Ana Cristina Pereira, in Jornal Público
Foram sinalizadas no ano passado 126 situações de "piores formas de trabalho", como tráfico de droga, exploração sexual e mendicidade
Foi há dez anos. Amesterdão acolhia a primeira conferência internacional sobre trabalho infantil, mais de 30 países chegavam a um consenso sobre a necessidade de abolir as formas de trabalho intoleráveis, trilhavam-se os primeiros passos para uma convenção. O que mudou em Portugal, único país da União Europeia que assumia ter um problema desta natureza? Já é quase missão de agente secreto captar crianças, enfiadas dentro de carrinhas, a caminho da fábrica, da oficina ou da obra. O trabalho infantil "organizado, formal, em empresas, é completamente negligenciável", afiança Joaquina Cadete, directora do Programa para Prevenção e Eliminação da Exploração do Trabalho Infantil (PETI). Pela crescente fiscalização, pelas políticas sociais (como o rendimento social de inserção ou a intensificação das redes sociais locais), pela maior consciencialização da sociedade. E até pelo aumento do desemprego.
Em 1996, a Inspecção-Geral de Trabalho (IGT) levantou 130 autos de notícia por violação da idade mínima de admissão ao trabalho (16 anos). O ano passado, de acordo com as informações veiculadas pelo subinspector-geral Manuel Roxo, "foram encontradas nove crianças a trabalhar ilegalmente, quatro com menos de 16 anos e cinco sem a escolaridade obrigatória e/ou sem capacidades físicas ou psíquicas adequadas às suas funções".
Desengane-se quem julga que o fenómeno desapareceu da paisagem portuguesa. O ano passado, foram sinalizados ao PETI 890 casos de trabalho infantil propriamente dito e 126 casos de "piores formas de trabalho infantil" - crianças usadas no tráfico de droga, na exploração sexual (prostituição e pornografia), na mendicidade ou em actividades arriscados (pela sua natureza e pelas circunstâncias em que são realizados têm alta probabilidade de afectar a saúde, a segurança e o bem-estar da criança).
O que "vai havendo mais" é trabalho informal pouco ou nada remunerado. Nas pequenas explorações familiares, nas actividades agrícolas sazonais, nas tarefas do têxtil e do calçado, no pequeno comércio de base familiar. Em detrimento dos tempos livres, dos tempos de estudo e até, em alguns casos, do tempo escolar, clarifica Manuel Sarmento, do Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho.
A preocupação com trabalho realizado no seio familiar é tanto maior quanto se sabe que se intensificou entre 1998 e 2001. E, "a estes, os serviços, sozinhos, não conseguem chegar", sublinha Joaquina Cadete.O trabalho ligado ao têxtil e ao calçado estará em franca queda (até pela diminuição das encomendas), avoluma-se é a inquietação com o rural e com as chamadas "piores formas de trabalho infantil". "Não há estudos sérios que possam dar uma ideia completa sobre as piores formas de trabalho infantil", apenas a percepção de que assumem formas "cada vez mais ocultas", refere Sarmento, preocupado também com o crescente uso de crianças nas indústrias do entretenimento. E o PETI não lida com os menores estrangeiros (sobretudo romenos) que se vêem a pedir nos semáforos.
"Pobreza de expectativas"
Em Maio de 2006, o Expresso contava a história de dois irmãos de Felgueiras (de 11 e 14 anos) que costuravam sapatos. Era um agregado composto por sete pessoas que sobrevivia com 525 euros de reformas, 100 a 120 euros da feitura de sapatos e algum trabalho agrícola. Concluiu-se, depois, que era um exagero falar em trabalho infantil. As crianças frequentavam a escola, eram assíduas, pontuais, tinham aproveitamento, brincavam e ajudavam a família a coser uns sapatos. As situações em que as famílias recorrem ao trabalho infantil por meras "razões económicas são residuais", insiste Joaquina Cadete. O último grande estudo feito em Portugal (2001) já mostrava que apenas 19 por cento dos menores que exerciam uma actividade o faziam para ajudar a família (cinco anos antes a percentagem era de 45).
O novo mega-estudo, que servirá para tirar a prova dos nove, só deverá estar "pronto em 2008". Mais do que por dificuldades de ordem financeira, a entrada precoce no mercado laboral é ditada por "pobreza de expectativas". "As famílias, em muitas zonas, ainda valorizam muito o trabalho braçal", diz a directora do PETI. Ainda há pouco, a SIC emitiu uma reportagem que entende reveladora - Rosa Brava narra a história de uma menina de 16 anos que passa os dias a pastar cabras e ovelhas e a imaginar como será sentir o toque de um rapaz.
Abandono escolar
Para Joaquina Cadete, exercer uma actividade laboral até pode ser benéfico, desde que tal não afecte o percurso escolar, nem o desenvolvimento do menor. Mas o facto é que o trabalho anda de mãos dadas com o abandono ou, pelo menos, com o insucesso escolar.
Em 2006, ao PETI foram sinalizados 491 casos de risco de trabalho infantil e 3001 de abandono escolar exclusivo. Tal como muitos dos que trabalham não abandonam a escola, "muitos dos que abandonam não estão a fazer nada e o ócio é um bom caminho para a asneira" - para os comportamentos desviantes, como a criminalidade ou a toxicodependência.
A directora do PETI refere miúdos que se recusam a ir às aulas e pais que "não têm força" ou "não querem ter a maçada" de os orientar. Mas o fenómeno, de algum modo, também permite verificar as insuficiências do Programa Integrado de Educação e Formação (PIEF), "medida de excepção que se apresenta como remediação, quando tudo o mais falhou" e à qual os menores podem eventualmente aderir depois de terem rejeitado outras medidas "existentes quer no sistema educativo, quer na formação profissional" ou depois de por eles "terem sido rejeitados".
491 é o númerode casos de risco de trabalho infantil denunciados em 2006, segundo dados fornecidos pelo PETI
A incerteza dos números
Quantas crianças estão a trabalhar? Ninguém sabe
Há dez anos, ninguém sabia ao certo quantos menores trabalhavam em empresas e/ou no domicílio em Portugal. Diversas organizações internacionais chegaram a elevar a fasquia para 200 mil, enquanto os sindicatos portugueses apontavam para 80 mil. A Organização Mundial do Trabalho falava em 17 mil crianças, entre os 10 e os 14 anos, economicamente activas (1,76 por cento dos indivíduos deste escalão etário). Em 1998, arrancava a primeira grande radiografia do trabalho infantil em território nacional. Os resultados, divulgados em 99, apontavam para quase nove mil crianças em situação de trabalho subordinado nos sectores da indústria e do comércio e para 34 mil a exercer trabalho familiar não remunerado. O segundo grande estudo, feito em 2001, mostrava que o trabalho no seio familiar sem remuneração passara de 34 para 40 mil e o número de menores subordinados de nove para sete mil. Só o novo estudo, que deverá estar pronto em 2008, poderá dizer, com propriedade, se o país evoluiu ou regrediu em matéria de trabalho infantil.