Diana Ralha, in Jornal Público
Há muitos tipos de pobreza em Lisboa, que não se vêem nas esquinas e nos semáforos da capital, sob a capa da mendicidade. Projecto-piloto quer conhecê-los a fundo para intervir
a Todas as manhãs, a senhora Rosa, viúva septuagenária, desce os três lanços de escadas de um prédio no Bairro de Alvalade com o dinheiro contado para a padaria e para o supermercado. A reforma de sobrevivência levanta-se no banco no início do mês e praticamente desaparece a aviar as receitas médicas na farmácia. Não há bifes todos os dias no prato da senhora Rosa, e esta idosa só consegue equilibrar o seu orçamento mensal graças à renda baixa do seu apartamento, situado numa das mais cobiçadas freguesias da cidade onde a especulação faz render cada metro quadrado até aos três mil euros.
Esta idosa é vítima daquilo a que se chama "pobreza envergonhada". Vive na freguesia mais envelhecida da cidade, Alvalade, que, ironicamente, apesar de 45 por cento da população ter mais de 65 anos, não tem um único centro de dia.Já no limite norte da cidade, na periférica freguesia da Charneca do Lumiar, o que não falta são crianças e jovens. A Charneca tem a população mais jovem da cidade, mas sofre dos mais graves problemas sociais: seculares quintas senhoriais em ruína convivem com realojamentos problemáticos efectuados em bairros sociais de construção de má qualidade.
A população da Charneca do Lumiar é composta, maioritariamente, por pessoas que são subsidiodependentes.Estes são dois retratos fictícios do que se passa todos os dias na capital. Não é novidade que Lisboa concentra nos seus limites territoriais e na extensão da sua área metropolitana os maiores problemas de pobreza extrema e exclusão social, apesar as estatísticas indicarem que o Produto Interno Bruto (PIB) per capita da cidade de Lisboa é superior ao da média da União Europeia (UE).
Fenómeno em mutação
Porque não há só um tipo de pobreza, porque este é um fenómeno em constante mutação e, sobretudo, porque há mais de 20 anos que a taxa de pobreza de Portugal não desce dos 20 por cento, apesar das várias iniciativas de combate a esse flagelo, foi ontem lançada a primeira pedra para a constituição do projecto-piloto do Observatório de Luta contra a Pobreza na cidade de Lisboa - uma parceria entre a Santa Casa da Misericórdia (que financia e monitoriza o projecto, assim como contribui com o conhecimento de campo que tem a sua rede social que apoia diariamente milhares de lisboetas) e a Rede Europeia Antipobreza (REAPN).
Mais do que produzir extensos estudos sobre o fenómeno pobreza, o observatório quer construir instrumentos teóricos (indicadores) e práticos que permitam apoiar a tomada de decisões e definição de estratégias de combate à pobreza, afirmou ao PÚBLICO Sérgio Aires da REAPN.
Até ao próximo mês de Outubro será feito o trabalho preparatório da constituição do observatório, nomeadamente a definição das metodologias de estudo a adoptar e contexto territorial. "O observatório não vai ser um governo, nem vai fazer magia. O objectivo final é reduzir a pobreza.
Queremos cumprir uma parte dessa missão", explicou o responsável da REAPN. Há muito trabalho a fazer. Lisboa tem 53 freguesias - algumas gigantes, como Benfica e Olivais, e outras minúsculas, como a dos Mártires, que, em pleno Chiado, é, simultaneamente, a mais antiga e também a mais despovoada de todas as freguesias da capital. Em todas elas há pobreza: alguma encapotada, outra mais despudorada, que se mostra diariamente na rua por via da mendicidade.
A acção deste observatório deverá estender-se para fora das fronteiras da cidade de Lisboa, até aos limites da sua área metropolitana.