Ana Cristina Pereira (em Kosice) in Público on-line
Um dos países que mais tem colocado entraves à entrada de refugiados oriundos de África e do Médio Oriente assume hoje a presidência da União Europeia
Gente de todo o lado tenta perceber o que tem uma pitoresca aldeia da região de Presov, no Este da Eslováquia. No virar do século, quando Vladimír Ledecký foi eleito presidente de Spisský Hrhov, o desemprego atingia 100% dos residentes de etnia cigana. Agora, 70% têm trabalho.
Ledecký já perdeu a conta aos europeus que quiseram ver, com os próprios olhos, a sua estratégia de integração, que combina acesso a emprego, habitação e educação. “Só fazemos o nosso trabalho”, diz.“Vamos criar um centro de treino para quem quer aprender com a nossa experiência.”
Ninguém sabe ao certo qual é o número de europeus de etnia cigana. Estima-se que somem 12 milhões, o que é mais do que o total da população de 20 Estados-membros da União Europeia. Têm maior peso na Roménia, na Bulgária, na Hungria, na Eslováquia. Segundo a Agência Europeia dos Direitos Fundamentais, nenhuma outra minoria é tão desfavorecida e marginalizada. Ainda nesta terça-feira, a Comissão Europeia pediu um empenhamento renovado na sua integração.
O número de ataques tem estado a subir na Bulgária, Roménia, Hungria, República Checa e na Eslováquia, que nas eleições legislativas de Março deu 8% ao Partido Popular Nova Eslováquia, uma formação neo-nazi cujo líder, Marian Kotleba, governador da região de Banská Bystrica, chama “parasitas” aos ciganos. Na segunda-feira, Kotleba lançou uma campanha de recolha de assinaturas para um referendo sobre a saída da União Europeia.
“Eles atacam pessoas na rua, mas não têm poder para influenciar as políticas públicas”, comenta Laco Oravec, director da Fundação Milan Simecka, que trabalha a memória, a diversidade e a exclusão. “Estou mais preocupado com o que os políticos tradicionais fazem e esses não querem saber dos roma, nem dos refugiados. Tentam competir com os extremistas nazis e às vezes são quase tão extremistas como eles.”
A Eslováquia — a par da Hungria, Polónia ou República Checa — tem colocado grandes entraves à entrada de refugiados oriundos de África e do Médio Oriente. O primeiro-ministro, Robert Fico, fez campanha para a reeleição com o lema “nem um único imigrante muçulmano”. Não suavizou o discurso depois da votação, o que está a gerar preocupação em Bruxelas. Esta sexta-feira assume a presidência da União Europeia e em cima da mesa terá a crise dos refugiados.
Fico nunca se coibiu de fazer uma ligação entre os candidatos a asilo e os ciganos eslovacos. “Afinal, vamos ser honestos, não somos sequer capazes de integrar os nossos próprios concidadãos romani. Como poderemos integrar pessoas que estão num lugar completamente diferente no que diz respeito a estilo de vida e religião?”, disse. Ao longo dos últimos anos, o primeiro-ministro tem deixado bem claro quais são as suas posições, para embaraço do Partido Socialista Europeu. Em 2012, anunciou vontade de retirar as crianças ciganas às famílias e de as meter em colégios internos. Já em 2015, quando a Comissão Europeia iniciou procedimentos contra o país por discriminar crianças ciganas na escola, o seu Governo alegou prática de incesto.
Há cerca de 400 mil ciganos eslovacos, o que corresponde a 7,5% da população, a maior parte concentrada em pequenos guetos, dentro das cidades ou aldeias ou em áreas segregadas, na periferia. O maior gueto urbano é Luník IX, nos arredores de Kosice. E a aldeia modelo é Spisský Hrhov, asseada, com esculturas a embelezar as ruas, uma igreja gótica, uma pequena ponte medieval.
Há 18 anos, quando Ledecký foi eleito, os ciganos de Spisský Hrhov também viviam num mundo à parte, em casas abarracadas ou inacabadas, sem ligação as redes de gás, água, electricidade, saneamento público. As crianças faltavam muito às aulas, abandonavam a escola muito cedo. Era palpável a tensão entre ciganos e não ciganos. E evidente que, sozinhos, não conseguiriam quebrar o ciclo vicioso da pobreza e da exclusão. O tecido empresarial de Presov não tinha dinâmica suficiente. A procura de emprego superava a oferta. E eles tinham pouca ou nenhuma escolaridade. Faltava-lhes experiência. Sobravam estereótipos negativos.
“Não sou diferente dos outros eslovacos [eslavos]”, afiança Ledecký. “Também tive uma educação racista”. Também cresci a ouvir os meus pais ameaçar que se me portasse mal seria levado por ciganos.” Podia fazer como outros autarcas, refugiar-se na imagem do cigano preguiçoso e trapaceiro, que não se quer integrar, ou atirar a responsabilidade para o poder nacional, mas quem ganharia com isso, pergunta. “Se a vida dos ciganos melhorasse, a vida de todos melhoraria.”
No ano 2000, usou um quinto do orçamento para abrir uma empresa municipal. Foi a primeira criada da Eslováquia com o objectivo específico de integrar ciganos. Começou por comprar pás e outras ferramentas para fazer pequenos arranjos em caminhos e estradas. Empregou três pessoas. Agora, emprega entre 50 e 100, consoante a época.
A empresa diversificou a actividade. Faz trabalho agrícola; cuida dos espaços públicos; corta e transporta lenha, tem um serviço de carpintaria que produz canteiros e artesanato. Gere uma piscina pública e uma loja de produtos locais. E constrói edifícios, incluindo casas.
Cada trabalhador passou por um processo de formação e supervisão. Nem todos ficaram. Alguns trabalham agora para outras empresas. “Outras companhias estavam interessadas neles porque tinham competências e eram bons”, explica Ledecký, num passeio pela aldeia. Outros nunca se adaptaram. “Há uma família, numerosa, com a qual nada se conseguiu fazer. Outros funcionam dentro da chamada economia informal. Trabalham, embora não numa base regular, e vão tendo algum apoio do Estado.”
Ia subindo a rua na qual moram a maior parte dos ciganos. Casas de um, dois ou três pisos, algumas ainda com paredes por revestir, quase todas com antenas parabólicas. Ledecký não deixa construir barracas. A autarquia facilita a aquisição de terrenos, empresta ferramentas, ensina a fazer a obra, ajuda. E, enquanto outras localidades rurais perderam habitantes, Spisský Hrhov ganhou-os. Eram menos de mil no final dos anos 90. Rondam agora os 1600, 20% ciganos. Outros dois países estão a tentar replicar o modelo. A Eslováquia não, apesar do reconhecimento internacional.
Pouco mais de uma hora de camioneta separa Spisský Hrhov de Luník IX, que mais parece ter sido bombardeado — edifícios altos, entradas desfeitas, paredes esburacadas, enegrecidas pelo fumo, amplas ruas de terra batida, polvilhadas de lixo, repletas de crianças sem nada para fazer. “É o maior gueto urbano na Eslováquia, não o pior”, assegura Oravec. “Podem haver dez como este.”
É difícil saber ao certo quantas pessoas moram ali. Algumas famílias avançaram para outros países europeus, sobretudo para o Reino Unido, e venderam ou arrendaram os apartamentos. Oficialmente, refere o presidente da autarquia, Marcel Sana, moram seis mil. Quase todas ciganas, metade crianças, a maior parte sem luz, sem água corrente, sem gás canalizado, isto é, sem aquecimento.
Alguns edifícios foram demolidos e várias famílias ficaram por realojar com o argumento de que não pagavam renda. Desde então, num descampado em frente, umas 300 pessoas suportam os rigores do inverno em casebres de madeira, zinco, lona e plástico. No início do ano, morreram ali duas crianças – uma consumida pelas chamas, outra pelo frio. O autarca parece impotente: “O orçamento é muito curto”, diz.
“É preciso acreditar que pode ser diferente. Os próprios ciganos precisam de acreditar que pode ser diferente”, diz Oravec, sublinhado a importância de divulgar bons exemplos. “Todos os anos, na Eslováquia, se pergunta às pessoas quem aceitariam ter como vizinhas, colegas de trabalho ou par de um filho ou filha e 90% das pessoas rejeitam os roma”, sublinha.
Os refugiados são uma espécie de novos roma. A base da fobia é a mesma, nota Klára Orgavánová. “A ignorância, o preconceito, os estereótipos”. Oravec não podia estar mais de acordo: “Não é só medo do desconhecido. Somos uma das mais jovens nações da Europa. A nossa identidade nacional é nova e sensível. Há uma certa frustração com a situação económica e social. E há muitos estereótipos negativos sobre refugiados muçulmanos. Diz-se que trazem doenças, que roubam empregos, que provocarão um choque de culturas.” Há também incompreensão do que é protecção internacional. “Ouve-se as pessoas a dizer: nós não causamos esse problema, nunca atacamos ninguém, nunca tivemos colónias. Este é um problema dos que o causaram. Por que temos de pagar?”