendo e vou-me adaptando à conjuntura." É verdade, só que tem uma consequência negativa que é a de ser muito mais difícil captar, reter e formar bons técnicos e bons trabalhadores, e hoje isso é um desafio estratégico fundamental.